Sou do tempo, como dizem os velhos, em que se esperava que certas funções não fossem realizadas por pessoas que não possuissem detrerminados requisitos, implicitamente considerados importantes para a referida função.
Mais tarde, numa sociedade em mudança acelerada, em que se assistiu a compreensíveis inversões de valores, e outras menos compreensíveis, foi-se percebendo que algumas das características "implicitamente" requeridas tinham que ver com preconceitos.
Que as aeromoças (hospedeiras de bordo) tivessem de ser elegantes e bonitas; que os locutores não pudessem ter pronúncias oriundas de fora de Lisboa; ocorrem-me estes dois exemplos.
Não impede que me arrepie sempre, que a jovem que faz o anúncio a um Banco, não seja capaz de dizer "crescem", na frase: «Valores que crescem consigo».
Ela diz «cressem». Em vários anúncios com ligeiras variantes, a mesma jovem, de resto com excelente voz, insiste: «Valores que cressem consigo!»
Não digo que a despeçam, obviamente. Nem mesmo que a mudem de anúncio.
Não poderiam arranjar-lhe outra palavra?
quarta-feira, dezembro 12, 2012
sexta-feira, dezembro 07, 2012
O TEMPO DESFAZ O AMOR?
Amamos uma pessoa no presente.
De cada vez que nos separamos dessa pessoa, mesmo à distância, continuamos a amá-la.
Se ficamos três dias sem a ver, amamo-la ainda durante essa ausência. E até por uma semana, ou por meses - e mesmo que passem anos até ao seguinte reencontro.
Mas, por essa ordem de ideias, será que posso dizer que amo ainda uma pessoa que não tornei a ver - e possivelmente nunca mais verei?
Amo - realmente - ainda - o meu pai, que faleceu?
Ou o meu primeiro amor, que em nenhum momento me lembro de ter "desligado", ou seja, ter deixado de amar?
Ama-se sem expectativas de reencontro? E por que não? O amor platónico não é também um amor sem expectativas?
De cada vez que nos separamos dessa pessoa, mesmo à distância, continuamos a amá-la.
Se ficamos três dias sem a ver, amamo-la ainda durante essa ausência. E até por uma semana, ou por meses - e mesmo que passem anos até ao seguinte reencontro.
Mas, por essa ordem de ideias, será que posso dizer que amo ainda uma pessoa que não tornei a ver - e possivelmente nunca mais verei?
Amo - realmente - ainda - o meu pai, que faleceu?
Ou o meu primeiro amor, que em nenhum momento me lembro de ter "desligado", ou seja, ter deixado de amar?
Ama-se sem expectativas de reencontro? E por que não? O amor platónico não é também um amor sem expectativas?
segunda-feira, dezembro 03, 2012
AGORA SIM
Ao fim de tanto tempo a explicar-me que a causa da crise era eu ter andado a viver acima das minhas possibilidades, isso tornou-se agora, finalmente, realmente verdade.
Num momento em que comer todos os dias e todos os dias ter de dar de comer aos filhos é um luxo, não tenham dúvidas: vivo infinitamente acima das minhas possibilidades. E redundantemente: "viver" é já, em Portugal, viver acima das possibilidades.
Num momento em que comer todos os dias e todos os dias ter de dar de comer aos filhos é um luxo, não tenham dúvidas: vivo infinitamente acima das minhas possibilidades. E redundantemente: "viver" é já, em Portugal, viver acima das possibilidades.
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profecias que se auto-realizam
quinta-feira, novembro 08, 2012
PERGUNTAS MAIS INTERESSANTES DO QUE A RESPOSTA QUE TENHO PARA DAR
«Pai, tu também és professor na escola do Richter?»
domingo, outubro 28, 2012
ÁLCOOL
Há que reconhecer que sofro de um preocupante problema com o álcool.
O problema conta-se numa palavra: acabou-se-me o álcool em casa...
O problema conta-se numa palavra: acabou-se-me o álcool em casa...
sexta-feira, outubro 12, 2012
EDUCAÇÃO SEXUAL
Como professor, observo que, ao contrário do que tendemos a esperar, os jovens são razoavelmente ignorantes em matéria de sexo.
Pensavam que eles sabiam tudo? Seguramente mais do que os adultos? Que faz sentido o preconceito segundo o qual «parece que já nascem ensinados»? Ora. Patranhas.
Qualquer sondagem entre os mais novos revela que estes acreditam que, por exemplo, se o coito for praticado de pé, não decorrerá daí qualquer gravidez; há os que asseveram que, «na primeira vez», não se engravida.
Ainda bem que existem, afinal, adultos que os instruam. [Teoricamente, como é evidente].
Vejamos o meu caso. Nos meus cinquenta e tal (mas o "tal" permanece um segredo de Estado) não me sobram já quaisquer preconceitos. Sei perfeitamente que se engravida sempre. Em qualquer situação. Seja qual for a posição. Mesmo de se encostarem os pés frios a pés frios, sob os lençóis, podem nascer crianças. Podem nascer? Nascem de certeza! Engravida-se nem que a vagina se mantenha intocada. Mãos, língua, ânus, nariz, para efeitos de engravidamento vai dar tudo ao mesmo...
E sei que se engravida, portanto, ainda que o sexo se pratique por via das orelhas.
Ou não conheciam a expressão "emprenhar pelos ouvidos"?
Essa particular gravidez, se não me engano, designa-se "otite".
Pensavam que eles sabiam tudo? Seguramente mais do que os adultos? Que faz sentido o preconceito segundo o qual «parece que já nascem ensinados»? Ora. Patranhas.
Qualquer sondagem entre os mais novos revela que estes acreditam que, por exemplo, se o coito for praticado de pé, não decorrerá daí qualquer gravidez; há os que asseveram que, «na primeira vez», não se engravida.
Ainda bem que existem, afinal, adultos que os instruam. [Teoricamente, como é evidente].
Vejamos o meu caso. Nos meus cinquenta e tal (mas o "tal" permanece um segredo de Estado) não me sobram já quaisquer preconceitos. Sei perfeitamente que se engravida sempre. Em qualquer situação. Seja qual for a posição. Mesmo de se encostarem os pés frios a pés frios, sob os lençóis, podem nascer crianças. Podem nascer? Nascem de certeza! Engravida-se nem que a vagina se mantenha intocada. Mãos, língua, ânus, nariz, para efeitos de engravidamento vai dar tudo ao mesmo...
E sei que se engravida, portanto, ainda que o sexo se pratique por via das orelhas.
Ou não conheciam a expressão "emprenhar pelos ouvidos"?
Essa particular gravidez, se não me engano, designa-se "otite".
sexta-feira, setembro 21, 2012
AO QUE PARECIA O FUTURO
Passeava o cão num descampado, diante da sua vivenda e do Volvo estacionado à porta, quando, subitamente, estacou.
Bart, surpreendido, aquietou-se também, sentado sobre as patas traseiras: aproveitou para coçar uma pulga teimosa.
Emanuel percebeu que já estivera em face daquela mesma imagem: uma vivenda branca (ainda ele, então garoto, não possuía vivenda alguma), um Volvo (da mesma cor que este: um automóvel que a criança de então não conhecia) e um cão pela trela.
Lembrou-se de onde e quando visitara aquela imagem. Ou esta o visitara a ele. Num sonho de infância. Havia uma divindade, um ser minúsculo, ou talvez um extra-terrestre, que lhe soprava ao ouvido:
«Esta é uma imagem do teu futuro. Queres ver mais? Ou aceitas o teu futuro tal como o vês?»
Emanuel tinha aceite. Nem pensou mais. Uma vivenda branca, que sentiu que era sua? De dois andares? Uma carrinha cor de café com leite, sob o mesmo sentimento de posse? Um cão, com o qual passeava por um descampado? Aceitou, assinou um papel e acordou - de um sonho que, entretanto, esqueceu por completo.
Recordou-o na íntegra. Poderia afinal não ter sido um sonho?
Poderia ter havido mesmo um pequeno deus, que o fizera assinar um compromisso de aceitação?
Apeteceu-lhe gritar. Nunca sabemos nada. Enganamo-nos sempre. Como poderia ter compreendido a perfídia? Como saberia ele que entretanto sobreviria uma crise fatal, não teria dinheiro para pagar aquela casa, não conseguindo, porém, libertar-se dela - enorme, sempre suja, impossível de limpar, acumulando lixo nos dois andares - porque não aparecia ninguém capaz de a comprar?
Como podia ter percebido, em face da imagem que o ser lhe desvendava, que aquele automóvel fora uma pechincha quando o seu irmão trabalhara na Volvo, mas, entretanto, se tornara um sorvedouro, que lhe levava, todos os meses, uma percentagem doida do seu ordenado já deformado por cortes e carências? Como havia de perceber que o gasóleo custaria tamanhos preços? E que também do Volvo não havia maneira de se libertar, a não ser vendendo-o por menos do que o que ainda teria de pagar por ele?
Olhou para o cão. Podia ter adivinhado que Bart não seria, realmente, o seu cão? Que era o bicho do vizinho careca, que ele se comprometera a passear todas as manhãs, às seis da manhã, a troco de uns tostões para o pequeno-almoço?
Olhou para o céu (como poderia ter olhado para o chão ou para outro lugar qualquer, ignorando em absoluto qual a proveniência ou a habitação da criatura) e gritou:
«Mentiste-me!»
Ouviu a resposta. De onde? De quem?
Ah, era a velha à janela:
«Pouco barulho!»
Bart, surpreendido, aquietou-se também, sentado sobre as patas traseiras: aproveitou para coçar uma pulga teimosa.
Emanuel percebeu que já estivera em face daquela mesma imagem: uma vivenda branca (ainda ele, então garoto, não possuía vivenda alguma), um Volvo (da mesma cor que este: um automóvel que a criança de então não conhecia) e um cão pela trela.
Lembrou-se de onde e quando visitara aquela imagem. Ou esta o visitara a ele. Num sonho de infância. Havia uma divindade, um ser minúsculo, ou talvez um extra-terrestre, que lhe soprava ao ouvido:
«Esta é uma imagem do teu futuro. Queres ver mais? Ou aceitas o teu futuro tal como o vês?»
