1. Nos anos setenta, quando a psicanálise invadira, de alguma forma, o discurso de qualquer gato-pingado e não havia conversa de café que não estivesse recheada do jargão freudiano, alguma coisa nesse abuso começou a cansar-me e a soar-me a exagero: demasiado sexo (no sentido em que diríamos de alguém que não viveu senão para isso e disso morreu), demasiado inconsciente e demasiados complexos vinham explicar e justificar os comportamentos mais inocentes - e isso porque, num certo sentido (o sentido psicanalítico, justamente), não havia comportamentos inocentes.
2. Nos anos oitenta li, com surpresa, um dos primeiros artigos em que o nome «Freud» aparecia associado ao termo «fraude», permitindo jogos de palavras que faziam vir ao de cima um inesperado recalcado feito de erros, de enganos, de imposturas.
3. Passando, ontem, uma vista de olhos por uma das centenas de revistas do Expresso, que não quer deixar de assinalar o século e meio do nascimento de Freud, assusto-me um pouco com a forma como a intelectualidade mudou de ideias desde o tempo abusivamente freudiano da minha adolescência, e parece agora comprazer-se na destruição sistemática da herança do Sigismundo. Desde o seu mau feitio e a sua relação difícil com os amigos, até às mentiras que publicou a propósito das terapias - que, afinal, raramente teriam sido tão bem sucedidas como as descreveu -, passando pelos roubos intelectuais, tudo se conjuga e amontoa para fazer da psicanálise a maior mistificação do século.
4. Mas que significa exactamente isso? Que não há «inconsciente»? Que não existe «superego»? Que o sonho, seja ou não «a realização cifrada dos nossos desejos», como o pretendia Freud, não é, sequer, uma expressão do nosso inconsciente? Que não é, em última análise, uma expressão «interpretável»? Ou que, na verdade, o sexo não tem, no homem e na vida humana, o peso que a psicanálise lhe atribuiu? Ou que não está presente na infância - e as crianças são, de facto, os anjos assexuados que a rainha Vitória teria gostado que fossem...?
5. Não contesto que, na base, a psicanálise seja, antes de mais, um brilhante mito. Um mito, isto é, uma explicação da vida e dos comportamentos humanos segundo os actos de deuses antropomórficos: o «ego», o «id», o «superego» são deuses em guerra e em paz, o «sexo» é um Zeus que tudo controla poderosamente, as «neuroses» são duendes maléficos contra os quais o homem tem de se proteger através das novas formas de oferenda e sacrifício patrocinados pela psicanálise. Nem contesto que, na criação dessa mitologia esteja um outro ser mitológico, o próprio Freud, um deus desrespeitador, pouco íntegro, arrogante e vaidoso. Contesto é que, em face dessa genial fabricação, desse romance acerca dos nossos impulsos, não reste hoje nada senão desprezo e desconfiança. Porque, na minha perspectiva, o que se faz é - como em tudo -, passar-se de um fascínio ilimitado, para um radical e sistemático apagamento do significado, a vários títulos extraordinário, da psicanálise. Ou seja, passa-se de uma hipérbole de sinal positivo para uma hipérbole de sinal negativo...
6. Culturalmente, nem vale a pena lembrar o que a psicanálise indirectamente alimentou em todas as áreas: da poesia e da literatura à pintura, à música ou ao cinema (e por que se associa tão raramente Hitschkock à psicanálise?), nada terá ficado imune ao contágio. Nos domínios da hermenêutica e da crítica - com os exageros do costume -, ou na filosofia, o nosso pensamento é inteiramente freudiano, do mesmo modo que é marxista: mesmo que (em certos casos, «sobretudo se») não somos freudianos e não somos marxistas.
7. Mas, mais do que isso, insisto em que a psicanálise é uma ciência: não, naturalmente, no sentido estrito em que Popper a define - mas por que razão deveremos aceitar que é a Popper que cabe traçar as derradeiras fronteiras entre o científico e o não-científico?
(Se, neste momento, Popper é ainda respeitado como uma espécie de papa da epistemologia, não será bom começarmos a temer pela forma como possam depois vir a tratá-lo, quando se descobrir que, afinal, sob o mito havia um homem com vícios e defeitos?)
É uma ciência no sentido em que nos forneceu instrumentos e conceitos, porventura não-falsificáveis na acepção popperiana, mas, contudo, inteligentíssimos e, indiscutivelmente, eficazes, produtivos, riquíssimos de consequências.
Ou chamemos-lhe uma quase-ciência: um terreno minado onde, como se diria de droga, o «bom» produto se mistura e confunde com produto «mau», onde muito está por testar e provar, onde intuições, as mais das vezes geniais, carecem inteiramente de confirmação ou foram falsamente «confirmadas». É uma ciência marcada pelo charlatanismo. É uma ciência carregada de mito. Sim.
Mas, precisamente: não é, de algum modo, toda a história da ciência, esta mesma mistura? Esta amálgama de intuição e racionalidade?
Não é muitas vezes confusa, nessa história, o limite onde acaba o charlatanismo e começa o inatacável rigor científico?
domingo, abril 30, 2006
sexta-feira, abril 28, 2006
O INFERNO
Da brutal Divina Comédia de Dante Alighieri, a última parte, «O Paraíso», parece-me um final insípido para a obra. Mas sejamos justos: insípido precisamente porque, quem leu as partes anteriores, e se deixou arrebatar por elas, não se pode conformar nem satisfazer com uma conclusão que não está à medida da tensão e do prazer (literário, poético, estético) que tinham vindo a crescer em si. Mesmo a parte do meio, «O Purgatório», parece-me insuficiente ou, pelo menos, esquecível. Pelas mesmas razões: falta-lhe a tensão trágica do início, aquela dor que nos toca e comove, a crueldade que tudo impregna e nos dilacera de um modo sublime.
Que início é esse? «O Inferno».
Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudessemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra complexa e, sobretudo, completa. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo, que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a sublime dimensão do seu «Inferno».
Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condena as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...
Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada, por um lado, e de uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado, mas porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?
É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser interpretadas em interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se catiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.
É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.
Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.
Que início é esse? «O Inferno».
Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudessemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra complexa e, sobretudo, completa. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo, que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a sublime dimensão do seu «Inferno».
Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condena as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...
Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada, por um lado, e de uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado, mas porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?
É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser interpretadas em interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se catiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.
É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.
Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.
quinta-feira, abril 27, 2006
COMO SE PERDEU UM ESPÍRITA
A minha primeira reunião espírita não foi nenhuma reunião espírita.
Éramos jovens entre os dezoito e os vinte anos e encontrávamo-nos no apartamento do único de nós que já vivia em completa situação de independência - embora a mãe passasse de vez em quando para lhe arrumar a casa -, à Calçada do Carriche.
Na altura, fazíamos a experiência do copo: mas sei que os meus inúmeros e silenciosos leitores tiveram, em algum momento da vida de que nada vão querer contar-me, a sua experiência da «experiência do copo»: sobre uma mesa, punha-se um tabuleiro - um mero cartão, no fundo - previamente marcada com as letras do alfabeto e os algarismos de 0 a 9 e, em cima do tabuleiro, um copo com a boca virada para baixo.
Os presentes colocavam os dedos sobre o copo - mas, atenção: não forçavam, não pressionavam, não empurravam: limitavam-se a pousar, mal pousando sequer, as polpas dos dedos.
Alguém fazia uma pergunta.
E depois, imbuído de uma estranha e inexplicável força, o copo deslocava-se até uma letra, a seguir até outra, formando palavras, e frases, e dando-nos respostas.
Inventávamos várias teorias: que se tratava de uma energia composta pelo encontro de tantas energias secretamente emanadas das mãos próximas, como se o copo fosse um atractor. Mas uma energia capaz de escrever?, ironizava um de nós; ou, então, que, inconscientemente, um de nós, com uma personalidade de líder, instruía os demais sem ele próprio se aperceber, através de sinais de que ele mesmo não dava conta, ou semiempurrando o copo.
De todos, era eu o mais incrédulo. Aliás, eu era um sujeito estranho: recentemente chegado de Moçambique, com vários desequilíbrios motivados pela radical mudança, profundamente sociofóbico, tornara-me o céptico de serviço, o cínico, o trocista. Aquele que, muitas vezes, preferia não participar mas, de pé, mãos nos bolsos, como o espectador de um jogo de cartas, ia rodando e quebrando o ritual com uma série de comentários jocosos e perversos. Quando me lembro de como era, penso que me deviam suportar a custo.
Uma noite, em pleno teatro espírita, a luz apagou-se. De súbito.
Improvisaram-se nervosamente velas; os mais empenhados queriam prosseguir com a brincadeira.
E no silêncio que entretanto se fizera, cresceu um ruído enorme, como das profundezas da terra, como proveniente de um espírito maligno, mais que malicioso: era um apelo grave, um gemido monocórdico, um arroto prolongado.
Senti-me mal.
De uma forma ostensivamente cobarde, deixei de estar ali. (O sociofóbico que eu era tornara-se conhecido - e vulgarmente criticado - por essas súbitas retiradas, às vezes muito rápidas e quase mágicas, como puros desaparecimentos que não requeriam despedida). Fui-me, em suma.
Nessa noite, não dormi. Nos meus pesadelos, visitaram-me os espíritos de todos os meus antepassados, alguns dos quais nunca tivera a honra de conhecer, como uma certa tia-bisavó de bigode e barba.
