segunda-feira, março 06, 2006

OS MONSTROS

Aquele súbito ruído bem no âmago da sua silenciosa solidão fê-la estremecer de um susto minúsculo, diríamos: discreto.
As crianças, em seus sustos, concebem de imediato monstros habitando-lhes o roupeiro. Só aos poucos é que, à medida que vão adolescendo mais, preenchem os sustos com outras hipóteses: intrusos, ladrões, a professora de matemática...
Os adultos, pelo contrário, principiam sempre por pôr as hipóteses menos terríveis. Não porque ignorem os monstros mas, pelo contrário, porque os viram já frente a frente, porque os conhecem bem de mais e os temem demasiado. Treinaram-se para não os imaginarem constantemente.
Por isso mesmo, Maria, sozinha em casa, assustada, foi-se propondo hipóteses inócuas para o bizarro e repentino ruído: uma janela aberta lá em cima (por que se esquecia sempre de as fechar?), o vento, algum objecto que resvalara...
Mas o ruído reproduzira-se. Havia mais sons. Passos. Algo que se aproximava, que não se limitava a soar mecanicamente no mesmo sítio.

Tentou regressar ao juízo, um redil de pequeníssimo diâmetro.
Que disparate! Quem poderia ser? O que poderia ser? Não se ergueu da cadeira. Nem para ir ver - que nunca iria - nem para se refugiar. Impunha juízo ao seu espírito, impunha-lhe saúde mental; recordava-se de que era adulta, esquecia-se ou fazia por se esquecer de que um adulto sozinho é simplesmente uma criança amputada da capacidade de brincar, insultava-se, «Estúpida, medrosa», a palavra «medrosa» conduzia-a, por associação, a insultos ainda piores, «merdosa», fazia-se mal para afugentar de uma vez a ideia de que lhe poderiam fazer mal.

Mas havia uma aproximação. Inegavelmente. Fosse o que fosse, era um aproximante, um ser que vinha, que se chegava, que sentia cada vez mais perto. Toda a sua coragem se fragmentou em torno de um princípio de terror. Um ladrão?

O terror endurecia, trazendo consigo os seus pesadelos.
Sabia que os monstros existiam, como qualquer adulto o sabe, principalmente os que o ignoram, os que sorriem, protectores, dos seus filhos que gritam, à noite, por eles.
Já não era capaz de apagar o seu pressentimento, de dar outro nome e outra forma àquela pura proximidade, àquela aproximação secreta.
O monstro regressava.
Meu Deus, que horas seriam?

O monstro estava ali. À porta da sala. Fixando-a incisivamente. Muito pálido. O seu marido.

1 comentário:

Gil Duarte disse...

Hum...! Achas mesmo que sim?