Emanuel tinha aceite. Nem pensou mais. Uma vivenda branca, que sentiu que era sua? De dois andares? Uma carrinha cor de café com leite, sob o mesmo sentimento de posse? Um cão, com o qual passeava por um descampado? Aceitou, assinou um papel e acordou - de um sonho que, entretanto, esqueceu por completo.
Recordou-o na íntegra. Poderia afinal não ter sido um sonho?
Poderia ter havido mesmo um pequeno deus, que o fizera assinar um compromisso de aceitação?
Apeteceu-lhe gritar. Nunca sabemos nada. Enganamo-nos sempre. Como poderia ter compreendido a perfídia? Como saberia ele que entretanto sobreviria uma crise fatal, não teria dinheiro para pagar aquela casa, não conseguindo, porém, libertar-se dela - enorme, sempre suja, impossível de limpar, acumulando lixo nos dois andares - porque não aparecia ninguém capaz de a comprar?
Como podia ter percebido, em face da imagem que o ser lhe desvendava, que aquele automóvel fora uma pechincha quando o seu irmão trabalhara na Volvo, mas, entretanto, se tornara um sorvedouro, que lhe levava, todos os meses, uma percentagem doida do seu ordenado já deformado por cortes e carências? Como havia de perceber que o gasóleo custaria tamanhos preços? E que também do Volvo não havia maneira de se libertar, a não ser vendendo-o por menos do que o que ainda teria de pagar por ele?
Olhou para o cão. Podia ter adivinhado que Bart não seria, realmente, o seu cão? Que era o bicho do vizinho careca, que ele se comprometera a passear todas as manhãs, às seis da manhã, a troco de uns tostões para o pequeno-almoço?
Olhou para o céu (como poderia ter olhado para o chão ou para outro lugar qualquer, ignorando em absoluto qual a proveniência ou a habitação da criatura) e gritou:
«Mentiste-me!»
Ouviu a resposta. De onde? De quem?
Ah, era a velha à janela:
«Pouco barulho!»
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a crise leva-nos a inventar estórias destas
terça-feira, agosto 28, 2012
FELICIDADES
A felicidade tem sempre características singulares, como se trouxesse inscrito em si o nome de alguém.
Eis por que tantas pessoas possuem a felicidade - e, no entanto, não são felizes. Simplesmente acontece que a felicidade que possuem não traz o seu nome.
Eis por que tantas pessoas possuem a felicidade - e, no entanto, não são felizes. Simplesmente acontece que a felicidade que possuem não traz o seu nome.
domingo, agosto 19, 2012
sábado, agosto 04, 2012
QUANDO AS CONDIÇÕES SÃO UMA MERDA É QUE SE DEVE TENTAR TRABALHAR PARA A EXCELÊNCIA
Deixem-me falar sem papas na língua, por muito politicamente incorrecto que soe: a participação do "grupo" português nas olimpíadas está a ser uma vergonha.
Podem dizer-me que aqueles em que apostaríamos não puderam comparecer. Uns, porque estão velhos, outro porque se lesionou, nem aquele que também se não encontra em condições. Mas não seria essa a porta por onde, precisamente, poderiam vingar e vencer os que não esperávmos? Os jovens de talento e força de vontade, os desconhecidos à espreita? Os que treinaram, sofreram e se prepararam para arriscar e dar tudo por tudo? Não há surpresas!? Não há, nas gerações seguintes, ninguém que rebente com as expectativas? Mas os anteriores - os que não estão hoje presentes -, foram surpresas, rebentamentos inesperados.
Também me falam das "condições": que o "grupo" português não teve apoios, nem dinheriro, nem isto, nem aquilo. Deixem-me rir. E os atletas africanos, que nem sapatos usavam , aqueles que apareceram a correr descalços, e ganharam? Eu lembro-me bem. Os que trabalham e porfiam, não esperam que os apoios façam o trabalho por eles. Os que lutam, acabam por vencer, com subsídio a mais ou a menos. Que valeriam os apoios de Carlos Lopes ou Rosa Mota?
As condições são péssimas - já se sabe: a crise é tramada, o país incipiente e, o governo, uma merda. E então?
Podem dizer-me que aqueles em que apostaríamos não puderam comparecer. Uns, porque estão velhos, outro porque se lesionou, nem aquele que também se não encontra em condições. Mas não seria essa a porta por onde, precisamente, poderiam vingar e vencer os que não esperávmos? Os jovens de talento e força de vontade, os desconhecidos à espreita? Os que treinaram, sofreram e se prepararam para arriscar e dar tudo por tudo? Não há surpresas!? Não há, nas gerações seguintes, ninguém que rebente com as expectativas? Mas os anteriores - os que não estão hoje presentes -, foram surpresas, rebentamentos inesperados.
Também me falam das "condições": que o "grupo" português não teve apoios, nem dinheriro, nem isto, nem aquilo. Deixem-me rir. E os atletas africanos, que nem sapatos usavam , aqueles que apareceram a correr descalços, e ganharam? Eu lembro-me bem. Os que trabalham e porfiam, não esperam que os apoios façam o trabalho por eles. Os que lutam, acabam por vencer, com subsídio a mais ou a menos. Que valeriam os apoios de Carlos Lopes ou Rosa Mota?
As condições são péssimas - já se sabe: a crise é tramada, o país incipiente e, o governo, uma merda. E então?
terça-feira, julho 10, 2012
LUSO-CARANGUEJO
Num restaurante que tenho frequentado, víamos um balde de caranguejos vivos.
Um cliente reparou que um dos caranguejos estava quase a chegar à borda do balde, afligiu-se e preveniu:
«Oh senhor. Olhe lá, que está ali um a escapar.»
«Não se preocupe», respondeu o proprietário. «Os caranguejos são como os portugueses. Quando um está a tentar chegar a algum lugar, os outros se encarregam de o puxar para o fundo...»
Um cliente reparou que um dos caranguejos estava quase a chegar à borda do balde, afligiu-se e preveniu:
«Oh senhor. Olhe lá, que está ali um a escapar.»
«Não se preocupe», respondeu o proprietário. «Os caranguejos são como os portugueses. Quando um está a tentar chegar a algum lugar, os outros se encarregam de o puxar para o fundo...»
QUANDO A INOCÊNCIA FAZ PENSAR
Daisy, muito orgulhosa por ter passado para a segunda classe, pergunta-me:
«E tu, pai? Para o ano vais fazer o quê?»
Respondo:
«O mesmo que faço este ano, Daisy. Sou professor.»
«Então quer dizer que chumbaste, não é pai?»
«E tu, pai? Para o ano vais fazer o quê?»
Respondo:
«O mesmo que faço este ano, Daisy. Sou professor.»
«Então quer dizer que chumbaste, não é pai?»
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ser professor é em si mesmo um chumbo
quarta-feira, junho 27, 2012
DE LENA EM LENA, ATÉ À DERROTA FINAL
A primeira vez em que, na minha fase de vida já adulto e já autónomo, fui viver para uma casa que não pertencia a um bairro camarário, decidi dar-me ao luxo de contratar uma mulher-a-dias.
A mulher-a-dias veio a uma reunião. Chamava-se Lena. Estava tão bem vestida e arranjada com tal bom gosto, que me perguntei qual de nós dois ia ao engano. Ou melhor: qual de nós dois não sabia o que era uma "mulher-a-dias". Não havia engano: aquela jovem de longos cabelos loiros, saia-casaco bege e salto alto, que parecia uma secretária bem paga, veio a ser por muitos anos a mulher-a-dias em que eu confiava plenamente, com quem houve necessidade de ajustes e discussões, mas me deixava sempre a casa num brinco. O que é dizer muito, porque existia então Dunga: o saudoso Dunga, que nunca primou pela higiene e não se esquecia de demarcar regularmente o território.
A Lena foi-se embora quando teve de ir. Quando a vida apertou, o dinheiro ia escasseando, alimentávamos duas crianças e eu já não acreditava que viesse a tornar-me um escritor famoso.
Passados estes anos - dez? quinze? - que mudou na minha vida?
Bem. Continuo a não crer que venha a ser um escritor famoso. [Quando às vezes me vem do fundo da alma uma espécie de fé no futuro, o psiquiatra pergunta-me há quanto tempo não tomo a medicação]. Portanto, não mudei nesse aspecto.
Curiosamente, um outro aspecto em que tudo voltou ao mesmo é que contratei uma mulher-a-dias. E que esta se chama Lena.
A actual Lena sofre de perturbações. Tem um marido que sofre de perturbações. É um homem grande e louro, com voz de trovão, que vem, com maus modos, despejá-la à minha porta, num daqueles carrinhos estranhos, de dois lugares, que não sei a que são movidos.
Esta não veste como uma secretária bem paga. Usa uma t-shirt com a imagem do Incrível Hulk, que me suscitou duas perguntas de mim para mim. A primeira: Mas quem lhe deu a minha camisola? A segunda: Que ser irónico percebeu que a do Incrível Hulk era a t-shirt indicada?
Esta Lena é muito baixa, muito grossa e tem pêlos, como arames, pelas pernas fora.
Sei que acabo de escrever um texto infame de preconceito e cinismo. Mas para quem tenha olhos para ver mais longe, é um estudo científico:
A mudança de uma Lena para outra Lena como mulher-a-dias do que já foi uma família de classe média, quiçá classe média alta, diz mais sobre esta crise do que várias páginas de uma exaustiva dissertação carregada de gráficos...
A mulher-a-dias veio a uma reunião. Chamava-se Lena. Estava tão bem vestida e arranjada com tal bom gosto, que me perguntei qual de nós dois ia ao engano. Ou melhor: qual de nós dois não sabia o que era uma "mulher-a-dias". Não havia engano: aquela jovem de longos cabelos loiros, saia-casaco bege e salto alto, que parecia uma secretária bem paga, veio a ser por muitos anos a mulher-a-dias em que eu confiava plenamente, com quem houve necessidade de ajustes e discussões, mas me deixava sempre a casa num brinco. O que é dizer muito, porque existia então Dunga: o saudoso Dunga, que nunca primou pela higiene e não se esquecia de demarcar regularmente o território.
