quinta-feira, março 23, 2006

DA DIFICULDADE EM LER A IRONIA

Quando estava nos alvores da minha juventude mais destravada, com as hormonas e a adrenalina a projectarem-me numa roda viva do disparate, peguei, um dia, numa mochila de lona e zarpei para um longo périplo por França onde, acompanhado de uma amiga de óculos, dentes de coelho e cabelo encaracolado, fiz algumas das melhores coisas da minha vida (que são, na maior parte dos casos, coisas de que me arrependo e não tornaria hoje a fazer): roubava em supermercados o almoço da cada dia - e, uma vez, fomos apanhados pelo detective da casa em flagrante delito -, dormi num citroen que sofrera um acidente e ali repousava à beira da estrada, preparei-me para andar de comboio sem pagar bilhete porque já não tinha dinheiro - soube, depois, que era dia de greve: passei a noite num banco da estação sem ver passar um único comboio -, infiltrava-me em vãos de escada de prédios para passar a noite.
O grande objectivo era irmos fazer as vindimas.
Antes de chegarmos a esse ponto, no percurso, a minha amiga e eu integrámo-nos num grupo que, sob as ordens de um professor universitário, procedia a escavações arqueológicas. Parece interessante, não parece? Também a mim, inicialmente, pareceu muito interessante: na verdade, tudo se resumia a dias terríveis, que começavam muito cedo, madrugada ainda, e se prolongavam até às cinco ou seis da tarde, sob um sol abrasador, com uma curta pausa para almoço; no chão, mal sentados, escavávamos morosamente umas pedras sem nada que as tornasse muito especiais, mas que o professor mirava, colocando os óculos na testa, como um aviador, piscando muito os seus olhos pequeninos e argutos. Eu era inexperiente: tremo, hoje, só de pensar nos vestígios historicamente valiosíssimos que não terei destruído sem sequer disso me aperceber.
Já muito tarde, arrasados, muito melancólicos, éramos devolvidos ao parque de campismo onde pernoitávamos; tomávamos um duche, vestíamo-nos o melhor possível e (abençoado tempo de uma viagem de furgoneta, que eu desejava que nunca mais terminasse) rumávamos a um restaurante dos arredores, onde jantávamos todos, à volta de uma mesa enorme. Havia muitos franceses, dois portugueses (nós), um camaronês, um grupo de belgas, no meio do qual brilhava uma rapariga gorducha, loira, sempre muito corada, extremamente divertida; um inglês, o professor, a esposa do professor...
E nunca me esqueço de que fazíamos muito barulho. E de que, curiosamente (para quem conhece o pãozinho sem sal em que entretanto me tornei), rapaz pouco habituado à bebida como eu era, com dois ou três copos a mais, que eles insistiam em que eu emborcasse, ou que me iam discretamente reenchendo, sem que desse conta, eu era o mais ruidoso, o mais apatetado (nem quero imaginar as figuras que terei feito), o do sapateado, o da cantoria, o dos brindes...
Mas lembro-me de que, por qualquer razão, um dia, o patrão do restaurante nos veio pedir que não fizessemos tanta algazarra: talvez houvesse mais clientes lá para o fundo, talvez alguém se incomodasse, talvez outra coisa qualquer.
O professor olhou imediatamente para mim:
- Gil, du calme!
E eu, levantando-me muito apressadamente, mimando o menino queixinhas, dei quase uma volta inteira à mesa para me aproximar da rapariga belga, que era divertida, como já disse, mas, acrescento agora, tímida e discreta - e, por isso, um alvo fácil das nossas brincadeiras -, apontar-lhe um dedo acusador e bradar:
- Não sou eu quem está a fazer barulho! É a belga...

Era uma clara ironia. Ou pensei que sim. Uma brincadeira inconsequente: porque eu fora, obviamente, o barulhento mais barulhento, porque a belga fora, pelo contrário, a mais risonha mas também a mais sossegada das pessoas, aquela minha acusação não podia ter efeito literal.

Mas a mulher do professor universitário olhou-me friamente. Gelidamente.
E, sem ponta de ironia, lançou-me esta lição absoluta:
- Gil, é muito feio acusar as outras pessoas.

A lição desta história - porque esta história contém uma moral - não reside, naturalmente, nas palavras de madame. A lição está na percepção de que talvez nunca existam ironias claras: porque somos todos muito diferentes uns dos outros e temos diversos e diversificados limites, a prática da ironia será necessariamente um exercício e um jogo de risco, um movimento entre alguns, que lêem literalmente aquelas palavras, outros, que hesitam, sem saberem se devem tomar a sério ou não e, porventura, por vezes, um só, o próprio sujeito irónico, o único capaz de se distanciar e de se compreender.

Vem-me esta lição novamente ao espírito, quando me apercebo - por razões, por razões que não vêm ao caso - de que a ironia é uma espécie em vias de extinção, uma daquelas profissões antigas que já praticamente não tem seguidores, que uma temível gravidade se abateu sobre os jovens, que a sociedade se fechou, ou se vai fechando, que já poucos e raros são capazes de vislumbrar o segundo sentido.

Imaginem uma sociedade feita de pessoas como a mulher do professor universitário.

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