Só no dia seguinte pude saber que o tremendo apelo das profundezas não viera de maior profundeza do que o andar de baixo, onde um vizinho adormecera cedo e ressonava o justo sono do seu cansaço.
Experiências com copos depois disso? Só mesmo as de ingerir líquidos!
Éramos jovens entre os dezoito e os vinte anos e encontrávamo-nos no apartamento do único de nós que já vivia em completa situação de independência - embora a mãe passasse de vez em quando para lhe arrumar a casa -, à Calçada do Carriche.
Na altura, fazíamos a experiência do copo: mas sei que os meus inúmeros e silenciosos leitores tiveram, em algum momento da vida de que nada vão querer contar-me, a sua experiência da «experiência do copo»: sobre uma mesa, punha-se um tabuleiro - um mero cartão, no fundo - previamente marcada com as letras do alfabeto e os algarismos de 0 a 9 e, em cima do tabuleiro, um copo com a boca virada para baixo.
Os presentes colocavam os dedos sobre o copo - mas, atenção: não forçavam, não pressionavam, não empurravam: limitavam-se a pousar, mal pousando sequer, as polpas dos dedos.
Alguém fazia uma pergunta.
E depois, imbuído de uma estranha e inexplicável força, o copo deslocava-se até uma letra, a seguir até outra, formando palavras, e frases, e dando-nos respostas.
Inventávamos várias teorias: que se tratava de uma energia composta pelo encontro de tantas energias secretamente emanadas das mãos próximas, como se o copo fosse um atractor. Mas uma energia capaz de escrever?, ironizava um de nós; ou, então, que, inconscientemente, um de nós, com uma personalidade de líder, instruía os demais sem ele próprio se aperceber, através de sinais de que ele mesmo não dava conta, ou semiempurrando o copo.
De todos, era eu o mais incrédulo. Aliás, eu era um sujeito estranho: recentemente chegado de Moçambique, com vários desequilíbrios motivados pela radical mudança, profundamente sociofóbico, tornara-me o céptico de serviço, o cínico, o trocista. Aquele que, muitas vezes, preferia não participar mas, de pé, mãos nos bolsos, como o espectador de um jogo de cartas, ia rodando e quebrando o ritual com uma série de comentários jocosos e perversos. Quando me lembro de como era, penso que me deviam suportar a custo.
Uma noite, em pleno teatro espírita, a luz apagou-se. De súbito.
Improvisaram-se nervosamente velas; os mais empenhados queriam prosseguir com a brincadeira.
E no silêncio que entretanto se fizera, cresceu um ruído enorme, como das profundezas da terra, como proveniente de um espírito maligno, mais que malicioso: era um apelo grave, um gemido monocórdico, um arroto prolongado.
Senti-me mal.
De uma forma ostensivamente cobarde, deixei de estar ali. (O sociofóbico que eu era tornara-se conhecido - e vulgarmente criticado - por essas súbitas retiradas, às vezes muito rápidas e quase mágicas, como puros desaparecimentos que não requeriam despedida). Fui-me, em suma.
Nessa noite, não dormi. Nos meus pesadelos, visitaram-me os espíritos de todos os meus antepassados, alguns dos quais nunca tivera a honra de conhecer, como uma certa tia-bisavó de bigode e barba.
Só no dia seguinte pude saber que o tremendo apelo das profundezas não viera de maior profundeza do que o andar de baixo, onde um vizinho adormecera cedo e ressonava o justo sono do seu cansaço.
Experiências com copos depois disso? Só mesmo as de ingerir líquidos!
quarta-feira, abril 26, 2006
PERGUNTAS RIDÍCULAS
Sou só eu, ou também vos acontece irem a falar sozinhos pela rua e, quando se cruzam com alguém, fingirem, de repente, que estavam simplesmente a cantar???
AFORISMOS QUE MELHOR FORA QUE NÃO SE EXPUSESSEM... NÃO SE DÊ O CASO DE SEREM VERDADEIROS
Sejam quais forem as conclusões a retirar, uma coisa me parece inegável: uma moral é, de certo modo, um desperdício de tudo quanto condena.
segunda-feira, abril 24, 2006
UM AFORISMO OU DOIS
Há pessoas capazes de ajudar esforçadamente, de acordo com o que julgam que o outro precisa; mas quase ninguém capaz de ajudar atentamente, ao encontro do que o outro gostaria, sem pedir, que sentissem que precisa.
Em duas situações uma mulher fala, a outra mulher, simpaticamente de um homem: quando está apaixonada; ou quando está sendo irónica.
Em duas situações uma mulher fala, a outra mulher, simpaticamente de um homem: quando está apaixonada; ou quando está sendo irónica.
domingo, abril 23, 2006
BLOGOZAPPING
Num misto de curiosidade, receio, inveja e genuina vontade de aprender e de melhorar, passei um fim-de-semana viajando na blogosfera, confrontando-me com blogues meus vizinhos, tentando compreender, entre outras coisas - não posso deixar de o dizer: é uma angústia que nunca me abandona - se os «outros» suscitam mais comentários do que o meu e, a ser assim, por que razão. Serão muito melhores? Muito mais interessantes? Mais simples? Oferecem prémios?
Dois blogues que já visitara e revisitei foram, por um lado, o da Margarida Rebelo Pinto, por outro, o do seu crítico mais feroz, Mr. George.
A Margarida tem um blogue excessivamente profissional. Dir-se-ia já feito por secretárias, por assessoras, por pessoas pagas a recibo verde. A dimensão de marketing que o seu blogue transpira por todos os poros chega a amedrontar. Ficamos a conhecer algo sobre livros publicados, livros a publicar - e somos, de facto, postos perante um aliciamento ao comentário sob a forma do irresistivel pedido, feito aos leitores, das suas próprias «histórias».
George é uma pessoa inteiramente convencida de que escrever sobre livros tem de ser dizer mal. Nas antípodas do que afirmava, por exemplo, George Steiner, a propósito da crítica como «acolhimento», como desvendar de sentidos, tecer de cumplicidades, reflexão comum. Do meu ponto de vista, a crítica pode ser - deve ser - também denúncia, desmontagem, mas quando se reduz a isso, quando é uma operação sistemática de destruição de obras e autores, confundindo-se com o puro sadismo e com o gosto de desfazer textos como as crianças desfazem os seus bonecos, faltar-lhe-á não um elemento qualquer, mas o elemento essencial. Mas, a George, não faltam comentários. Rôo-me de inveja.
Num blogue chamado «O Jornal dos Marretas» ou «O Blogue dos Marretas» ou uma coisa desse género, chego a ler, extasiado e estarrecido, «postagens» com vinte e sete comentários. Vinte e sete, Bom Deus!!! Reconheço que as que suscitam maior número de reacções são aquelas que se referem aos homens e às mulheres, aos conflitos sexuais, à inferioridade ou superioridade de uns sobre os outros. Está bem, é uma lição a reter. Poderei, em breve, escrever alguma coisa sobre o eterno desconforto entre homens e mulheres...
Mesmo uma jovem - calculo eu que o seja - que tem um blogue sobre as coisas que mais a irritam na vida, e que passa, quase sem dar por isso, de algumas ideias verdadeiramente originais para as maiores banalidades (por exemplo: «Irrita-me o ruído do giz a raspar no quadro...»), mal tem mãos a medir perante tantas respostas.
Há uma outra, cujo blogue se chama «O da Joana» e que, para além de um título feliz, tem a vantagem de ser capaz de «postar» fotografias, coisa que não me tenho interessado em aprender, ou que me interessei mas não acabei ainda de aprender. Numa série curiosa, vemos o seu jipe subindo e descendo por falésias. Pronto, é engraçado, mas...? Não é pouco...?
Às tantas, já não fixava títulos nem nomes de autor. Tudo se me confundia vertiginosamente na cabeça, como em certos sonhos em que tudo se mistura: e recordo-me de alguém que assume («corajosamente», segundo garantem vários dos comentários que recebeu) que Herberto Hélder é um autor português perfeitamente ilegível, que só por estupidez institucional o nosso país promoveu a uma espécie de Grande sacerdote da poesia. Outro João Pedro George!!!
E, no entanto, eu tenho (tive???) leitores. Um «Curioso», uma imprescindível sm, uma nymph que me explicava melhor o que a sm realmente queria dizer, uma byos que se me revelava como leitora assídua...! Mas que lhes acontecia? Cansavam-se? Iam ler antes «O da Joana», com tantas fotografias, ou o «Blogue dos Marretas», tão cheio de afirmações-choque sobre homens e sobre mulheres?
Ou acontece simplesmente que o Grande e Divino Blogue que, lá do alto, tudo vela e comanda, me destinou uma estirpe especial de leitores - os silenciosos?
Os que só reagem por engano, ou por acaso, mas nunca, nunca, NUNCA demasiadas vezes???
Dois blogues que já visitara e revisitei foram, por um lado, o da Margarida Rebelo Pinto, por outro, o do seu crítico mais feroz, Mr. George.
A Margarida tem um blogue excessivamente profissional. Dir-se-ia já feito por secretárias, por assessoras, por pessoas pagas a recibo verde. A dimensão de marketing que o seu blogue transpira por todos os poros chega a amedrontar. Ficamos a conhecer algo sobre livros publicados, livros a publicar - e somos, de facto, postos perante um aliciamento ao comentário sob a forma do irresistivel pedido, feito aos leitores, das suas próprias «histórias».