A Lena foi-se embora quando teve de ir. Quando a vida apertou, o dinheiro ia escasseando, alimentávamos duas crianças e eu já não acreditava que viesse a tornar-me um escritor famoso.
Passados estes anos - dez? quinze? - que mudou na minha vida?
Bem. Continuo a não crer que venha a ser um escritor famoso. [Quando às vezes me vem do fundo da alma uma espécie de fé no futuro, o psiquiatra pergunta-me há quanto tempo não tomo a medicação]. Portanto, não mudei nesse aspecto.
Curiosamente, um outro aspecto em que tudo voltou ao mesmo é que contratei uma mulher-a-dias. E que esta se chama Lena.
A actual Lena sofre de perturbações. Tem um marido que sofre de perturbações. É um homem grande e louro, com voz de trovão, que vem, com maus modos, despejá-la à minha porta, num daqueles carrinhos estranhos, de dois lugares, que não sei a que são movidos.
Esta não veste como uma secretária bem paga. Usa uma t-shirt com a imagem do Incrível Hulk, que me suscitou duas perguntas de mim para mim. A primeira: Mas quem lhe deu a minha camisola? A segunda: Que ser irónico percebeu que a do Incrível Hulk era a t-shirt indicada?
Esta Lena é muito baixa, muito grossa e tem pêlos, como arames, pelas pernas fora.
Sei que acabo de escrever um texto infame de preconceito e cinismo. Mas para quem tenha olhos para ver mais longe, é um estudo científico:
A mudança de uma Lena para outra Lena como mulher-a-dias do que já foi uma família de classe média, quiçá classe média alta, diz mais sobre esta crise do que várias páginas de uma exaustiva dissertação carregada de gráficos...
terça-feira, junho 19, 2012
DIGNIDADE
Percebi, um destes dias há algum tempo já, que a palavra "dignidade" pode ser usada de uma forma muito peculiar, associada a um nível simbólico, e significando: «convém-me ter isto, não só porque me convém mesmo e me apetece muito tê-lo, mas, há que percebê-lo bem, porque é um símbolo que levará a que me respeitem como mereço.»
Lembro-me de que, numa altura em que o país bradava contra a injusta prerrogativa, exclusiva dos deputados, de decidir os seus próprios aumentos de ordenado, Almeida Santos apareceu na televisão dizendo: «É uma questão de dignidade. Não faz sentido que os deputados não recebam condignamente, porque é a própria dignificação da política que exige esse ajustamento.»
Este argumento tem, em múltiplas versões, continuado na ordem do dia. Os professores de Educação Física andam muito enervados, por exemplo, porque a classificação da sua disciplina deixa de contar para a média dos alunos. Até tenderia a compreendê-los - e a irritar-me, quando penso que se trata de uma medida certamente fabricada para favorecer algum filho ou sobrinho, ou neto ou enteado de um ministro, ou de um secretário, ou da criada de algum líder político. Em síntese, de uma criança que quer entrar para medicina, está-se mesmo a ver, e a quem a nota de Educação Física escangalha a média. Mas não posso entender que se pense que a dignidade da disciplina depende de que a sua nota conte ou não conte. É verdade que existe um preconceito: mas esse preconceito não deixaria de existir pelo facto de a nota desta disciplina pesar como as outras, tal como não desapareceu com a aparência científica de que os professores de Educação Física tentaram revestir o seu trabalho, entre papéis, planificações, grelhas, quantificações: tudo o que veio transformando as aulas de exercício físico numa espécie de burocracia de doutorados em luta contra o seu antigo complexo de inferioridade.
Com a disciplina de filosofia, aliás [de que sou professor], passa-se algo análogo. Sabiam que há uma Associação qualquer de filosofia (constituída, como é bom de ver, por gente de um elementaríssimo senso comum), a qual advoga, há anos, que a filosofia deveria ser sujeita a exame, por razões de "dignidade" da disciplina? Deus do céu! As coisas que se dizem. Os tratos a que submetem a palavra. O grave que me parece professores de filosofia não captarem que esta disciplina, no seu exercício mais sério e mais nobre, tem de ser, por natureza, o contrário de uma "máquina de preparação de meninos para exame". O que se tem visto prova como tenho razão: basta consultar as sebentas de preparação para o exame de filosofia; basta consultar as provas-modelo. Está lá tudo o que mostra que um exame de filosofia serve para reduzir «o trabalho de reflexão crítica» a um conjunto de definições para decorar, frases feitas e chavões. A organogramas, até. Dudu, meu filho, preparando-se para o exame, pedia-me livros: o que ler de David Hume ou de Kant? E que tal aquele, sobre ética, da autoria de um professor norte-americano, e de que lhe falo tanto?
Fui eu que, depois de me ter confrontado com as sebentas e com as provas-modelo, acabei opor lhe dizer: «Não vale a pena, rapaz! Decora antes isto!»
Lembro-me de que, numa altura em que o país bradava contra a injusta prerrogativa, exclusiva dos deputados, de decidir os seus próprios aumentos de ordenado, Almeida Santos apareceu na televisão dizendo: «É uma questão de dignidade. Não faz sentido que os deputados não recebam condignamente, porque é a própria dignificação da política que exige esse ajustamento.»
Este argumento tem, em múltiplas versões, continuado na ordem do dia. Os professores de Educação Física andam muito enervados, por exemplo, porque a classificação da sua disciplina deixa de contar para a média dos alunos. Até tenderia a compreendê-los - e a irritar-me, quando penso que se trata de uma medida certamente fabricada para favorecer algum filho ou sobrinho, ou neto ou enteado de um ministro, ou de um secretário, ou da criada de algum líder político. Em síntese, de uma criança que quer entrar para medicina, está-se mesmo a ver, e a quem a nota de Educação Física escangalha a média. Mas não posso entender que se pense que a dignidade da disciplina depende de que a sua nota conte ou não conte. É verdade que existe um preconceito: mas esse preconceito não deixaria de existir pelo facto de a nota desta disciplina pesar como as outras, tal como não desapareceu com a aparência científica de que os professores de Educação Física tentaram revestir o seu trabalho, entre papéis, planificações, grelhas, quantificações: tudo o que veio transformando as aulas de exercício físico numa espécie de burocracia de doutorados em luta contra o seu antigo complexo de inferioridade.
Com a disciplina de filosofia, aliás [de que sou professor], passa-se algo análogo. Sabiam que há uma Associação qualquer de filosofia (constituída, como é bom de ver, por gente de um elementaríssimo senso comum), a qual advoga, há anos, que a filosofia deveria ser sujeita a exame, por razões de "dignidade" da disciplina? Deus do céu! As coisas que se dizem. Os tratos a que submetem a palavra. O grave que me parece professores de filosofia não captarem que esta disciplina, no seu exercício mais sério e mais nobre, tem de ser, por natureza, o contrário de uma "máquina de preparação de meninos para exame". O que se tem visto prova como tenho razão: basta consultar as sebentas de preparação para o exame de filosofia; basta consultar as provas-modelo. Está lá tudo o que mostra que um exame de filosofia serve para reduzir «o trabalho de reflexão crítica» a um conjunto de definições para decorar, frases feitas e chavões. A organogramas, até. Dudu, meu filho, preparando-se para o exame, pedia-me livros: o que ler de David Hume ou de Kant? E que tal aquele, sobre ética, da autoria de um professor norte-americano, e de que lhe falo tanto?
Fui eu que, depois de me ter confrontado com as sebentas e com as provas-modelo, acabei opor lhe dizer: «Não vale a pena, rapaz! Decora antes isto!»
quinta-feira, junho 14, 2012
QUANDO FUI HUMBERTO
A história que eu vou contar é absolutamente inverosímil, mas passou-se comigo (a quem sucedem aliás diversas improbabilidades) e é, pois, tão verídica como estar neste momento a narrá-la.
O local foi o Pão-de-Açúcar de Cascais. Passaram muitos anos. Eu era mais jovem, menos gordo, menos triste, certamente sem filhos. Folheava uma banda desenhada. Por detrás de mim, surdiu bruscamente um homem careca e de óculos, que me disse:
«Com que então a ver bonecada, com essa idade?»
Não sei bem como se responde a isto, mas tomei a observação por uma brincadeira, não por um insulto, de maneira que respondi:
«Pois é, pois é.»
«Então como vai a vida?»
O homem queria, portanto, conversa. Não seria particularmente estranho; o mundo está carregado de solitários em busca de companhia. Mantive o registo:
«O mesmo de sempre.»
«Chegou há pouco tempo, não foi?»
Interpretei que se referia à minha entrada no Pão-de-Açúcar. Retorqui:
«Há relativamente pouco tempo, sim.»
«E como está aquilo?»
Aqui, qualquer outra pessoa teria principiado a detectar o equívoco. Eu detectei, de resto, mas senti-me impotente para lutar contra ele ou, sequer, para o esclarecer. Deixara de vez o álbum de banda desenhada, e afirmei: «Está bem, está bem.»
«Aquilo é bestial. Foram os melhores anos da minha vida. Infelizmente, não creio que possa lá voltar. Você ainda regressa a Macau, Humberto?»
Nunca estive em Macau. Não me chamo Humberto. O velho careca e de óculos confundira-me com um certo Humberto que tinha estado em Macau. Era tempo de pôr cobro à confusão. Mas não fui capaz, porque tudo o que me vinha à cabeça era: o que ficaria ele a pensar - que eu tinha estado a divertir-me à sua custa? Como explicar-lhe que tivesse deixado a conversa arrastar-se, no seu tom vagamente surrealista, durante tanto tempo?
De modo que, creiam, lhe respondi:
«Sou bem capaz de voltar. Nunca se sabe.»
«E a mulher e os filhos, também vieram?»
