terça-feira, março 07, 2006

RACIOCÍNIOS FRÁGEIS

O Doutor Boaventura de Sousa Santos (BSS), expoente maior das ciências humanas na sua versão pós-moderna, escrevia um artigo em que tentava responder, no fundo, a uma adivinha: o que há de comum entre (1) uns jovens que, recentemente, assassinaram um sem-abrigo à pedrada, (2) uns outros jovens brasileiros que, há algum tempo, mataram - ou, pelo menos, atacaram - uns representantes de uma comunidade de índios e (3) o caso das caricaturas do profeta Maomé?

Sei que a resposta a esta adivinha deve residir, obviamente, numa determinada analogia. Mas também sei que as analogias devem ser usadas com ponderação e rigor - ou bem que têm limites, ou tudo pode ter qualquer coisa em comum com seja lá o que for.
Para BSS, o segredo para solucionar o problema radica em observar-se que existe, nos três casos, um mesmo desprezo pelo outro: pelo diferente, trate-se do travesti, do sem-abrigo, do índio, do homossexual.
A ridicularização implicaria sempre uma idêntica forma de desrespeito por aquilo que se não compreende. E é sempre de ridicularização que se trata, quer sob a forma da pedrada quer sob a forma da caricatura. Ou seja, para BSS não há nenhuma diferença de natureza entre espancar um homem até à morte e fazer humor: apedrejar um ser humano ou contar uma anedota de alentejanos são actos que comungam de uma mesma essência assassina. Enxovalhar o outro no seu ser-outro representa sempre, fundamentalmente, um mesmo tipo de indignidade.

Ora do meu ponto de vista, pelo contrário, o humor não pode deixar de ser um olhar sobre o que é diferente: esse talento e esse poder de negar momentaneamente a seriedade do que é, quanto mais não seja para alguém, a coisa mais séria desta vida, constitui uma seiva de toda a democracia e, mais do que isso, um pilar da civilização ocidental. Na sua forma mais delicada ou mais grosseira, como ironia, ou sarcasmo, ou escárnio e mal-dizer, o humor, que faz estremecer o poder, tomba governos e submete ao escrutínio do ridículo todas as instituições e todas as expressões humanas, é, frequentemente, uma voz do preconceito, sem dúvida, mas nem por isso deixa de representar um limite para que nos tomemos demasiado a sério ou para que façamos do respeito absoluto, da reverência e do tabu os princípios da nossa existência social.

Umberto Eco mostrava-nos, no Nome da Rosa, essa ligação íntima entre a imposição do dogma e o banir do riso. Onde o riso é temido, e proibido, ou admoestado, só pode emergir uma gravidade totalmente falha de espírito - no caso, do espírito capaz de se distanciar do literal, o espírito capaz de deformar para provocar a saudável gargalhada, o espírito do humor.

BSS diria: Não, não, não, não é disso que se trata! Não de banir o riso, que horror, olhem para mim, que sou um homem tão divertido, e que gosto muito de rir com anedotas que não ofendem, como aquela do elefante e da formiga, mas de banir o mau riso.

Mau riso? Não é que não seja concebível um riso pior - um riso grosseiro, humilhante, sem gosto nem educação. Mas o problema está em que, se há, efectivamente, esse riso pior, que nos assusta, também me parece, por outro lado, que não há riso que não seja mau. Não existe humor sem maldade. Um humor que fosse puro e cristalino, bondoso, de santos, seria um humor sem graça. E no entanto, a eficácia social da maldade humorística, por implacável que seja, está precisamente em que essa maldade não é exercida como violência física ou como exclusão efectiva do outro. Um homem que ri de si mesmo, um negro que conta anedotas de negros, não são necessariamente suicidas, nem traidores: são a prova de que se pode compreender que o mal do riso não tem de ser maléfico nem humilhante.

Compreenderia que se tentasse separar, do riso mau (que é todo, num certo sentido), o riso pior. Mas não seria isso também uma amputação cultural e social com repercussões perigosas? Que critérios e que fronteiras, que limites e que ofensas teríamos de considerar (se, em última análise, tudo o que é troça pode ser ofensivo)?

Tudo deve então ser permitido? Certamente que não. Mas não vejo que seja um progresso humano traçarmos a priori uma demarcação.

Por onde quer que olhe, não compreendo a analogia de BSS.

Tremo só de pensar no uso que, em ciência, BSS pode fazer da analogia.

1 comentário:

Gil Duarte disse...

De acordo: estudando agora, com os meus alunos do 12º ano, Górgias, não posso deixar de observar que o que está em jogo é, por um lado, a defesa da violência do mais forte sobre o mais fraco (feita por Cálicles) e, por outro lado, a defesa (por Sócrates) de um pensar que, e não por acaso, se exerce sempre ironicamente, muitas vezes com um sarcasmo feroz.