George é uma pessoa inteiramente convencida de que escrever sobre livros tem de ser dizer mal. Nas antípodas do que afirmava, por exemplo, George Steiner, a propósito da crítica como «acolhimento», como desvendar de sentidos, tecer de cumplicidades, reflexão comum. Do meu ponto de vista, a crítica pode ser - deve ser - também denúncia, desmontagem, mas quando se reduz a isso, quando é uma operação sistemática de destruição de obras e autores, confundindo-se com o puro sadismo e com o gosto de desfazer textos como as crianças desfazem os seus bonecos, faltar-lhe-á não um elemento qualquer, mas o elemento essencial. Mas, a George, não faltam comentários. Rôo-me de inveja.
Num blogue chamado «O Jornal dos Marretas» ou «O Blogue dos Marretas» ou uma coisa desse género, chego a ler, extasiado e estarrecido, «postagens» com vinte e sete comentários. Vinte e sete, Bom Deus!!! Reconheço que as que suscitam maior número de reacções são aquelas que se referem aos homens e às mulheres, aos conflitos sexuais, à inferioridade ou superioridade de uns sobre os outros. Está bem, é uma lição a reter. Poderei, em breve, escrever alguma coisa sobre o eterno desconforto entre homens e mulheres...
Mesmo uma jovem - calculo eu que o seja - que tem um blogue sobre as coisas que mais a irritam na vida, e que passa, quase sem dar por isso, de algumas ideias verdadeiramente originais para as maiores banalidades (por exemplo: «Irrita-me o ruído do giz a raspar no quadro...»), mal tem mãos a medir perante tantas respostas.
Há uma outra, cujo blogue se chama «O da Joana» e que, para além de um título feliz, tem a vantagem de ser capaz de «postar» fotografias, coisa que não me tenho interessado em aprender, ou que me interessei mas não acabei ainda de aprender. Numa série curiosa, vemos o seu jipe subindo e descendo por falésias. Pronto, é engraçado, mas...? Não é pouco...?
Às tantas, já não fixava títulos nem nomes de autor. Tudo se me confundia vertiginosamente na cabeça, como em certos sonhos em que tudo se mistura: e recordo-me de alguém que assume («corajosamente», segundo garantem vários dos comentários que recebeu) que Herberto Hélder é um autor português perfeitamente ilegível, que só por estupidez institucional o nosso país promoveu a uma espécie de Grande sacerdote da poesia. Outro João Pedro George!!!
E, no entanto, eu tenho (tive???) leitores. Um «Curioso», uma imprescindível sm, uma nymph que me explicava melhor o que a sm realmente queria dizer, uma byos que se me revelava como leitora assídua...! Mas que lhes acontecia? Cansavam-se? Iam ler antes «O da Joana», com tantas fotografias, ou o «Blogue dos Marretas», tão cheio de afirmações-choque sobre homens e sobre mulheres?
Ou acontece simplesmente que o Grande e Divino Blogue que, lá do alto, tudo vela e comanda, me destinou uma estirpe especial de leitores - os silenciosos?
Os que só reagem por engano, ou por acaso, mas nunca, nunca, NUNCA demasiadas vezes???
sexta-feira, abril 21, 2006
O LUGAR DA MENTIRA
Uma vez que o meu objectivo não é, neste blogue, a aprovação dos leitores ou a geração de qualquer tipo de consenso entre mim, que escrevo, e quem quer que me leia, e uma vez que me proponho mover-me, kaosticamente, sempre à margem das rotinas do pensamento moral e político, frequentemente ao contrário dessas rotinas, quero, hoje, atrever-me a assumir aquilo que começou por me pôr os próprios cabelos em pé.
Não concebo um mundo sem mentira.
A ideia kantiana de que devo agir sempre segundo um imperativo incondicionado, universal, independentemente das consequências, perturba-me: não só pela sua inviabilidade (porque, aliás, não há nisto qualquer inviabilidade: conheço pessoas que agem sempre por dever, sejam quais forem os estragos que daí advenham), mas porque não tomar em consideração as consequências dos meus actos, não me preocupar em saber como eles afectam e prejudicam os outros, ou como os ferem, é uma atitude que raia a pura insensibilidade e que, portanto, me parece profundamente imoral.
Não entendo, de resto, uma moral pura, inteiramente racional, sem um elemento afectivo e amoroso, num total desprezo pelo sensível. Não entendo uma moral insensível.
A questão da mentira introduz-se, então, neste intervalo entre razão e sentimento: sim, sim, sim, eu sei, sm, eu sei que a mentira implica sempre «enganar» outrem, implica não confiar na sua capacidade de viver a verdade, de conviver com a verdade, como se ele a não merecesse. A minha amiga Maria, por exemplo, diz-me que, para ela, os amigos - pelo menos os amigos - são aqueles que lhe merecem unicamente a verdade, custe ela o que custar.
Não sei. O ponto é que essa interpretação dos factos que designo por verdade pode conter uma terrível carga de destruição.
À mentira sem a qual não podemos passar, chamo delicadeza. Porquê «delicadeza»? Porque a mentira em que penso se produz por cuidado e preoupação, por compreensão da fragilidade de outrem (o termo correcto seria vulnerabilidade: somos todos vulneráveis); porque se não trata da trapaça ou da fraude. Porque se não trata de enganar para proveito próprio.
É de notar, a propósito destas distinções, que elas nunca foram, que eu saiba, pensadas moralmente. Em nenhum tratado de moral que eu conheça, se procura determinar esta diferenciação essencial entre mentiras: a patológica; aquela de que o mentiroso tiraria proveito (que, essa sim, considero imoral); a que visaria servir uma Causa - política, social ou outra -; a que me protegeria do castigo - ou essa espécie de delicadeza, esse desvelo que receia agredir alguém com uma verdade insuportável. Podemos, honestamente, indiferenciá-las? Colocá-las no mesmo saco? Considerá-las todas num mesmo grau do pecado, do mal?
Por mim, confesso, não sou capaz de dizer a uma pessoa que me pergunta, ansiosamente, se a acho bonita - «Não»; nem a uma pessoa que me pergunta se gostei do seu poema - «Não»; nem a uma pessoa que, de algum modo, se abre comigo, se me confia - que, do meu ponto de vista, não tem razão alguma e que procedeu mal.
O problema reside em que, assim sendo, deixo de ser uma pessoa confiável. Podem procurar-me para que eu lhes diga o que, no fundo, querem ouvir, mas não me procuram para saber a verdade.
E, no entanto, a verdade está sempre presente em tudo quanto digo: presente como um fim, uma preocupação, um fantasma, um espinho, um remorso, uma intranquilidade, uma angústia, um olho severo, uma culpa, por vezes uma utopia. Di-la-ei quando perceber que é o melhor para aquela pessoa: o que ela precisa de ouvir e de saber. Ou di-la-ei quando o conseguir.
Mas recuso-me a usar a verdade como uma arma.
Recuso-me a fazer dela um puro dever moral.
Recuso-me a fazer dela um modo de vingança, para meu sádico prazer, ou o meio, deliberado ou inocente, de esmagamento do outro, de humilhação e rejeição.
Recuso-me a fazer dela um valor absoluto.
A necessidade de mentir não está longe da necessidade de dizer a verdade. Essa hesitação, essa impotência em face da verdade, admito mesmo chamá-la assim é, do meu ponto de vista, uma outra face da exigência de ser verdadeiro. A exigência que, neste momento, me obriga a ser completa e rigorosamente sincero: ao ponto de escrever um texto tão «incorrecta» e dolorosamente verdadeiro como este.
Não concebo um mundo sem mentira.
A ideia kantiana de que devo agir sempre segundo um imperativo incondicionado, universal, independentemente das consequências, perturba-me: não só pela sua inviabilidade (porque, aliás, não há nisto qualquer inviabilidade: conheço pessoas que agem sempre por dever, sejam quais forem os estragos que daí advenham), mas porque não tomar em consideração as consequências dos meus actos, não me preocupar em saber como eles afectam e prejudicam os outros, ou como os ferem, é uma atitude que raia a pura insensibilidade e que, portanto, me parece profundamente imoral.
Não entendo, de resto, uma moral pura, inteiramente racional, sem um elemento afectivo e amoroso, num total desprezo pelo sensível. Não entendo uma moral insensível.
A questão da mentira introduz-se, então, neste intervalo entre razão e sentimento: sim, sim, sim, eu sei, sm, eu sei que a mentira implica sempre «enganar» outrem, implica não confiar na sua capacidade de viver a verdade, de conviver com a verdade, como se ele a não merecesse. A minha amiga Maria, por exemplo, diz-me que, para ela, os amigos - pelo menos os amigos - são aqueles que lhe merecem unicamente a verdade, custe ela o que custar.
Não sei. O ponto é que essa interpretação dos factos que designo por verdade pode conter uma terrível carga de destruição.
À mentira sem a qual não podemos passar, chamo delicadeza. Porquê «delicadeza»? Porque a mentira em que penso se produz por cuidado e preoupação, por compreensão da fragilidade de outrem (o termo correcto seria vulnerabilidade: somos todos vulneráveis); porque se não trata da trapaça ou da fraude. Porque se não trata de enganar para proveito próprio.
É de notar, a propósito destas distinções, que elas nunca foram, que eu saiba, pensadas moralmente. Em nenhum tratado de moral que eu conheça, se procura determinar esta diferenciação essencial entre mentiras: a patológica; aquela de que o mentiroso tiraria proveito (que, essa sim, considero imoral); a que visaria servir uma Causa - política, social ou outra -; a que me protegeria do castigo - ou essa espécie de delicadeza, esse desvelo que receia agredir alguém com uma verdade insuportável. Podemos, honestamente, indiferenciá-las? Colocá-las no mesmo saco? Considerá-las todas num mesmo grau do pecado, do mal?