Repentinamente, a angústia que eu vinha sentido tornou-se-me insuportável. Acabava de perceber que, como num romance de Kafka, esta conversa podia prolongar-se por toda a eternidade, expondo-me, em cada instante, à possibilidade de entrar em contradição, de alguma incongruência, de falhas várias. Não é possível manter-se indefinidamente uma personagem sobre quem se não sabia rigorosamente nada um instante antes de se abrir a boca.
E, nesta angústia, tomei uma decisão porventura ainda mais absurda. Rematei:
«Ah! Peço-lhe desculpa, mas deve haver uma confusão. É perfeitamente compreensível, porque conheço um senhor parecido consigo, que esteve em Macau. Além disso também me chamo Humberto! Mas não tenho mulher nem filhos. E o senhor não é quem eu pensava. Não se chama... aaaah... Erasmo, pois não? Logo vi. Olhe, muito boa noite, e desculpe o equívoco»
Voltei-lhe costas e desapareci. Sentindo-me muito, muito, muito esquisito.
O local foi o Pão-de-Açúcar de Cascais. Passaram muitos anos. Eu era mais jovem, menos gordo, menos triste, certamente sem filhos. Folheava uma banda desenhada. Por detrás de mim, surdiu bruscamente um homem careca e de óculos, que me disse:
«Com que então a ver bonecada, com essa idade?»
Não sei bem como se responde a isto, mas tomei a observação por uma brincadeira, não por um insulto, de maneira que respondi:
«Pois é, pois é.»
«Então como vai a vida?»
O homem queria, portanto, conversa. Não seria particularmente estranho; o mundo está carregado de solitários em busca de companhia. Mantive o registo:
«O mesmo de sempre.»
«Chegou há pouco tempo, não foi?»
Interpretei que se referia à minha entrada no Pão-de-Açúcar. Retorqui:
«Há relativamente pouco tempo, sim.»
«E como está aquilo?»
Aqui, qualquer outra pessoa teria principiado a detectar o equívoco. Eu detectei, de resto, mas senti-me impotente para lutar contra ele ou, sequer, para o esclarecer. Deixara de vez o álbum de banda desenhada, e afirmei: «Está bem, está bem.»
«Aquilo é bestial. Foram os melhores anos da minha vida. Infelizmente, não creio que possa lá voltar. Você ainda regressa a Macau, Humberto?»
Nunca estive em Macau. Não me chamo Humberto. O velho careca e de óculos confundira-me com um certo Humberto que tinha estado em Macau. Era tempo de pôr cobro à confusão. Mas não fui capaz, porque tudo o que me vinha à cabeça era: o que ficaria ele a pensar - que eu tinha estado a divertir-me à sua custa? Como explicar-lhe que tivesse deixado a conversa arrastar-se, no seu tom vagamente surrealista, durante tanto tempo?
De modo que, creiam, lhe respondi:
«Sou bem capaz de voltar. Nunca se sabe.»
«E a mulher e os filhos, também vieram?»
Repentinamente, a angústia que eu vinha sentido tornou-se-me insuportável. Acabava de perceber que, como num romance de Kafka, esta conversa podia prolongar-se por toda a eternidade, expondo-me, em cada instante, à possibilidade de entrar em contradição, de alguma incongruência, de falhas várias. Não é possível manter-se indefinidamente uma personagem sobre quem se não sabia rigorosamente nada um instante antes de se abrir a boca.
E, nesta angústia, tomei uma decisão porventura ainda mais absurda. Rematei:
«Ah! Peço-lhe desculpa, mas deve haver uma confusão. É perfeitamente compreensível, porque conheço um senhor parecido consigo, que esteve em Macau. Além disso também me chamo Humberto! Mas não tenho mulher nem filhos. E o senhor não é quem eu pensava. Não se chama... aaaah... Erasmo, pois não? Logo vi. Olhe, muito boa noite, e desculpe o equívoco»
Voltei-lhe costas e desapareci. Sentindo-me muito, muito, muito esquisito.
terça-feira, junho 12, 2012
hoje é assim
Primeiro, os dentes.
São sempre os dentes os primeiros. Chama-se pedra, chama-se cáries, chama-se tártaro.
As rugas, como teias. Não, não como teias: como fissuras que se abrem num solo seco.
Ombros que decaem. Feições que decaem. O universo que decai a partir de um corpo.
Há um joelho que principia a estalar. Se ao menos não doesse, mas dói. Ou se se limitasse a doer, se unicamente doesse, mas não: desfaz-se. É o osso que se transforma em caspa, até que um dia não exista joelho, o corpo procure erguer-se de uma cama e as pernas desabem e se acumulem no chão como um monte de roupa velha.
Caem pêlos. Caem ilusões. Os olhos não têm pontaria.
Sente-se fome de momentos de alegria, mas têm de ser breves, não vá o coração insuportá-los. E a verdade é que a menor alegria se sente sobretudo como arritmia.
A gravidade torna-se um problema grave.
Preferia coleccionar neste ecrã tudo o que ainda me faz feliz. Mas receio que os dedos não consigam... chegar... às teclas..........
São sempre os dentes os primeiros. Chama-se pedra, chama-se cáries, chama-se tártaro.
As rugas, como teias. Não, não como teias: como fissuras que se abrem num solo seco.
Ombros que decaem. Feições que decaem. O universo que decai a partir de um corpo.
Há um joelho que principia a estalar. Se ao menos não doesse, mas dói. Ou se se limitasse a doer, se unicamente doesse, mas não: desfaz-se. É o osso que se transforma em caspa, até que um dia não exista joelho, o corpo procure erguer-se de uma cama e as pernas desabem e se acumulem no chão como um monte de roupa velha.
Caem pêlos. Caem ilusões. Os olhos não têm pontaria.
Sente-se fome de momentos de alegria, mas têm de ser breves, não vá o coração insuportá-los. E a verdade é que a menor alegria se sente sobretudo como arritmia.
A gravidade torna-se um problema grave.
Preferia coleccionar neste ecrã tudo o que ainda me faz feliz. Mas receio que os dedos não consigam... chegar... às teclas..........
segunda-feira, junho 11, 2012
WAYNE, MIRÓ, BARNEY
Sou um amigo dos animais. Sempre fui um grato servo de sucessivos cães, o último dos quais, saudoso Dunga, me fugia regularmente, como se me desafiasse para que eu passasse noites, ao frio, procurando reencontrá-lo.
A partir de certa altura, os cães foram proscritos no reino da Dinamarca. Uma casa grande mas confusa, horários desajustados, miúdos em diferentes fases de rebeldia. Encontrei um cão, tentei trazê-lo comigo, mas não foi aceite. Ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado. O meu filho achou um gatinho, queríamos adoptá-lo, mas não tivemos sorte - o gato ficaria muito tempo só, no quintal fugia, dentro de casa, rasgando cortinados ou toalhas, nem pensar. Também ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado.
Certo dia, apareceu-me um cachorro em casa. Literalmente. No quintal, para onde algum monstro, ansioso por dele se libertar, o lançou estupidamente. Acordei, saía de casa, ouvi ganir, não liguei, pisei cocó. E, olhando para o canto, apercebi-me daquele piratinha, branco com manchas castanhas, uma pala castanha em redor do olho esquerdo. É um animal lindíssimo, que já teve três nomes e suscitou acesas discussões. Começou por ser Wayne. Propus Miró - o meu filho vetou. Concordámos com Barney.
E todos o aceitam bem. Ninguém tem coragem de o mandar embora. Ocupou a garagem. Assinala o seu território com urina e cocós particularmente mal-cheirosos. Rói, estraga e crava o dente fininho como uma agulha, ou uma fieira de agulhas, na carne tenra. Daisy chora. Dudu enerva-se. Enervamo-nos todos - ou seja, está perfeitamente integrado. É um de nós.
A partir de certa altura, os cães foram proscritos no reino da Dinamarca. Uma casa grande mas confusa, horários desajustados, miúdos em diferentes fases de rebeldia. Encontrei um cão, tentei trazê-lo comigo, mas não foi aceite. Ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado. O meu filho achou um gatinho, queríamos adoptá-lo, mas não tivemos sorte - o gato ficaria muito tempo só, no quintal fugia, dentro de casa, rasgando cortinados ou toalhas, nem pensar. Também ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado.
Certo dia, apareceu-me um cachorro em casa. Literalmente. No quintal, para onde algum monstro, ansioso por dele se libertar, o lançou estupidamente. Acordei, saía de casa, ouvi ganir, não liguei, pisei cocó. E, olhando para o canto, apercebi-me daquele piratinha, branco com manchas castanhas, uma pala castanha em redor do olho esquerdo. É um animal lindíssimo, que já teve três nomes e suscitou acesas discussões. Começou por ser Wayne. Propus Miró - o meu filho vetou. Concordámos com Barney.
E todos o aceitam bem. Ninguém tem coragem de o mandar embora. Ocupou a garagem. Assinala o seu território com urina e cocós particularmente mal-cheirosos. Rói, estraga e crava o dente fininho como uma agulha, ou uma fieira de agulhas, na carne tenra. Daisy chora. Dudu enerva-se. Enervamo-nos todos - ou seja, está perfeitamente integrado. É um de nós.
sábado, junho 09, 2012
DEGRADAÇÃO DA ESPÉCIE
Numa conferência, lembro-me de ter ouvido o extraodinário João Lemos dizer, uma vez, que uma das razões essenciais para o salto na espécie humana, para além das mais divulgadas - erecção [salvo seja!], polegar oponível, ou seja, na formulação simplória e medíocre, «dialéctica pé-mão-cérebro» - se deveu à alimentação. Os primeiros hominídeos comiam ameijoas. Comiam certo tipo de peixe. Ómega: ómega é uma substância sobre a qual não me apetece (e não sou capaz) de dar informação acrescida, porque não estou para pesquisar. Mas a maioria do peixe possui "ómega", e isso terá sido decisivo no desenvolvimento cerebral, no desenvolvimento da inteligência, na evolução da espécie.
Algo de assustador me tem ameaçado nesta hipótese.
Preciso de dizer tudo?
