sexta-feira, março 10, 2006

ISA A MENTIROSA

Isa brincava no recreio da escola, quando viu, em cima do muro baixo, um poucochinho de brilho sob o sol da manhã.
Por um momento, pensou que esse brilho fosse um bocado do próprio sol, que tivesse caído. Devia ser quente! Uma curiosidade gazelídea movia-a devagar em direcção ao brilho; ia um pouco receosa mas, ao mesmo tempo, com o prazer desse receio.
Ao perceber o que era, deu um gritinho. Melhor do que um bocado do sol: um bâton a sério, de senhora, que se tornava, de súbito, a melhor coisa do recreio, a melhor coisa do momento, talvez da sua vida. Um bâton como o da tia São (a mãe praticamente não usava), como o daquelas senhoras de lábios lustrosos, que deixavam marcas nos guadanapos de papel, nos copos e nas chávenas.
Pegou no supositório (é verdade que também lhe parecia um supositório), pô-lo na palma da mão, nas duas mãos em concha, tirou-lhe a tampa, mirou-lhe a cor: fez um traço sobre o muro e arrependeu-se imediatamente, com medo de gastar o que acabara de descobrir.
Andou o resto do tempo do intervalo sozinha, não se pintando, mas fingindo que se pintava, sentindo o pauzinho nas mãos suadas, guardando-o no bolso, tirando-o de novo para o ver, como se tivesse esquecido e quisesse recordar a sua forma, ou como se duvidasse da sua existência.

Mais tarde, na casa de banho da escola, olhando-se ao espelho, pintou ao de leve os lábios; depois, como se não se visse bem, como se não tivesse tido nos lábios a cor viva que esperara, tornou a passá-lo. Quando saiu, sentia-se uma senhora crescida. Se limpasse os lábios a um guardanapo, deixaria uma marca, o desenho de uns lábios. Se desse um beijo ao Marco, que ela adorava secretamente, estamparia na bochecha dele a forma de um coração. Se levasse um copo à boca, ficaria um borrão na borda...

Já não sei quem foi a primeira a reparar. Possivelmente a professora, que perguntou o que tinha ela. Isa explicou que pintara os lábios. A professora não percebeu com quê, julgou que com tinta, mandou-a lavar muito bem a boca.

Quando soube que uma sua colega perdera o bâton, e o procurava, aflita, assustada até, porque tinha sido um presente muito caro, a professora fez mentalmente uma vaga associação, como uma descoberta que não se vestira ainda completamente para sair à rua, mas poderia sair dentro de pouco tempo.
- Mas onde é que tu tinhas o bâton?
- Na minha mala. Esteve sempre na minha mala.
- Mas não o terias perdido...?
- Não. A mala estava fechada. Esteve sempre fechada. Não.
- Achas que to roubaram? Desapareceu-te mais alguma coisa? Não o terás deixado em casa?
A colega tinha a certeza absoluta. A mala estivera pousada numa cadeira, à mão de semear de quem passasse, talvez de uma das empregadas...
- Mas não te levava a carteira? Só o bâton? Não achas estranho?

De novo na aula, a professora mandou chamar Isa para o pé da sua secretária.
Olhou-a muito atentamente, como uma adulta capaz de seguir o rasto dos pensamentos de uma criança culpada, como um polícia esperto, a quem não escapam os sinais do medo no rosto do assassino.
- Aquilo que tu tinhas hoje de manhã nos lábios... aquilo era bâton, Isa?
- Era - (nem sombra de atrapalhação na expressão, na voz, no gesto).
- E onde é que arranjaste o bâton?
- Ah, foi a minha tia que me deu. - (A tradução-para-adulto destas palavras deveria ser: Este bâton é igual aos da minha tia, é tão importante como os da minha tia, faz de mim uma senhora crescida como a minha tia, como se tivesse sido a minha tia a abrir-me esta deliciosa porta).
Era uma mentira óbvia, pensou a professora. Uma tia não oferece um bâton a uma criança de seis anos.
- Tens aí o bâton? Posso vê-lo?
A professora parecia demasiado interessada no seu segredo, no seu brinquedo, na sua brincadeira, no seu brilho - que começara por ser um brilho de sol sobre o muro e se tornara num brilho de cor nos seus lábios. Isa olhou-a, tentando encontrar o significado daquele interesse.
- Não.
Baixou a cabeça. Escondeu os olhos no chão.
- Tens a certeza? - insistia a professora.
- Não.
- Não quê? Não tens a certeza, ou não tens o bâton contigo?
- Não.
- Bem. Vá, vai lá sentar-te.
Isa foi. Mas a professora sabia já o que queria saber, a sua suspeita vestira-se completamente, pusera chapéu e luvas, não era uma curiosidade assomada à janela, mas uma certeza pronta para sair à rua.
Quando tocou para o intervalo do almoço, a professora seguiu silenciosamente Isa, espreitou-a na casa de banho onde, como a senhora previra, a menina, diante do espelho baixo, à medida das meninas, se encantava consigo, com os seus lábios, com o seu bâton.
- Ah! malandra. Ladra. Ladrazinha de uma figa!!!

Quando a mãe de Isa a veio buscar à escola, a professora disse-lhe que precisava de falar com ela. Estava muito séria. Muito grave. Com a voz ligeiramente velada. Levou-a para um gabinete onde se sentaram, já as duas um pouco nervosas, ambas tensas e preocupadas, sem que a professora soubesse como começar a narração; sem saber muito bem, apesar de ter treinado essa conversa, como insultar a menina em linguagem psicologicamente correcta.

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