Por mim, confesso, não sou capaz de dizer a uma pessoa que me pergunta, ansiosamente, se a acho bonita - «Não»; nem a uma pessoa que me pergunta se gostei do seu poema - «Não»; nem a uma pessoa que, de algum modo, se abre comigo, se me confia - que, do meu ponto de vista, não tem razão alguma e que procedeu mal.
O problema reside em que, assim sendo, deixo de ser uma pessoa confiável. Podem procurar-me para que eu lhes diga o que, no fundo, querem ouvir, mas não me procuram para saber a verdade.
E, no entanto, a verdade está sempre presente em tudo quanto digo: presente como um fim, uma preocupação, um fantasma, um espinho, um remorso, uma intranquilidade, uma angústia, um olho severo, uma culpa, por vezes uma utopia. Di-la-ei quando perceber que é o melhor para aquela pessoa: o que ela precisa de ouvir e de saber. Ou di-la-ei quando o conseguir.
Mas recuso-me a usar a verdade como uma arma.
Recuso-me a fazer dela um puro dever moral.
Recuso-me a fazer dela um modo de vingança, para meu sádico prazer, ou o meio, deliberado ou inocente, de esmagamento do outro, de humilhação e rejeição.
Recuso-me a fazer dela um valor absoluto.
A necessidade de mentir não está longe da necessidade de dizer a verdade. Essa hesitação, essa impotência em face da verdade, admito mesmo chamá-la assim é, do meu ponto de vista, uma outra face da exigência de ser verdadeiro. A exigência que, neste momento, me obriga a ser completa e rigorosamente sincero: ao ponto de escrever um texto tão «incorrecta» e dolorosamente verdadeiro como este.
quarta-feira, abril 19, 2006
WHY DO THEY SING IN ENGLISH?
É evidente que um aspecto, porventura o principal aspecto de qualquer consideração acerca das bandas portuguesas que cantam em inglês - os Silence 4, quando existiam, os Hands on Aproach, os Gift - não pode deixar de ser o da liberdade: o da liberdade do gosto, a liberdade de trabalhar na língua que mais prazer lhes dá («A língua inglesa fica sempre bem», canta Manuela de Azevedo, mas, essa, em português), que faz parte das suas preferências e referências estéticas e culturais, e se prende com as músicas que mais ouviam na adolescência e juventude.
É um dado adquirido. Não se discute. Não me agradaria que me tomassem, pois, por um velho do Restelo que, em nome de qualquer patriotismo pífio, viesse arengar contra o inglês como uma das possibilidades da música portuguesa. Mas como, precisamente, um tal dado me parece tão adquirido e tão indiscutível, talvez seja o momento de o discutir - ou de lembrar que há outros aspectos a tomar em conta, outros dados inteiramente por adquirir.
O primeiro é o de que, de algum modo, a escolha da língua inglesa por uma banda portuguesa, sendo um direito, nem por isso deixa de ser uma rejeição do português: quando um grupo de jovens portugueses, filhos de pais portugueses, residentes desde sempre em Portugal - muitos destes músicos, parece, em Leiria - opta por cantar em inglês, está simultaneamente a optar por não cantar em português.
Esta rejeição implícita de um instrumento cultural de comunicação, riquíssimo, aliás, sofisticadíssimo e com muitas mais possibilidades expressivas e melódicas do que o inglês, representa a negação de uma particularidade em detrimento de uma pretensa universalidade.
A universalidade do inglês, porém, é um equívoco: trata-se da pseudo-universalidade da globalização. Trata-se, mais do que isso, da escolha da via mais pobre, mais esquemática, mais uniforme; trata-se de escolher fazer o que todos fazem como todos fazem, sejam britânicos, suecos ou franceses; trata-se de escolher aquilo que é igual em todo o lado, de escolher uma identidade vaga, oca, por isso mesmo tão abrangente, que soa precisamente ao mesmo, venha de onde vier. Dir-se-ia que é como a escolha de amputar uma perna por se estar num mundo onde a maioria dos grupos rock é constituída por jovens com uma única perna.
Tal opção condu-los, ao menos, mais longe?
Torna-os mais escutados?
Permite-lhes instalarem-se como mercadoria num mercado global, «universal»?
Os seus CD passam a ser, assim, consumidos por jovens norte-americanos, canadianos, suecos, finlandeses?
Abrem-se-lhes, em suma, mais e novas portas?
Não creio.
Penso que, pelo contrário, o que ainda atrai a curiosidade de um não-português para a música portuguesa é o interesse pela sua diferença específica, pela sua singularidade cultural, pela sua própria particularidade.
Os Madredeus ou a Ala dos Namorados serão sempre mais escutados lá fora, parece-me, do que os portugueses que soam «à americana».
Mas, paternalismos à parte, deixá-los descobrirem-no por si próprios.
É um dado adquirido. Não se discute. Não me agradaria que me tomassem, pois, por um velho do Restelo que, em nome de qualquer patriotismo pífio, viesse arengar contra o inglês como uma das possibilidades da música portuguesa. Mas como, precisamente, um tal dado me parece tão adquirido e tão indiscutível, talvez seja o momento de o discutir - ou de lembrar que há outros aspectos a tomar em conta, outros dados inteiramente por adquirir.
O primeiro é o de que, de algum modo, a escolha da língua inglesa por uma banda portuguesa, sendo um direito, nem por isso deixa de ser uma rejeição do português: quando um grupo de jovens portugueses, filhos de pais portugueses, residentes desde sempre em Portugal - muitos destes músicos, parece, em Leiria - opta por cantar em inglês, está simultaneamente a optar por não cantar em português.
Esta rejeição implícita de um instrumento cultural de comunicação, riquíssimo, aliás, sofisticadíssimo e com muitas mais possibilidades expressivas e melódicas do que o inglês, representa a negação de uma particularidade em detrimento de uma pretensa universalidade.
A universalidade do inglês, porém, é um equívoco: trata-se da pseudo-universalidade da globalização. Trata-se, mais do que isso, da escolha da via mais pobre, mais esquemática, mais uniforme; trata-se de escolher fazer o que todos fazem como todos fazem, sejam britânicos, suecos ou franceses; trata-se de escolher aquilo que é igual em todo o lado, de escolher uma identidade vaga, oca, por isso mesmo tão abrangente, que soa precisamente ao mesmo, venha de onde vier. Dir-se-ia que é como a escolha de amputar uma perna por se estar num mundo onde a maioria dos grupos rock é constituída por jovens com uma única perna.
Tal opção condu-los, ao menos, mais longe?
Torna-os mais escutados?
Permite-lhes instalarem-se como mercadoria num mercado global, «universal»?
Os seus CD passam a ser, assim, consumidos por jovens norte-americanos, canadianos, suecos, finlandeses?
Abrem-se-lhes, em suma, mais e novas portas?
Não creio.
Penso que, pelo contrário, o que ainda atrai a curiosidade de um não-português para a música portuguesa é o interesse pela sua diferença específica, pela sua singularidade cultural, pela sua própria particularidade.
Os Madredeus ou a Ala dos Namorados serão sempre mais escutados lá fora, parece-me, do que os portugueses que soam «à americana».
Mas, paternalismos à parte, deixá-los descobrirem-no por si próprios.
terça-feira, abril 18, 2006
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (VIII)
ACERCA DA SUBTILEZA
A subtileza é, necessariamente, subtil. Não admira que, frequentemente, não se repare nela.
A subtileza não tem por destinatário o espírito treinado - não se treina o espírito na verdadeira subtileza. Só pode ter por destinatário o espírito genuinamente subtil.
A discrição é, pois, própria da subtileza. Se, tendo medo que uma ideia subtil não esteja suficientemente visível, a carregamos, a colorimos, a sublinhamos, o que sucede é que, por um perverso paradoxo, elas se apagam: a discrição; e a subtileza.
Diz Nietzsche, de que poucos gostam (e menos ainda conhecem): um homem com voz muito potente, só a custo consegue enunciar os pensamentos mais subtis.
A subtileza é, necessariamente, subtil. Não admira que, frequentemente, não se repare nela.
A subtileza não tem por destinatário o espírito treinado - não se treina o espírito na verdadeira subtileza. Só pode ter por destinatário o espírito genuinamente subtil.
A discrição é, pois, própria da subtileza. Se, tendo medo que uma ideia subtil não esteja suficientemente visível, a carregamos, a colorimos, a sublinhamos, o que sucede é que, por um perverso paradoxo, elas se apagam: a discrição; e a subtileza.
Diz Nietzsche, de que poucos gostam (e menos ainda conhecem): um homem com voz muito potente, só a custo consegue enunciar os pensamentos mais subtis.
sexta-feira, abril 14, 2006
DIÁLOGO CONCISO (II)
- Boa tarde.
- Boa... boa tarde, senhor agente, boa tarde.
- O senhor tem alguma ideia da velocidade a que circulava no interior de uma cidade?
- Sim. Não. Isto é, sei que ia a mais do que o limite...
- Mostra-me os seus documentos, faz favor...?
- É que... senhor agente, eu...
- Até parece que o senhor ia tirar o pai da forca.
- E ia, precisamente, senhor agente.
- Os seus documentos, não se importa!?
- É quase isso. Ia salvar o meu pai.