Se a dieta foi essencial para o progresso da humanidade, não será a actual "dieta" dos adolescentes decisiva para a regressão da espécie? Para a decadência da humanidade? Em direcção ao fim da inteligência?
Fim do peixe. Fim de qualquer refeição sofisticada. MacDonald's, ou seja, fim de talheres - e, portanto, também uma interrupção física no desenvolvimento da dialéctica "mão-cérebro"? Muita carne? Demasiada gordura e ausência de ómega?
Pensem nisso. Alguém tem de pensar nisso. Eu prefiro não pensar nisso...
Algo de assustador me tem ameaçado nesta hipótese.
Preciso de dizer tudo?
Se a dieta foi essencial para o progresso da humanidade, não será a actual "dieta" dos adolescentes decisiva para a regressão da espécie? Para a decadência da humanidade? Em direcção ao fim da inteligência?
Fim do peixe. Fim de qualquer refeição sofisticada. MacDonald's, ou seja, fim de talheres - e, portanto, também uma interrupção física no desenvolvimento da dialéctica "mão-cérebro"? Muita carne? Demasiada gordura e ausência de ómega?
Pensem nisso. Alguém tem de pensar nisso. Eu prefiro não pensar nisso...
terça-feira, junho 05, 2012
A SELECÇÃO DE TODOS OS PORTUGUESES O RAIO QUE OS PARTA
Eu gosto de Portugal e dos portugueses. Sinceramente. Muita vez. Mas, por outro lado, os portugueses irritam-me. Sempre ou quase sempre.
Na derrota, mostram-se frequentemente admiráveis. É na esperança que os considero mais insuportáveis. Entendam-me: nada tenho de pessoal contra a Esperança, cunhada de um amigo meu. Nem contra a esperança como forma de expectativa positiva em relação ao futuro. É a esperança como forma de histeria e de patriotismo que me incomoda. A esperança como rasgo colectivo, em torno de uma «aposta no futuro» [para empregar as medíocres palavras do Presidente da República], a esperança como apoio patriótico à selecção portuguesa; a esperança na forma de um menino que deve ser um aluno exemplar, lendo, aos jogadores, aquele texto sobre o seu desejo de vir a «ser médico», mas só ficar em Portugal se «Portugal valer a pena», e patati patatá, porque cabe aos jogadores mostrar que Portugal vale a pena, somos um país de gente honesta e trabalhadora. Patati patatá.
É por isso que me encanta uma fotografia que recentemente vi.
Entre varandas onde se exibe a bandeira portuguesa, no exuberante apoio à divina selecção «de todos nós», está uma camisola dependurada de uma janela. Com estes dizeres:
«Quero que se foda a selecção. Eu estou desempregado!»
É isto.
Na derrota, mostram-se frequentemente admiráveis. É na esperança que os considero mais insuportáveis. Entendam-me: nada tenho de pessoal contra a Esperança, cunhada de um amigo meu. Nem contra a esperança como forma de expectativa positiva em relação ao futuro. É a esperança como forma de histeria e de patriotismo que me incomoda. A esperança como rasgo colectivo, em torno de uma «aposta no futuro» [para empregar as medíocres palavras do Presidente da República], a esperança como apoio patriótico à selecção portuguesa; a esperança na forma de um menino que deve ser um aluno exemplar, lendo, aos jogadores, aquele texto sobre o seu desejo de vir a «ser médico», mas só ficar em Portugal se «Portugal valer a pena», e patati patatá, porque cabe aos jogadores mostrar que Portugal vale a pena, somos um país de gente honesta e trabalhadora. Patati patatá.
É por isso que me encanta uma fotografia que recentemente vi.
Entre varandas onde se exibe a bandeira portuguesa, no exuberante apoio à divina selecção «de todos nós», está uma camisola dependurada de uma janela. Com estes dizeres:
«Quero que se foda a selecção. Eu estou desempregado!»
É isto.
sábado, maio 26, 2012
ADN
No caso de certas pessoas, a falta de educação tem certamente de ser genética.
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a estupidez é arrogante e tende a impor-se
quinta-feira, maio 17, 2012
UTOPIA
A célula de uma sociedade é, segundo o meu modelo utópico, o bairro.
Nunca o casal. A experiência tem-se encarregado de me mostrar que um homem e uma mulher não estão fabricados para conviverem quotidianamente. Que se amem, se encontrem, partilhem gloriosos momentos de euforia, muito bem. Mas a coexistência no dia-a-dia é, precisamente, a experiência de uma incompatibilidade permanente: seja o resultado a guerrilha desgastante ou a escravização e a infelicidade de um deles, a verdade é que se trata sempre da morte do sonho e do amor. Se as razões são genéticas, se culturais, ainda não decidi. Para já, basta-me o facto. [E se não se tratar de um casal heterossexual, podem as coisas funcionar melhor? Tenho muitas dúvidas...]
A célula não seria também a família nuclear, com a vinda de filhos que só brevemente não virão desarranjar e complicar o "agregado", com as suas fases, aprendizagens, rebeldias, tiranias, dramas e borbulhas; nem a família mais extensa, agravada pela multiplicação de conflitos geracionais e a óbvia falta de espaço; mas também não creio que a célula fosse, alternativamente, a "comuna": amigos que se reúnem para uma vivência colectiva, com diferentes sensibilidades e horários, diferentes momentos de boa ou de má disposição, partilhando toalhas e giletes. A reunião dos amigos tem de ser um dia de festa, brinde e brincadeira. Copos e conversa. Ritos e risos. Mais do que isto, parece-me excessivo.
O que significa, então, "o bairro"? Que estamos todos perto uns dos outros, mas em espaços demarcados. Que a minha casa não dista da casa da mulher que amo, mas ninguém me vem dar ordens sobre a gestão do espaço ou da economia, mesmo que eu deixe a roupa por apanhar. Neste bairro deverá haver, aliás, lavandarias e engomadorias a uma distância franqueável. As crianças ora estão comigo, ora estão com a mãe, com os avós ou com os nossos amigos - ou com os seus amigos. [E reparo que é um pouco para esse modelo que se encaminham, mas aí, de certa forma, por acaso, as "separações amigáveis"]
Nesta visão de uma sociedade evoluída, formada por bairros com trocas e ligações entre si, teriam de ser abolidas várias instituições sem outra utilidade que não a de engordar e crescer à custa dos cidadãos. O Estado. A Escola. Mas, antes de todas, a instituição que deverá ser abolida imediata e primeiramente é a associação do condomínio.
Nunca o casal. A experiência tem-se encarregado de me mostrar que um homem e uma mulher não estão fabricados para conviverem quotidianamente. Que se amem, se encontrem, partilhem gloriosos momentos de euforia, muito bem. Mas a coexistência no dia-a-dia é, precisamente, a experiência de uma incompatibilidade permanente: seja o resultado a guerrilha desgastante ou a escravização e a infelicidade de um deles, a verdade é que se trata sempre da morte do sonho e do amor. Se as razões são genéticas, se culturais, ainda não decidi. Para já, basta-me o facto. [E se não se tratar de um casal heterossexual, podem as coisas funcionar melhor? Tenho muitas dúvidas...]
A célula não seria também a família nuclear, com a vinda de filhos que só brevemente não virão desarranjar e complicar o "agregado", com as suas fases, aprendizagens, rebeldias, tiranias, dramas e borbulhas; nem a família mais extensa, agravada pela multiplicação de conflitos geracionais e a óbvia falta de espaço; mas também não creio que a célula fosse, alternativamente, a "comuna": amigos que se reúnem para uma vivência colectiva, com diferentes sensibilidades e horários, diferentes momentos de boa ou de má disposição, partilhando toalhas e giletes. A reunião dos amigos tem de ser um dia de festa, brinde e brincadeira. Copos e conversa. Ritos e risos. Mais do que isto, parece-me excessivo.
O que significa, então, "o bairro"? Que estamos todos perto uns dos outros, mas em espaços demarcados. Que a minha casa não dista da casa da mulher que amo, mas ninguém me vem dar ordens sobre a gestão do espaço ou da economia, mesmo que eu deixe a roupa por apanhar. Neste bairro deverá haver, aliás, lavandarias e engomadorias a uma distância franqueável. As crianças ora estão comigo, ora estão com a mãe, com os avós ou com os nossos amigos - ou com os seus amigos. [E reparo que é um pouco para esse modelo que se encaminham, mas aí, de certa forma, por acaso, as "separações amigáveis"]
Nesta visão de uma sociedade evoluída, formada por bairros com trocas e ligações entre si, teriam de ser abolidas várias instituições sem outra utilidade que não a de engordar e crescer à custa dos cidadãos. O Estado. A Escola. Mas, antes de todas, a instituição que deverá ser abolida imediata e primeiramente é a associação do condomínio.
sexta-feira, maio 11, 2012
A VIDA LÁ DE CIMA VISTA CÁ DE BAIXO
E é inevitável: assalta-me uma imensa tristeza quando penso na possibilidade de que, neste momento de crise e solidariedade nacionais, também Cristiano Ronaldo ou Tony Carreira possam perder o subsídio de férias e o de Natal.
segunda-feira, maio 07, 2012
A ESQUERDA E OS IMPOSTOS
Considero-me de esquerda por três razões, que pesam precisamente por esta ordem: 1. sociais; 2. culturais; 3. afectivas; 4. ideológicas.
O facto de a esquerda como ideologia, ou conjunto de ideologias, ser a última das minhas preocupações na posição que assumo, não significa que não "teorize". Faço-o, e abundantemente. Mal ou bem, mas com abundância. Significa só que não me sinto preso a teorias, e que desrespeito alegremente, quando me parece que assim deva ser, o património filosófico da esquerda, ou ideias que se admitiram como seus princípios e bandeiras.
A questão dos impostos entronca nestas considerações.
Porque sempre ouvi defender, à esquerda, que os impostos são o contributo, para a sociedade, do cidadão com mais posses; são o meio do equilíbrio e da justiça sociais. São o carimbo da solidariedade.
Sê-lo-iam, sem dúvida, numa sociedade correcta, com um Estado justo e marcado por preocupações de equidade. São porventura o contrário disso, quando se trata de sobrecarregar a classe média em tempos de crise, para que o seu dinheiro ajude a salvar Bancos e empresas que a má gestão e os salários inadmissíveis puseram em perigo. São o contrário disso, quando se trata de uma repartição desequilibrada, que engorda o próprio Estado, mas não a Saúde nem a Educação públicas. São o contrário disso quando se trata de partir a espinha dorsal à função pública, numa insensibilidade que brada aos céus. São-no, quando o "fisco" se transformou num monstro total, cego e surdo, que alia a burrice à burocracia, devorando haveres, não pagando o que deve a tempo, leiloando, em hasta pública, casas e bens de quem não pôde cumprir, lançando famílias inteiras na miséria, sem um "desculpe" nem uma tentativa de solução.
A importância dos impostos para o equilíbrio e a justiça sociais?
Senhores, ide à merda!
O facto de a esquerda como ideologia, ou conjunto de ideologias, ser a última das minhas preocupações na posição que assumo, não significa que não "teorize". Faço-o, e abundantemente. Mal ou bem, mas com abundância. Significa só que não me sinto preso a teorias, e que desrespeito alegremente, quando me parece que assim deva ser, o património filosófico da esquerda, ou ideias que se admitiram como seus princípios e bandeiras.
A questão dos impostos entronca nestas considerações.
Porque sempre ouvi defender, à esquerda, que os impostos são o contributo, para a sociedade, do cidadão com mais posses; são o meio do equilíbrio e da justiça sociais. São o carimbo da solidariedade.
Sê-lo-iam, sem dúvida, numa sociedade correcta, com um Estado justo e marcado por preocupações de equidade. São porventura o contrário disso, quando se trata de sobrecarregar a classe média em tempos de crise, para que o seu dinheiro ajude a salvar Bancos e empresas que a má gestão e os salários inadmissíveis puseram em perigo. São o contrário disso, quando se trata de uma repartição desequilibrada, que engorda o próprio Estado, mas não a Saúde nem a Educação públicas. São o contrário disso quando se trata de partir a espinha dorsal à função pública, numa insensibilidade que brada aos céus. São-no, quando o "fisco" se transformou num monstro total, cego e surdo, que alia a burrice à burocracia, devorando haveres, não pagando o que deve a tempo, leiloando, em hasta pública, casas e bens de quem não pôde cumprir, lançando famílias inteiras na miséria, sem um "desculpe" nem uma tentativa de solução.
A importância dos impostos para o equilíbrio e a justiça sociais?
Senhores, ide à merda!
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quinta-feira, maio 03, 2012
PARADOXO PATERNO
Meu filho: sinto-me às vezes desgastado, desgastadíssimo, mas não posso desistir de lutar contra ti, porque essa é a forma autêntica de lutar por ti
sábado, abril 28, 2012
REGRAS DE UTILIZAÇÃO DO QUARTO
Dudu e Daisy, meus filhos, têm uma interacção (como soi dizer) que me impressiona.
Ele irrita-a. Não consegue não. Ela grita, chora, protesta.
Eu ralho.
Dudu reage contrito, de cabeça baixa - ou, noutras vezes, responde-me: «Mas é assim que é suposto ser, pai». ["Suposto", como sabem, é o neologismo a que todos os jovens recorrem]. «É a relação de irmãos, funciona assim.»
O marmanjo tem dezasseis anos, a princesa seis. O papel dele, como irmão mais velho, pelos vistos, consiste em irritá-la.
O dela, em gritar por socorro. Adoro-os. Adoro-o. A ele também, embora me diga coisas como: «Eu, neste momento, não encontro em ti um pai. Só um Encarregado de Educação!» [Porque só me preocupo com as péssimas notas]
Num destes fins-de-semana foram arrumar o quarto da Daisy.
E quando fui verificar, deparei, na porta, com a seguinte lista de regras de utilização:
«REGRAS:
1) Não dar puns
2) Não estragar as coisas do quarto
3) Não desarrumar o quarto
4) Não entrar no quarto sem autorização
5) Não roubar as coisas do quarto
6) Não arrotar no quarto
7) Não comer nem beber no quarto
8) Descalçar os sapatos sujos da rua antes de entrar no quarto
Beijinhos, Daisy e Dudu»
Dudu é um jovem muito saudável, inteligente, preguiçoso, criativo, desarrumado e cheio de sentido de humor.
Tenho tido alguma dificuldade em conviver com as suas características negativas: a inteligência, a criatividade e o sentido de humor.
Ele irrita-a. Não consegue não. Ela grita, chora, protesta.
Eu ralho.
Dudu reage contrito, de cabeça baixa - ou, noutras vezes, responde-me: «Mas é assim que é suposto ser, pai». ["Suposto", como sabem, é o neologismo a que todos os jovens recorrem]. «É a relação de irmãos, funciona assim.»
O marmanjo tem dezasseis anos, a princesa seis. O papel dele, como irmão mais velho, pelos vistos, consiste em irritá-la.
O dela, em gritar por socorro. Adoro-os. Adoro-o. A ele também, embora me diga coisas como: «Eu, neste momento, não encontro em ti um pai. Só um Encarregado de Educação!» [Porque só me preocupo com as péssimas notas]
Num destes fins-de-semana foram arrumar o quarto da Daisy.
E quando fui verificar, deparei, na porta, com a seguinte lista de regras de utilização:
«REGRAS:
1) Não dar puns
2) Não estragar as coisas do quarto
3) Não desarrumar o quarto
4) Não entrar no quarto sem autorização
5) Não roubar as coisas do quarto
6) Não arrotar no quarto
7) Não comer nem beber no quarto
8) Descalçar os sapatos sujos da rua antes de entrar no quarto
Beijinhos, Daisy e Dudu»
Dudu é um jovem muito saudável, inteligente, preguiçoso, criativo, desarrumado e cheio de sentido de humor.
Tenho tido alguma dificuldade em conviver com as suas características negativas: a inteligência, a criatividade e o sentido de humor.
terça-feira, abril 24, 2012
AFORISMOS KAOSTICOS
Algumas almas, particularmente sensíveis, arrependem-se muito do mal que lhes fazem.
quarta-feira, abril 18, 2012
PRIMAVERA EQUIVOCADA
A minha vizinha de duzentos anos [que no! que no! falo injustamente nos seus "duzentos anos" só para que se não retire, deste texto, a ilação tola de que a olho de algum modo especial] vem à rua frescamente vestida. [Lá está! Como se eu reparasse nisso...]
Digo-lhe: «Ó vizinha, olhe que está frio! Não vem fresca de mais?»
Responde-me:
«Estamos na primavera. Quero lá saber do frio! Eu venho bem. O tempo é que se enganou, não fui eu...»
Digo-lhe: «Ó vizinha, olhe que está frio! Não vem fresca de mais?»
Responde-me:
«Estamos na primavera. Quero lá saber do frio! Eu venho bem. O tempo é que se enganou, não fui eu...»
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terça-feira, abril 17, 2012
SOCIOLOGIA DA ENTOAÇÃO
Sou professor de adolescentes de ambos os sexos.
Sou pai de um jovem de dezasseis anos ingratos e difíceis. [Não «ingratos» para ele, mas porque é um rapaz pouco agradecido]. E de uma menina de seis anos.
Com a experiência que tenho, pois, na relação com rapazes e raparigas, vou conhecendo as suas maneiras de entoar as palavras.
Porque, é curioso, os jovens "falam" de uma forma típica, com uma musicalidade que a distingue da maneira de falar dos adultos.
Porque, é curioso, reparem como, em consequência dessa entoação, eles tendem a eliminar os "o" finais. Não dizem "consigo" mas "consigue", não dizem "pronto" mas "pronte", não dizem "cinzeiro" mas "cinzeire".
Porque, é curioso, nessa entoação, ou nessa expressiva forma de cantar o que se quer dizer, os rapazes são diferentes das raparigas: há uma música de miúda [que já começo a captar na minha filha, que não sendo ainda adolescente, mesmo assim, aos seis anos, já principia a entoar de uma certa maneira: com aquela espécie de arrogância que reside inteiramente no modo de falar, mais do que no conteúdo do discurso...], bem como há uma música de rapagão, mais seca - arrogante também, mas de um outro modo.
Temo que tudo isto se perca: não há registos, nem gravações, nem estudos feitos com esse objectivo; não existem comparações nem uma anotação de mudanças ao longo das idades dos putos e ao longo da vida da sociedade. Há tanto trabalho sobre a música popular, e nada sobre o cantar com que os jovens 1: falam uns com os outros, 2: falam com os pais, 3: falam com os professores.
Pelo que proponho a criação de uma nova esfera da sociologia: uma sociologia da entoação.
Tenciono ser o pioneiro desse conhecimento.
Guardem um prémio Nobel para daqui a quinze anos...
Sou pai de um jovem de dezasseis anos ingratos e difíceis. [Não «ingratos» para ele, mas porque é um rapaz pouco agradecido]. E de uma menina de seis anos.
Com a experiência que tenho, pois, na relação com rapazes e raparigas, vou conhecendo as suas maneiras de entoar as palavras.
Porque, é curioso, os jovens "falam" de uma forma típica, com uma musicalidade que a distingue da maneira de falar dos adultos.
Porque, é curioso, reparem como, em consequência dessa entoação, eles tendem a eliminar os "o" finais. Não dizem "consigo" mas "consigue", não dizem "pronto" mas "pronte", não dizem "cinzeiro" mas "cinzeire".
Porque, é curioso, nessa entoação, ou nessa expressiva forma de cantar o que se quer dizer, os rapazes são diferentes das raparigas: há uma música de miúda [que já começo a captar na minha filha, que não sendo ainda adolescente, mesmo assim, aos seis anos, já principia a entoar de uma certa maneira: com aquela espécie de arrogância que reside inteiramente no modo de falar, mais do que no conteúdo do discurso...], bem como há uma música de rapagão, mais seca - arrogante também, mas de um outro modo.