- Da forca? Já lhe pedi os documentos, está a enervar-me.
- É que recebi um telefonema do meu pai, senhor agente. Oitenta e dois anos. Não. Três. Oitenta e três. Uma voz... uma voz muito sumida, assim: «fiiilho...!» Quase um sussurrar. Tinha tentado suicidar-se com comprimidos. Arrependeu-se no último momento. Telefonou-me. Já telefonei para as urgências, mas eu ia desarvorado por aí... tenho medo, senhor agente. Aquela voz: «meu fiiiilho...!»
- Não é razão. Não é razão. Então põe em perigo a sua própria vida porque a vida do seu pai está em perigo? A sua vida e a dos outros condutores...?
- Não há outros condutores, senhor agente. Bem vê, a via está deserta. Já lhe expliquei. Pelo amor de Deus, deixe-me seguir.
- Ora imagine que tinha um acidente. Como é que ia poder ajudar depois o seu pai?
- Senhor agente, aqui parado é que o não vou poder ajudar. Deixe-me seguir, ou faço um disparate de que me arrependerei a vida toda.
- O senhor bebeu?
- Senhor agente, estou mal dormido. Estou cansado, estou preocupado.
- O senhor bebeu? Vou ter de lhe fazer o teste do balão. O senhor não está em condições.
- Estou desesperado. A casa do meu pai é já ali, que acidente é que posso ter no caminho até ali? Por que não vem comigo? Por que não me ajuda?
- Os seus documentos estão em ordem. Tome. Importa-se de sair da viatura?
- Mas...
- Venha cá, se faz favor. Vou ter de lhe fazer o teste do balão.
- Boa... boa tarde, senhor agente, boa tarde.
- O senhor tem alguma ideia da velocidade a que circulava no interior de uma cidade?
- Sim. Não. Isto é, sei que ia a mais do que o limite...
- Mostra-me os seus documentos, faz favor...?
- É que... senhor agente, eu...
- Até parece que o senhor ia tirar o pai da forca.
- E ia, precisamente, senhor agente.
- Os seus documentos, não se importa!?
- É quase isso. Ia salvar o meu pai.
- Da forca? Já lhe pedi os documentos, está a enervar-me.
- É que recebi um telefonema do meu pai, senhor agente. Oitenta e dois anos. Não. Três. Oitenta e três. Uma voz... uma voz muito sumida, assim: «fiiilho...!» Quase um sussurrar. Tinha tentado suicidar-se com comprimidos. Arrependeu-se no último momento. Telefonou-me. Já telefonei para as urgências, mas eu ia desarvorado por aí... tenho medo, senhor agente. Aquela voz: «meu fiiiilho...!»
- Não é razão. Não é razão. Então põe em perigo a sua própria vida porque a vida do seu pai está em perigo? A sua vida e a dos outros condutores...?
- Não há outros condutores, senhor agente. Bem vê, a via está deserta. Já lhe expliquei. Pelo amor de Deus, deixe-me seguir.
- Ora imagine que tinha um acidente. Como é que ia poder ajudar depois o seu pai?
- Senhor agente, aqui parado é que o não vou poder ajudar. Deixe-me seguir, ou faço um disparate de que me arrependerei a vida toda.
- O senhor bebeu?
- Senhor agente, estou mal dormido. Estou cansado, estou preocupado.
- O senhor bebeu? Vou ter de lhe fazer o teste do balão. O senhor não está em condições.
- Estou desesperado. A casa do meu pai é já ali, que acidente é que posso ter no caminho até ali? Por que não vem comigo? Por que não me ajuda?
- Os seus documentos estão em ordem. Tome. Importa-se de sair da viatura?
- Mas...
- Venha cá, se faz favor. Vou ter de lhe fazer o teste do balão.
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (VII)
DA IMPORTÂNCIA DE SE TER UM CRITÉRIO NEGATIVO NESTA VIDA
Considero o Expresso um jornal ab-so-lu-ta-men-te indispensável: permite perceber, em relação a cada notícia, qual o filtro que vai prevalecer em toda a imprensa, nos dias subsequentes; e permite pensar e compreender a realidade, através do exercício higiénico que é inverter, caso a caso, as opiniões que o Expresso emite.
Não faltam em Portugal, aliás, pensamentos e pensadores que têm uma função inversamente útil: servem sobretudo para nos esclarecerem, na medida em que aprendamos a pensar ao contrário deles.
Considero o Expresso um jornal ab-so-lu-ta-men-te indispensável: permite perceber, em relação a cada notícia, qual o filtro que vai prevalecer em toda a imprensa, nos dias subsequentes; e permite pensar e compreender a realidade, através do exercício higiénico que é inverter, caso a caso, as opiniões que o Expresso emite.
Não faltam em Portugal, aliás, pensamentos e pensadores que têm uma função inversamente útil: servem sobretudo para nos esclarecerem, na medida em que aprendamos a pensar ao contrário deles.
quinta-feira, abril 13, 2006
IMAGENS KAOSTICAS (III)
Conduzo o meu mesmo insípido e básico Honda cinzento metalizado de sempre, com riscos e com manchas de tinta verde que arranquei a um portão, numa manobra mal feita, quando vejo caminhar, na beira da estrada, um imponente cavalo cor de cobre, montado por um negro cor de cobre. Como uma imagem subtraída a um catálogo de fotografias-gay. O negro é completamente calvo, tem óculos escuros, o torso desnudado, calças de ganga. Perante esta visão kaostica, perante esta excepção à regra segundo a qual só os brancos (e, já agora, os brancos ricos) se podem dedicar ao luxo de praticar hippismo, segundo a qual um cavalo é um animal de estimação dispendioso, segundo a qual os imigrados africanos em Portugal, mesmo os de segunda ou terceira geração, são caixas de supermercado e maus alunos na escola - e não orgulhosos cavaleiros em tronco nu -, respiro fundo e sigo o meu caminho. Rapidamente, em direcção ao blogue.
quarta-feira, abril 12, 2006
O PRIVILÉGIO DA INOCÊNCIA
Tenho, no meu escritório, um soberbo quadro com um circo. Olhando para a pintura vejo uma tenda realista, enquadrada por bandeiras de diversos países, muito rasgadas. Um pouco atrás, pastam um dromedário miúdo e um boi pouco boi, com uns chifres anormalmente longos.
Esperem um instante. É um quadro com efeitos sonoros? Oiço uma voz metalizada que chama a petizada para o circo? Alegria, alegria, alegria, vêm aí os palhaços? Mas não me lembro de uma tal pintura...!
Não, é a janela. Uma pequena janela, aliás, quase uma vigia: através dela, observo o «magnífico» e «internacional» circo de Montreal, que foi erguido mesmo defronte de minha casa, num descampado com muita erva. O meu filho está extasiado. «Um circo mesmo à porta de casa. Uau! Vamos, não vamos, pai? Vamos, não vamos?»
Os tempos não correm de feição para os circos. E mesmo na televisão, a concentração das mais estranhas e caducas vedetas e ex-vedetas candidatas a vedetas novamente (no mesmo sentido em que Soares foi um ex-Presidente candidato a Presidente novamente), a concentração dessas vedetas, escrevia eu, num «Circo das Celebridades», que deveria ter como efeito o redespertar da magia circense, acabou por ter o efeito contrário: convocou os descontentes, os amigos dos animais, fez reunir manifestações de pessoas que chamam a atenção para o facto de que os animais são maltratados e nenhum ser pode ser feliz na exiguidade e no desrespeito.
É politicamente incorrecto gostar-se de circo. E eu, que trago nos olhos ainda maravilhados da minha infância a experiência dos circos a que assisti e dos circos que eu próprio reproduzi, sentando amigos e familiares no meu quarto para lhes oferecer palhaçadas e magias, hesito sobre o que deverei ensinar ao meu filho. Posso deixá-lo amar qualquer coisa do circo? Ou treino-lhe os olhos para as malvadezas que o circo contém?
Eu tive o privilégio da inocência; o termo que uso carece de explicação: falo de «privilégio» no pior sentido da palavra, que é o de um bem que me coube numa injusta distribuição de bens, da qual saí favorecido.
O privilégio da inocência, que as crianças não possuem no tempo sábio, questionante, que é o nosso, tem que ver com o facto de eu ter conhecido, e amado, e brincado com muitas coisas que mais tarde viriam a ser banidas ou arrumadas do lado do pecado ou, pelo menos, do «politicamente incorrecto».
Nascido em Moçambique, filho de colonos, vivi feliz numa terra cujos limites a minha vista nunca alcançava, tão espacialmente diversa da Lisboa de ruas estreitas e escadinhas esconsas para onde me mandaram viver mais tarde.
Vivi sem dramas nem complexos: não questionava nem ouvira questionar a virtude da minha experiência colonial, de que não tinha consciência porque se tratava claramente, para mim, da «minha» casa na «minha» terra; não me sabia nem sentia opressor, nem filho de opressores, nem para mim existia a menor noção de «exploração de algo que nos não pertencia». Não tinha essa noção, porque a não tinham, possivelmente, os adultos que constituíam o meu círculo de laços e de convivência.
Fui servido por criados. Desculpem a palavra, mas é a única que devo empregar se não quero fugir da verdade. Fui «servido», sim: sem complexos, porque a minha sociedade era uma sociedade em que essa estrutura se apresentava como um dado simples, claro, certo na sua simplicidade e na sua clareza, sem os rasgões da vergonha ou da culpabilidade.