Temo que tudo isto se perca: não há registos, nem gravações, nem estudos feitos com esse objectivo; não existem comparações nem uma anotação de mudanças ao longo das idades dos putos e ao longo da vida da sociedade. Há tanto trabalho sobre a música popular, e nada sobre o cantar com que os jovens 1: falam uns com os outros, 2: falam com os pais, 3: falam com os professores.
Pelo que proponho a criação de uma nova esfera da sociologia: uma sociologia da entoação.
Tenciono ser o pioneiro desse conhecimento.
Guardem um prémio Nobel para daqui a quinze anos...
quinta-feira, abril 12, 2012
FILHA DE FILÓSOFO SABE NADAR
Daisy tem seis anos e eu sou, além de seu pai, professor de filosofia.
Não resisto. Proponho-lhe o seguinte exercício de ética, um dia em que ela me diz [creio que com razão] que não se deve mentir.
«Mas então, imagina que uma senhora muito feia te pergunta: Achas que sou bonita? Mentimos-lhe? Ou escolhemos a verdade: Ah, não, não és nada bonita!?»
[Escusam de me dizer que sou políticamente incorrecto, que é importante que Daisy interiorize que não se deve mentir, etc. É inútil. Não resisto a certas provocações].
Posto isto, eis a sua resposta:
«Pai. Deves dizer sempre a verdade. Mas podes dizer assim: olha, tu realmente não tens uma cara bonita. Mas os teus sapatos são muito lindos!»
Não resisto. Proponho-lhe o seguinte exercício de ética, um dia em que ela me diz [creio que com razão] que não se deve mentir.
«Mas então, imagina que uma senhora muito feia te pergunta: Achas que sou bonita? Mentimos-lhe? Ou escolhemos a verdade: Ah, não, não és nada bonita!?»
[Escusam de me dizer que sou políticamente incorrecto, que é importante que Daisy interiorize que não se deve mentir, etc. É inútil. Não resisto a certas provocações].
Posto isto, eis a sua resposta:
«Pai. Deves dizer sempre a verdade. Mas podes dizer assim: olha, tu realmente não tens uma cara bonita. Mas os teus sapatos são muito lindos!»
quarta-feira, abril 11, 2012
ITÁLIA
Confesso que gosto muito de Itália - essa Itália que nunca visitei senão em sonhos e em livros. Ou em filmes.
Encanta-me a língua, a literatura, logo desde os filósofos romanos mas, sobretudo, com o enorme Dante, e o cinema.
E no entanto há cenas de aparente comédia que, a serem reais, só poderiam ser cenas italianas. Fellini bem o sabia.
Só um italiano poderia ser verdadeiramente protagonista do rocambolesco episódio do Costa Concordia: falo do capitão do iate que, de acordo com o próprio, não foi dos primeiros a fugir para um bote salva-vidas: caiu num salva-vidas, precisamente quando dirigia as operações de salvamento. Que, aliás, terá continuado a dirigir, ao fundo, gritando e gesticulando, do alto de uma pedra.
Há situações que, quando achamos que só podem ter sido inventadas por um comediante delirante, provavelmente aconteceram mesmo - em Itália.
Encanta-me a língua, a literatura, logo desde os filósofos romanos mas, sobretudo, com o enorme Dante, e o cinema.
E no entanto há cenas de aparente comédia que, a serem reais, só poderiam ser cenas italianas. Fellini bem o sabia.
Só um italiano poderia ser verdadeiramente protagonista do rocambolesco episódio do Costa Concordia: falo do capitão do iate que, de acordo com o próprio, não foi dos primeiros a fugir para um bote salva-vidas: caiu num salva-vidas, precisamente quando dirigia as operações de salvamento. Que, aliás, terá continuado a dirigir, ao fundo, gritando e gesticulando, do alto de uma pedra.
Há situações que, quando achamos que só podem ter sido inventadas por um comediante delirante, provavelmente aconteceram mesmo - em Itália.
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divinos crimes,
justificações e insinuações,
TALENTOS INSENSATOS
terça-feira, abril 10, 2012
ALÔ CÁ ESTOU EU, O BRISE CONTÍNUO
Este blogue foi a mãe de todos os meus blogues.
Aqui me estreei, me experimentei, testei ideias, escrevi contos e revelei sentimentos, relatei as experiências de um pai comediante ou de um professor filosofante. Fiz comentário político, de cinema ou de literatura.
Sempre pensei que este blogue seria o único a durar. O mais "eu" de todos.
E, no entanto, fui rareando as suas aparições, como uma Nossa Senhora de Fátima preguiçosa ou que deviesse ateia.
Outros blogues, em contrapartida, ganhavam pujança. O dos livros ganhou novos seguidores. No de cinema, escrevo de vez em quando. E este?
Já não me apetecia comunicar a minha intimidade cómica?
Por acaso, descobri ontem que havia um comentário. Acerca de um "post" antigo, sobre hip-hop, o "Falas de Azul": uma leitora cometera o mesmo erro que eu, e não perdeu a oportunidade de o comentar.
De repente, fui assaltado. À queima-roupa. Vieram de rosto encoberto, com martelos e ganchos nas mãos, ataram-me a uma cadeira e pediram-me contas. Bateram-me com um taco de baseball nas pernas. Eram as saudades...
Saí da experiência endoidecido, jurando voltar ao "kaostico", de cuja ausência també o meu primo viajante, emigrante, se queixa muito - meu pobre e longínquo primo, para quem o "kaostico" foi, pelos vistos, um vínculo à língua e ao humor portugueses...
Querem acreditar? O "kaostico" desfizera-se a tal ponto que já nem da palavra passe me conseguia lembrar.
Não quero nem posso prometer que este regresso seja "o" regresso. Talvez amanhã não venha.
Mas se me lembrar ainda da palavra passe, acredito que um dia volte.
Aqui me estreei, me experimentei, testei ideias, escrevi contos e revelei sentimentos, relatei as experiências de um pai comediante ou de um professor filosofante. Fiz comentário político, de cinema ou de literatura.
Sempre pensei que este blogue seria o único a durar. O mais "eu" de todos.
E, no entanto, fui rareando as suas aparições, como uma Nossa Senhora de Fátima preguiçosa ou que deviesse ateia.
Outros blogues, em contrapartida, ganhavam pujança. O dos livros ganhou novos seguidores. No de cinema, escrevo de vez em quando. E este?
Já não me apetecia comunicar a minha intimidade cómica?
Por acaso, descobri ontem que havia um comentário. Acerca de um "post" antigo, sobre hip-hop, o "Falas de Azul": uma leitora cometera o mesmo erro que eu, e não perdeu a oportunidade de o comentar.
De repente, fui assaltado. À queima-roupa. Vieram de rosto encoberto, com martelos e ganchos nas mãos, ataram-me a uma cadeira e pediram-me contas. Bateram-me com um taco de baseball nas pernas. Eram as saudades...
Saí da experiência endoidecido, jurando voltar ao "kaostico", de cuja ausência també o meu primo viajante, emigrante, se queixa muito - meu pobre e longínquo primo, para quem o "kaostico" foi, pelos vistos, um vínculo à língua e ao humor portugueses...
Querem acreditar? O "kaostico" desfizera-se a tal ponto que já nem da palavra passe me conseguia lembrar.
Não quero nem posso prometer que este regresso seja "o" regresso. Talvez amanhã não venha.
Mas se me lembrar ainda da palavra passe, acredito que um dia volte.
domingo, fevereiro 05, 2012
UM CRIMINOSO COM O JOELHO MAU [III]
Tratava-se, então, de proceder como?
O senhor X tinha uma hora de absoluta solidão para agir: levantaria a tampa da caixa infernal em que o fechavam e, mesmo em cuecas (porque ninguém o veria nessa figura: o bairro era praticamente um deserto àquela hora, e a única pessoa que, às vezes, por ali passava, era um cego), ou em cuecas e, quando muito, uma camisola de lã que enfiasse num instantinho, para não adoecer com a brusca mudança de temperatura, saltaria pela janela que a secretária do Henriques deixava entreaberta, correria até sua casa, entraria, aproximar-se-ia de sua mulher, pegando, de caminho, numa faca de cozinha e, apanhando dona X desprevenida, talvez até de costas (sonhara tantas vezes com a cena), esfaqueá-la-ia até à morte. Simples. Básico. Perfeito. Partiria vasos, desarrumaria um pouco, roubaria dinheiro de gavetas de modo a que as culpas pudessem recair num intruso qualquer, um ladrão. Depois, sairia de casa em corrida, subiria pela janela do Henriques, reentraria na sala da sauna, por fim na caixa do inferno, certamente suado - o que não fazia a menor diferença porque, na sauna, era justamente suado que esperavam vê-lo quando o fossem desligar.
Na décima sessão, quando o tempo urgia porque só faltavam mais duas para concluir o tratamento, tomou a decisão.
Havia riscos no seu plano. Mas os riscos resumiam-se à possibilidade de alguma coisa não suceder como sucedia habitualmente.
Por exemplo: a secretária chinesa, até por causa das suas artrozes, nunca aparecia a não ser que ele gritasse por ela. Mas não poderia, por qualquer razão, naquele dia, aparecer e não o ver na sauna?
As ruas estavam sempre vazias. E, se passava alguém, era, como sabia, um senhor cego. Mas não poderia nesse dia, por azar, passar outra pessoa, um rapaz, uma senhora...?
Tinha de avançar. Não podia preocupar-se agora com os riscos. Era pegar ou largar a única oportunidade de uma vida horrível. Abriu a tampa. Correu, nas suas cuecas de ursinhos, até à cadeira onde pousara a roupa. Tentou vestir uma camisola. Mas os braços daquela espécie de embrulho de lã estavam como que amarrados um no outro. Desistiu da camisola. Enervava-se com o tempo a passar. Calçou uns sapatos de borracha. E, em cuecas, tronco nu e sapatos, sentou-se à janela, com as pernas voltadas para o exterior, prontas para o salto.
Para o salto, escrevi bem. Porque, repentinamente, apercebeu-se de que a altura era enorme. Foi deslizando como uma serpente, os dedos enclavinhados no parapeito, o corpo descendo pelo lado de fora, desenrolando-se, encostado à parede...! Mas, mesmo assim, todo esticado, os seus pés não tocavam no passeio. Longe disso. Estava pendurado, com os dedos a tremer pelo esforço para o manterem preso à janela. Considerou tornar a subir: impossível. Não tinha forças nos braços para puxar por si até lá acima de novo. Estava arrependido de toda aquela loucura. Ele não era um assassino. Era um cobarde. Por que razão um homem que não tem sequer coragem para se divorciar da mulher que odeia, haveria de ter coragem para matá-la?
Temia largar-se, saltar, aterrar no chão. Não podia gritar por socorro. Não podia, em suma, fazer coisa alguma. Estava perdido.
Nesse momento, quando a situação parecia tão complicada que nada seria capaz de a tornar pior para si, o joelho, o seu joelho, o seu joelho mau, principiou a doer. Mas a doer tanto, tão inimaginavelmente como já quase não lhe voltara a doer desde que iniciara a série de massagens...
E sob efeito da dor atroz, os dedos abriram-se-lhe todos, como cabelos eriçados.
E o seu corpo tombou.
O senhor X caía, pesada e dolorosamente, sobre um cão: era o cão do cego que costumava passar por ali àquela hora, rente à parede, ligando-se ao muro pela bengala branca.
O cão não ganiu, uivou de susto e dor.
O cego, em pânico, sentindo-se assaltado, percebendo vagamente que lhe roubavam o cão, seu único amigo nesta vida, espadeirou com a bengala em todas as direcções. E acertou regularmente em quase todo o corpo do senhor X.
Quando a secretária chinesa ouviu tocar a campainha e veio abrir a porta da rua, deu de caras, com um pequeno grito de surpresa, com o mesmo homem, o mesmo senhor X que, ainda não havia meia hora, tinha deixado a marinar no caixote.
O senhor X estava de tronco nu.
Vestia as suas cuecas de ursinhos, mas muito rasgadas.
Num dos pés, um sapato de borracha. O outro, descalço, era um pé de esqueleto, era um conjunto de ossos arrastando-se.
Respirava com dificuldade. Encurvava-se ligeiramente, só ligeiramente, como se quisesse manter um último e improvável resto ou rasto de dignidade.
Havia sangue em toda a parte. No peito, no rosto, no joelho.
Disse:
- Caí da janela!
A secretária do Henriques, Henriques esse que também aparecia lá ao fundo, a mastigar como de costume, não podia crer.
- Como? - perguntou ela.
- O que foi? - mastigou o Henriques.
- A sauna estava muito quente - explicou o senhor X, ensaiando um sorriso. Mas era o sorriso mais dorido da sua vida. - Tive de ir respirar à janela. E caí.
Imaginou a sua chegada a casa, onde a mulher também lhe perguntaria, com a sua voz ríspida:
- Que é que te aconteceu?
E desatou a chorar.
O senhor X tinha uma hora de absoluta solidão para agir: levantaria a tampa da caixa infernal em que o fechavam e, mesmo em cuecas (porque ninguém o veria nessa figura: o bairro era praticamente um deserto àquela hora, e a única pessoa que, às vezes, por ali passava, era um cego), ou em cuecas e, quando muito, uma camisola de lã que enfiasse num instantinho, para não adoecer com a brusca mudança de temperatura, saltaria pela janela que a secretária do Henriques deixava entreaberta, correria até sua casa, entraria, aproximar-se-ia de sua mulher, pegando, de caminho, numa faca de cozinha e, apanhando dona X desprevenida, talvez até de costas (sonhara tantas vezes com a cena), esfaqueá-la-ia até à morte. Simples. Básico. Perfeito. Partiria vasos, desarrumaria um pouco, roubaria dinheiro de gavetas de modo a que as culpas pudessem recair num intruso qualquer, um ladrão. Depois, sairia de casa em corrida, subiria pela janela do Henriques, reentraria na sala da sauna, por fim na caixa do inferno, certamente suado - o que não fazia a menor diferença porque, na sauna, era justamente suado que esperavam vê-lo quando o fossem desligar.
Na décima sessão, quando o tempo urgia porque só faltavam mais duas para concluir o tratamento, tomou a decisão.
Havia riscos no seu plano. Mas os riscos resumiam-se à possibilidade de alguma coisa não suceder como sucedia habitualmente.
Por exemplo: a secretária chinesa, até por causa das suas artrozes, nunca aparecia a não ser que ele gritasse por ela. Mas não poderia, por qualquer razão, naquele dia, aparecer e não o ver na sauna?
As ruas estavam sempre vazias. E, se passava alguém, era, como sabia, um senhor cego. Mas não poderia nesse dia, por azar, passar outra pessoa, um rapaz, uma senhora...?
Tinha de avançar. Não podia preocupar-se agora com os riscos. Era pegar ou largar a única oportunidade de uma vida horrível. Abriu a tampa. Correu, nas suas cuecas de ursinhos, até à cadeira onde pousara a roupa. Tentou vestir uma camisola. Mas os braços daquela espécie de embrulho de lã estavam como que amarrados um no outro. Desistiu da camisola. Enervava-se com o tempo a passar. Calçou uns sapatos de borracha. E, em cuecas, tronco nu e sapatos, sentou-se à janela, com as pernas voltadas para o exterior, prontas para o salto.
Para o salto, escrevi bem. Porque, repentinamente, apercebeu-se de que a altura era enorme. Foi deslizando como uma serpente, os dedos enclavinhados no parapeito, o corpo descendo pelo lado de fora, desenrolando-se, encostado à parede...! Mas, mesmo assim, todo esticado, os seus pés não tocavam no passeio. Longe disso. Estava pendurado, com os dedos a tremer pelo esforço para o manterem preso à janela. Considerou tornar a subir: impossível. Não tinha forças nos braços para puxar por si até lá acima de novo. Estava arrependido de toda aquela loucura. Ele não era um assassino. Era um cobarde. Por que razão um homem que não tem sequer coragem para se divorciar da mulher que odeia, haveria de ter coragem para matá-la?
Temia largar-se, saltar, aterrar no chão. Não podia gritar por socorro. Não podia, em suma, fazer coisa alguma. Estava perdido.
Nesse momento, quando a situação parecia tão complicada que nada seria capaz de a tornar pior para si, o joelho, o seu joelho, o seu joelho mau, principiou a doer. Mas a doer tanto, tão inimaginavelmente como já quase não lhe voltara a doer desde que iniciara a série de massagens...
E sob efeito da dor atroz, os dedos abriram-se-lhe todos, como cabelos eriçados.
E o seu corpo tombou.
O senhor X caía, pesada e dolorosamente, sobre um cão: era o cão do cego que costumava passar por ali àquela hora, rente à parede, ligando-se ao muro pela bengala branca.
O cão não ganiu, uivou de susto e dor.
O cego, em pânico, sentindo-se assaltado, percebendo vagamente que lhe roubavam o cão, seu único amigo nesta vida, espadeirou com a bengala em todas as direcções. E acertou regularmente em quase todo o corpo do senhor X.
Quando a secretária chinesa ouviu tocar a campainha e veio abrir a porta da rua, deu de caras, com um pequeno grito de surpresa, com o mesmo homem, o mesmo senhor X que, ainda não havia meia hora, tinha deixado a marinar no caixote.
O senhor X estava de tronco nu.
Vestia as suas cuecas de ursinhos, mas muito rasgadas.
Num dos pés, um sapato de borracha. O outro, descalço, era um pé de esqueleto, era um conjunto de ossos arrastando-se.
Respirava com dificuldade. Encurvava-se ligeiramente, só ligeiramente, como se quisesse manter um último e improvável resto ou rasto de dignidade.
Havia sangue em toda a parte. No peito, no rosto, no joelho.
Disse:
- Caí da janela!
A secretária do Henriques, Henriques esse que também aparecia lá ao fundo, a mastigar como de costume, não podia crer.
- Como? - perguntou ela.
- O que foi? - mastigou o Henriques.
- A sauna estava muito quente - explicou o senhor X, ensaiando um sorriso. Mas era o sorriso mais dorido da sua vida. - Tive de ir respirar à janela. E caí.
Imaginou a sua chegada a casa, onde a mulher também lhe perguntaria, com a sua voz ríspida:
- Que é que te aconteceu?
E desatou a chorar.
UM CRIMINOSO COM O JOELHO MAU [II]
Para quem quer que olhasse para o crime de fora, se realmente o viesse a cometer, dificilmente o senhor X cairia na lista dos suspeitos. De que móbil o acusariam?
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.
Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.
Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.
Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...
Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obsessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.
Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.
CONTINUA
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.
Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.
Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.
Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...
Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obsessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.
Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.
CONTINUA
UM CRIMINOSO COMO O JOELHO MAU [I]
Porque acho este conto em três partes um dos textos mais conseguidos do meu blogue, aqui o recupero. Gostei de o reler.
Como, no Inverno, as dores no joelho se tornavam lancinantes, pôs-se duas ou três vezes por semana nas mãos do Henriques, que era um massagista particular e morava muito próximo dele.
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão» era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor...?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.
Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.
Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia - e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.
CONTINUA
Como, no Inverno, as dores no joelho se tornavam lancinantes, pôs-se duas ou três vezes por semana nas mãos do Henriques, que era um massagista particular e morava muito próximo dele.
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão» era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor...?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.
Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.
Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia - e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.
CONTINUA
sexta-feira, fevereiro 03, 2012
O FRIO PORTUGUÊS
Está frio, está inegavelmente frio.
Mas, apesar de tudo, nada do que por aí se anunciava, gerando o pânico e a corrida aos agasalhos. Este frio parece-me trivial. Se é tudo o que o "clima" consegue, devo dizer que já senti pior.
Em Portugal, pelos vistos, nem o frio é a sério.
Mas, apesar de tudo, nada do que por aí se anunciava, gerando o pânico e a corrida aos agasalhos. Este frio parece-me trivial. Se é tudo o que o "clima" consegue, devo dizer que já senti pior.
Em Portugal, pelos vistos, nem o frio é a sério.
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