Do mesmo modo, soube de pessoas que caçavam, de alguns homens que eram «grandes» caçadores, e terei certamente admirado esses Clark Gables, num tempo em que me não tinham revelado a crueldade de se matarem animais. Tinha piedade dos cães esfomeados ou dos pássaros sofredores. Gostava de ver elefantes no Jardim Zoológico. Não seria capaz de fazer mal a um crocodilo indefeso (e dou este exemplo aparentemente absurdo porque me lembro de me exaltar com uns amigos que, do lado de cá do perímetro gradeado, atiravam paus a um crocodilo quieto como um tronco).
Sou, pois, de um tempo em que os circos faziam parte do imaginário das crianças.
A ida ao circo correspondia a um desses momentos sagrados, a um perfeito e feliz ritual do extasiamento.
Os palhaços eram o grande objectivo, mas não desdenhava os outros números e adorava os domadores, com os chicotes com que dirigiam animais obedientes ou relutantes. A justa questão que hoje se põe a propósito do modo como os animais circenses são tratados, do espaço que não têm ou da indignidade a que os sujeitam, se não mesmo crueldade, era uma questão que, para o dizer com uma simplicidade inaceitável, não me ocorreria. E, portanto, eu pude ser feliz sobre essas luzes e essas cores, sobre essa matéria do sonho, completamente ignorante de que, por vezes - naquele caso era precisamente o que se passava - a felicidade e o sonho dos meninos privilegiados são tecidos com o sofrimento, a exploração, a crueldade sobre os não-privilegiados.
Há, evidentemente, um preço a pagar.
O preço a pagar pela felicidade inocente é, mais tarde, a culpabilidade: éramos inocentes quando não tínhamos o direito a sê-lo.
Mas, olhando para a excitação do meu filho, «Uau, pai, vamos, não vamos?, um circo à porta de casa; quando os meus amigos souberem...», pergunto-me se a solução para a imperdoável inocência em que vivemos será, de facto, a sociedade da culpa em que os meninos são hoje educados.
Pergunto-me se será a ausência total, quase total, de inocência, a interdição da inocência, numa sociedade em que as crianças se culpabilizam por cada gesto seu e temem os gestos dos que as rodeiam; onde os adultos são, a seus olhos, potenciais monstros; onde o mínimo prazer vem embebido numa espécie de veneno; onde até o prazer de brincar com a água é imediatamente associado ao crime de «gastar» um bem escasso; onde comer doces é proibido porque se sabe bem de mais os efeitos e as consequências da coisa mais simples; onde o futuro ameaça e nada é inteiramente puro nem inteiramente são.
Pergunto-me.
Esperem um instante. É um quadro com efeitos sonoros? Oiço uma voz metalizada que chama a petizada para o circo? Alegria, alegria, alegria, vêm aí os palhaços? Mas não me lembro de uma tal pintura...!
Não, é a janela. Uma pequena janela, aliás, quase uma vigia: através dela, observo o «magnífico» e «internacional» circo de Montreal, que foi erguido mesmo defronte de minha casa, num descampado com muita erva. O meu filho está extasiado. «Um circo mesmo à porta de casa. Uau! Vamos, não vamos, pai? Vamos, não vamos?»
Os tempos não correm de feição para os circos. E mesmo na televisão, a concentração das mais estranhas e caducas vedetas e ex-vedetas candidatas a vedetas novamente (no mesmo sentido em que Soares foi um ex-Presidente candidato a Presidente novamente), a concentração dessas vedetas, escrevia eu, num «Circo das Celebridades», que deveria ter como efeito o redespertar da magia circense, acabou por ter o efeito contrário: convocou os descontentes, os amigos dos animais, fez reunir manifestações de pessoas que chamam a atenção para o facto de que os animais são maltratados e nenhum ser pode ser feliz na exiguidade e no desrespeito.
É politicamente incorrecto gostar-se de circo. E eu, que trago nos olhos ainda maravilhados da minha infância a experiência dos circos a que assisti e dos circos que eu próprio reproduzi, sentando amigos e familiares no meu quarto para lhes oferecer palhaçadas e magias, hesito sobre o que deverei ensinar ao meu filho. Posso deixá-lo amar qualquer coisa do circo? Ou treino-lhe os olhos para as malvadezas que o circo contém?
Eu tive o privilégio da inocência; o termo que uso carece de explicação: falo de «privilégio» no pior sentido da palavra, que é o de um bem que me coube numa injusta distribuição de bens, da qual saí favorecido.
O privilégio da inocência, que as crianças não possuem no tempo sábio, questionante, que é o nosso, tem que ver com o facto de eu ter conhecido, e amado, e brincado com muitas coisas que mais tarde viriam a ser banidas ou arrumadas do lado do pecado ou, pelo menos, do «politicamente incorrecto».
Nascido em Moçambique, filho de colonos, vivi feliz numa terra cujos limites a minha vista nunca alcançava, tão espacialmente diversa da Lisboa de ruas estreitas e escadinhas esconsas para onde me mandaram viver mais tarde.
Vivi sem dramas nem complexos: não questionava nem ouvira questionar a virtude da minha experiência colonial, de que não tinha consciência porque se tratava claramente, para mim, da «minha» casa na «minha» terra; não me sabia nem sentia opressor, nem filho de opressores, nem para mim existia a menor noção de «exploração de algo que nos não pertencia». Não tinha essa noção, porque a não tinham, possivelmente, os adultos que constituíam o meu círculo de laços e de convivência.
Fui servido por criados. Desculpem a palavra, mas é a única que devo empregar se não quero fugir da verdade. Fui «servido», sim: sem complexos, porque a minha sociedade era uma sociedade em que essa estrutura se apresentava como um dado simples, claro, certo na sua simplicidade e na sua clareza, sem os rasgões da vergonha ou da culpabilidade.
Do mesmo modo, soube de pessoas que caçavam, de alguns homens que eram «grandes» caçadores, e terei certamente admirado esses Clark Gables, num tempo em que me não tinham revelado a crueldade de se matarem animais. Tinha piedade dos cães esfomeados ou dos pássaros sofredores. Gostava de ver elefantes no Jardim Zoológico. Não seria capaz de fazer mal a um crocodilo indefeso (e dou este exemplo aparentemente absurdo porque me lembro de me exaltar com uns amigos que, do lado de cá do perímetro gradeado, atiravam paus a um crocodilo quieto como um tronco).
Sou, pois, de um tempo em que os circos faziam parte do imaginário das crianças.
A ida ao circo correspondia a um desses momentos sagrados, a um perfeito e feliz ritual do extasiamento.
Os palhaços eram o grande objectivo, mas não desdenhava os outros números e adorava os domadores, com os chicotes com que dirigiam animais obedientes ou relutantes. A justa questão que hoje se põe a propósito do modo como os animais circenses são tratados, do espaço que não têm ou da indignidade a que os sujeitam, se não mesmo crueldade, era uma questão que, para o dizer com uma simplicidade inaceitável, não me ocorreria. E, portanto, eu pude ser feliz sobre essas luzes e essas cores, sobre essa matéria do sonho, completamente ignorante de que, por vezes - naquele caso era precisamente o que se passava - a felicidade e o sonho dos meninos privilegiados são tecidos com o sofrimento, a exploração, a crueldade sobre os não-privilegiados.
Há, evidentemente, um preço a pagar.
O preço a pagar pela felicidade inocente é, mais tarde, a culpabilidade: éramos inocentes quando não tínhamos o direito a sê-lo.
Mas, olhando para a excitação do meu filho, «Uau, pai, vamos, não vamos?, um circo à porta de casa; quando os meus amigos souberem...», pergunto-me se a solução para a imperdoável inocência em que vivemos será, de facto, a sociedade da culpa em que os meninos são hoje educados.
Pergunto-me se será a ausência total, quase total, de inocência, a interdição da inocência, numa sociedade em que as crianças se culpabilizam por cada gesto seu e temem os gestos dos que as rodeiam; onde os adultos são, a seus olhos, potenciais monstros; onde o mínimo prazer vem embebido numa espécie de veneno; onde até o prazer de brincar com a água é imediatamente associado ao crime de «gastar» um bem escasso; onde comer doces é proibido porque se sabe bem de mais os efeitos e as consequências da coisa mais simples; onde o futuro ameaça e nada é inteiramente puro nem inteiramente são.
Pergunto-me.
segunda-feira, abril 10, 2006
AS MINHAS PASSAGENS PELO CÉU
Não resisto a transcrever esta passagem de um texto, da autoria de George Steiner, que me toca no seu sabor e saber profundamente proustianos:
«Por que é que eu não vou para o céu? Decerto por excelentes razões morais, mas também por razões muito práticas: já lá estive. Mas é o quê, o céu? A «Galleria» de Milão. Estou sentado diante de um capuccino autêntico, com «La Stampa», a «Frankfurter Allgemeine», «Le Monde» e o «Times». Tenho um bilhete para o Scala no bolso, e chegam até mim os dez ou doze aromas complexos da «Galleria»: o do chocolate da padaria, mas também o perfume das vinte livrarias (que se contam entre as melhores do mundo); o ruído dos passos das pessoas que vão à ópera ou ao teatro essa noite; a maneira que Milão tem de vibrar à nossa volta. Já lá estive e não preciso de um segundo [céu].»
Detenho-me a pensar nas minhas próprias viagens ao céu, nesses momentos perfeitos que todos teremos vivido um par de vezes na vida, e que a memória nos devolve quando queremos, transformados em puro mito, próximo e longínquo, como uma trama de sons, sabores - e a sensação egoista de que tudo serviu, desde o Génesis, só para permitir aquele único e fugaz pedaço de tempo.
A minha primeiro experiência do céu é vaga, porque eu era muito criança: ser conduzido, à noite, num automóvel. Não conseguirei, talvez, descrever o conjunto excelso de sensações e sentimentos em que me suspendia, nessa ideia de estar muito protegido numa espécie de concha fechada, mas com vidros, ouvindo, desatentamente, as conversas dos adultos - possivelmente a minha mãe e o meu pai, nos lugares da frente do carro -, imerso numa obscuridade levemente atenuada pelas luzes do «tablier», enquanto furávamos a noite imensa, o obscuro infinito, o desconhecido exterior, como a primitiva verdade do universo, que seria ameaçadora, que estava a um passo de se tornar ameaçadora, não o conseguindo, porque eu me encontrava do lado de dentro, num habitáculo sólido e cómodo, numa casa móvel. Suspirava de prazer. Não adormecia: deixava-me estar numa modorra perfeita.
E recordo o conteúdo já inumano, já quase angélico, desta experiência extrema da felicidade, que reinvento, hoje, de uma forma perfeitamente descontextualizada, ou quase: não sei que idade teria, ou que faria na Àfrica-do-sul (Johannesburg), nem com quem estava. Talvez com os meus tios. Quase certamente com os meus tios.
Sei só que era véspera de Natal. E que eu ia no automóvel, lá atrás, fascinado com a noite iluminada (mas sempre profunda e escura, sob a iluminação) até que os meus olhos se detiveram num imenso Pai Natal - mas seria mesmo tão grande como estou agora a vê-lo, ou é a imaginação da memória que mo refabrica assim? -, irresistível de cor e luz, muito vermelho e muito branco. Recordo que o minha surpresa era um dos muitos rostos da felicidade.
Para que conste, quando aprendi a conduzir e fazê-lo se tornou um hábito e, muitas vezes, uma obrigação, esse poder, esse Dom da felicidade que emergia no andar de automóvel à noite, se perdeu irremediavelmente.
Mas lembro-me de uma outra viagem ao céu.
Tento repeti-la episodicamente, torná-la um ritual, mas percebo que é cada vez menos possível.
Em primeiro lugar, porque tínhamos quinze anos - e nunca mais os teremos.
Estávamos o meu primo, o primo do meu primo e eu.
O primo do meu primo, que entretanto desapareceu de circulação, cortando amarras e relações com tudo e com todos, ofendido com o mundo inteiro, é outra das razões pelas quais um tal momento é irrevivível.
Eu vivia em Cascais e recebia-os. Iam dormir em minha casa, o que era sempre um autêntico espectáculo de euforia e gargalhadas, como se nos drogássemos, coisa de que, manifestamente, não tínhamos qualquer necessidade.
No momento que a memória fragilmente me devolve, estávamos os três sentados a uma mesa do Santini. O primo do meu primo raspava, com a fúria da gula, o fundo do seu copo, para não desperdiçar o mínimo vestígio do gelado. O senhor Santini, que ainda era vivo (mas falo de um tempo em que, como diria Àlvaro de Campos, estavam todos vivos ainda: o meu pai, o pai do meu primo...) aproximou-se e brincou com a fúria do Manel: «No tene doppo fondo» - já acabou mesmo, pá, os copos não têm duplo fundo...!
E ríamos perdidamente (o Manel com um pouco de vergonha: talvez tivesse principiado aí a sua raiva contra o mundo...), «sentindo», nos nossos bolsos (à maneira da magia do Scala, simbolizado no bilhete que George Steiner sabia trazer consigo), os bilhetes para um filme do Woody Allen (que também nunca mais foi o mesmo, nem me voltou a fazer rir da mesma maneira) num cinema Oxford, de Cascais, que entretanto se transformou num templo da IURD.
Algum dos meus leitores, se os há ainda (regularmente, parece-me de novo que os perco todos), gostaria de me evocar os seus céus?
«Por que é que eu não vou para o céu? Decerto por excelentes razões morais, mas também por razões muito práticas: já lá estive. Mas é o quê, o céu? A «Galleria» de Milão. Estou sentado diante de um capuccino autêntico, com «La Stampa», a «Frankfurter Allgemeine», «Le Monde» e o «Times». Tenho um bilhete para o Scala no bolso, e chegam até mim os dez ou doze aromas complexos da «Galleria»: o do chocolate da padaria, mas também o perfume das vinte livrarias (que se contam entre as melhores do mundo); o ruído dos passos das pessoas que vão à ópera ou ao teatro essa noite; a maneira que Milão tem de vibrar à nossa volta. Já lá estive e não preciso de um segundo [céu].»
Detenho-me a pensar nas minhas próprias viagens ao céu, nesses momentos perfeitos que todos teremos vivido um par de vezes na vida, e que a memória nos devolve quando queremos, transformados em puro mito, próximo e longínquo, como uma trama de sons, sabores - e a sensação egoista de que tudo serviu, desde o Génesis, só para permitir aquele único e fugaz pedaço de tempo.
A minha primeiro experiência do céu é vaga, porque eu era muito criança: ser conduzido, à noite, num automóvel. Não conseguirei, talvez, descrever o conjunto excelso de sensações e sentimentos em que me suspendia, nessa ideia de estar muito protegido numa espécie de concha fechada, mas com vidros, ouvindo, desatentamente, as conversas dos adultos - possivelmente a minha mãe e o meu pai, nos lugares da frente do carro -, imerso numa obscuridade levemente atenuada pelas luzes do «tablier», enquanto furávamos a noite imensa, o obscuro infinito, o desconhecido exterior, como a primitiva verdade do universo, que seria ameaçadora, que estava a um passo de se tornar ameaçadora, não o conseguindo, porque eu me encontrava do lado de dentro, num habitáculo sólido e cómodo, numa casa móvel. Suspirava de prazer. Não adormecia: deixava-me estar numa modorra perfeita.
E recordo o conteúdo já inumano, já quase angélico, desta experiência extrema da felicidade, que reinvento, hoje, de uma forma perfeitamente descontextualizada, ou quase: não sei que idade teria, ou que faria na Àfrica-do-sul (Johannesburg), nem com quem estava. Talvez com os meus tios. Quase certamente com os meus tios.
Sei só que era véspera de Natal. E que eu ia no automóvel, lá atrás, fascinado com a noite iluminada (mas sempre profunda e escura, sob a iluminação) até que os meus olhos se detiveram num imenso Pai Natal - mas seria mesmo tão grande como estou agora a vê-lo, ou é a imaginação da memória que mo refabrica assim? -, irresistível de cor e luz, muito vermelho e muito branco. Recordo que o minha surpresa era um dos muitos rostos da felicidade.
Para que conste, quando aprendi a conduzir e fazê-lo se tornou um hábito e, muitas vezes, uma obrigação, esse poder, esse Dom da felicidade que emergia no andar de automóvel à noite, se perdeu irremediavelmente.
Mas lembro-me de uma outra viagem ao céu.
Tento repeti-la episodicamente, torná-la um ritual, mas percebo que é cada vez menos possível.
Em primeiro lugar, porque tínhamos quinze anos - e nunca mais os teremos.
Estávamos o meu primo, o primo do meu primo e eu.
O primo do meu primo, que entretanto desapareceu de circulação, cortando amarras e relações com tudo e com todos, ofendido com o mundo inteiro, é outra das razões pelas quais um tal momento é irrevivível.
Eu vivia em Cascais e recebia-os. Iam dormir em minha casa, o que era sempre um autêntico espectáculo de euforia e gargalhadas, como se nos drogássemos, coisa de que, manifestamente, não tínhamos qualquer necessidade.
No momento que a memória fragilmente me devolve, estávamos os três sentados a uma mesa do Santini. O primo do meu primo raspava, com a fúria da gula, o fundo do seu copo, para não desperdiçar o mínimo vestígio do gelado. O senhor Santini, que ainda era vivo (mas falo de um tempo em que, como diria Àlvaro de Campos, estavam todos vivos ainda: o meu pai, o pai do meu primo...) aproximou-se e brincou com a fúria do Manel: «No tene doppo fondo» - já acabou mesmo, pá, os copos não têm duplo fundo...!
E ríamos perdidamente (o Manel com um pouco de vergonha: talvez tivesse principiado aí a sua raiva contra o mundo...), «sentindo», nos nossos bolsos (à maneira da magia do Scala, simbolizado no bilhete que George Steiner sabia trazer consigo), os bilhetes para um filme do Woody Allen (que também nunca mais foi o mesmo, nem me voltou a fazer rir da mesma maneira) num cinema Oxford, de Cascais, que entretanto se transformou num templo da IURD.
Algum dos meus leitores, se os há ainda (regularmente, parece-me de novo que os perco todos), gostaria de me evocar os seus céus?
domingo, abril 09, 2006
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (VI)
Conheço um teste para separar infalivelmente a inteligência e a estupidez: aprender a fazer balões de pastilha elástica. Por alguma obscura razão, só os estúpidos conseguem fazê-los bem.
INSTINTO FATAL 2: CAÍ NA ARMADILHA
Encontrando-me sozinho à noite, com um raríssimo tempo livre para gastar, carente de cinema, esse saudoso ritual que abandonou praticamente os meus hábitos, vi-me diante de várias salas mas de muito pouca escolha: uns filmes já tinham principiado, outros interessavam-me nulamente.
Acabei por optar por um que, com efeito, também me não interessava, mas só moderadamente me não interessava: Instinto Fatal 2.
O problema que a crítica portuguesa erigiu como «o» problema a partir do qual se decide a importância de Instinto Fatal 2 é um problema que nada me diz: ou que nada diz à minha mania wittgensteiniana (para-wittgensteiniana, de facto, porque o que Wittgesntein realmente afirma é bem diferente) de que, sobre aquilo que está já dito e redito, mais vale fazer silêncio. Tal problema é: tem algum sentido uma sequela do Instinto Fatal, a não ser para Sharon Stone mostrar que, como escrevia alguém, «ainda está ali para as curvas»?
Passo, portanto, a uma outra questão, que, essa sim, me mereceu pelo menos a seguinte reflexão: como já acontecia no nº 1, aquilo que o filme quer construir como um fim absolutamente imprevisível e, mais do que isso, totalmente ambíguo - será, pergunta-se o espectador, que a última versão é a verdadeira?, não poderia a verdade ser, antes, qualquer uma das versões que foram sendo sucessivamente sugeridas ao longo do filme? -, é um fim elaborado de uma forma extremamente desonesta: não foram revelados indícios, nem semeadas pistas, nem sendo insinuadas possibilidades e, portanto, é ilegítima essa derradeira torsão, esse final caído violentamente do céu, que viola o espírito da história para poder surpreender-nos a todos.
Talvez, portanto, valha a pena falar deste filme sob esse aspecto: como um exemplo do que se não deve fazer. Uma história - e, mais do que todas, uma história «policial» - tem de supor um pacto com o leitor ou com o espectador. Só pode ser a evolução de uma situação que nos permita, a nós que a «lemos», ir conhecendo as personagens, nos seus perfis psicológicos, não de maneira a evitar a imprevisibilidade - o que seria um romance de mistério sem a «imprevisibilidade»? -, mas de maneira a que o leitor/espectador possa entrar no jogo, arriscando as suas previsões, retirando, também, as suas conclusões. A imprevisibilidade não lhe pode ser lançada à cara de lado nenhum, a partir de coisa nenhuma.
O cinema americano, que sabe tanto - e, aquilo que sabe, sabe infinitamente melhor do que outros «cinemas» -, esquece que a fraude é, certamente, surpreendente, mas nem toda a surpresa tem de ser uma fraude.
Acabei por optar por um que, com efeito, também me não interessava, mas só moderadamente me não interessava: Instinto Fatal 2.
O problema que a crítica portuguesa erigiu como «o» problema a partir do qual se decide a importância de Instinto Fatal 2 é um problema que nada me diz: ou que nada diz à minha mania wittgensteiniana (para-wittgensteiniana, de facto, porque o que Wittgesntein realmente afirma é bem diferente) de que, sobre aquilo que está já dito e redito, mais vale fazer silêncio. Tal problema é: tem algum sentido uma sequela do Instinto Fatal, a não ser para Sharon Stone mostrar que, como escrevia alguém, «ainda está ali para as curvas»?
Passo, portanto, a uma outra questão, que, essa sim, me mereceu pelo menos a seguinte reflexão: como já acontecia no nº 1, aquilo que o filme quer construir como um fim absolutamente imprevisível e, mais do que isso, totalmente ambíguo - será, pergunta-se o espectador, que a última versão é a verdadeira?, não poderia a verdade ser, antes, qualquer uma das versões que foram sendo sucessivamente sugeridas ao longo do filme? -, é um fim elaborado de uma forma extremamente desonesta: não foram revelados indícios, nem semeadas pistas, nem sendo insinuadas possibilidades e, portanto, é ilegítima essa derradeira torsão, esse final caído violentamente do céu, que viola o espírito da história para poder surpreender-nos a todos.
Talvez, portanto, valha a pena falar deste filme sob esse aspecto: como um exemplo do que se não deve fazer. Uma história - e, mais do que todas, uma história «policial» - tem de supor um pacto com o leitor ou com o espectador. Só pode ser a evolução de uma situação que nos permita, a nós que a «lemos», ir conhecendo as personagens, nos seus perfis psicológicos, não de maneira a evitar a imprevisibilidade - o que seria um romance de mistério sem a «imprevisibilidade»? -, mas de maneira a que o leitor/espectador possa entrar no jogo, arriscando as suas previsões, retirando, também, as suas conclusões. A imprevisibilidade não lhe pode ser lançada à cara de lado nenhum, a partir de coisa nenhuma.
O cinema americano, que sabe tanto - e, aquilo que sabe, sabe infinitamente melhor do que outros «cinemas» -, esquece que a fraude é, certamente, surpreendente, mas nem toda a surpresa tem de ser uma fraude.
UM CRIMINOSO COM UM JOELHO MAU (III)
Tratava-se, então, de proceder como?
O senhor X tinha uma hora de absoluta solidão para agir: levantaria a tampa da caixa infernal em que o fechavam e, mesmo em cuecas (porque ninguém o veria nessa figura: o bairro era praticamente um deserto àquela hora, e a única pessoa que, às vezes, por ali passava, era um cego), ou em cuecas e, quando muito, uma camisola de lã que enfiasse num instantinho, para não adoecer com a brusca mudança de temperatura, saltaria pela janela que a secretária do Henriques deixava entreaberta, correria até sua casa, entraria, aproximar-se-ia de sua mulher, pegando, de caminho, numa faca de cozinha e, apanhando dona X desprevenida, talvez até de costas (sonhara tantas vezes com a cena), esfaqueá-la-ia até à morte. Simples. Básico. Perfeito. Partiria vasos, desarrumaria um pouco, roubaria dinheiro de gavetas de modo a que as culpas pudessem recair num intruso qualquer, um ladrão. Depois, sairia de casa em corrida, subiria pela janela do Henriques, reentraria na sala da sauna, por fim na caixa do inferno, certamente suado - o que não fazia a menor diferença porque, na sauna, era justamente suado que esperavam vê-lo quando o fossem desligar.
Na décima sessão, quando o tempo urgia porque só faltavam mais duas para concluir o tratamento, tomou a decisão.
Havia riscos no seu plano. Mas os riscos resumiam-se à possibilidade de alguma coisa não suceder como sucedia habitualmente.
Por exemplo: a secretária chinesa, até por causa das suas artrozes, nunca aparecia a não ser que ele gritasse por ela. Mas não poderia, por qualquer razão, naquele dia, aparecer e não o ver na sauna?
As ruas estavam sempre vazias. E, se passava alguém, era, como sabia, um senhor cego. Mas não poderia nesse dia, por azar, passar outra pessoa, um rapaz, uma senhora...?
Tinha de avançar. Não podia preocupar-se agora com os riscos. Era pegar ou largar a única oportunidade de uma vida horrível. Abriu a tampa. Correu, nas suas cuecas de ursinhos, até à cadeira onde pousara a roupa. Tentou vestir uma camisola. Mas os braços daquela espécie de embrulho de lã estavam como que amarrados um no outro. Desistiu da camisola. Enervava-se com o tempo a passar. Calçou uns sapatos de borracha. E, em cuecas, tronco nu e sapatos, sentou-se à janela, com as pernas voltadas para o exterior, prontas para o salto.
Para o salto, escrevi bem. Porque, repentinamente, apercebeu-se de que a altura era enorme. Foi deslizando como uma serpente, os dedos enclavinhados no parapeito, o corpo descendo pelo lado de fora, desenrolando-se, encostado à parede...! Mas, mesmo assim, todo esticado, os seus pés não tocavam no passeio. Longe disso. Estava pendurado, com os dedos a tremer pelo esforço para o manterem preso à janela. Considerou tornar a subir: impossível. Não tinha forças nos braços para puxar por si até lá acima de novo. Estava arrependido de toda aquela loucura. Ele não era um assassino. Era um cobarde. Por que razão um homem que não tem sequer coragem para se divorciar da mulher que odeia, haveria de ter coragem para matá-la?
Temia largar-se, saltar, aterrar no chão. Não podia gritar por socorro. Não podia, em suma, fazer coisa alguma. Estava perdido.
Nesse momento, quando a situação parecia tão complicada que nada seria capaz de a tornar pior para si, o joelho, o seu joelho, o seu joelho mau, principiou a doer. Mas a doer tanto, tão inimaginavelmente como já quase não lhe voltara a doer desde que iniciara a série de massagens...
E sob efeito da dor atroz, os dedos abriram-se-lhe todos, como cabelos eriçados.
E o seu corpo tombou.
O senhor X caía, pesada e dolorosamente, sobre um cão: era o cão do cego que costumava passar por ali àquela hora, rente à parede, ligando-se ao muro pela bengala branca.
O cão não ganiu, uivou de susto e dor.
O cego, em pânico, sentindo-se assaltado, percebendo vagamente que lhe roubavam o cão, seu único amigo nesta vida, espadeirou com a bengala em todas as direcções. E acertou regularmente em quase todo o corpo do senhor X.
Quando a secretária chinesa ouviu tocar a campainha e veio abrir a porta da rua, deu de caras, com um pequeno grito de surpresa, com o mesmo homem, o mesmo senhor X que, ainda não havia meia hora, tinha deixado a marinar no caixote.
O senhor X estava de tronco nu.
Vestia as suas cuecas de ursinhos, mas muito rasgadas.
Num dos pés, um sapato de borracha. O outro, descalço, era um pé de esqueleto, era um conjunto de ossos arrastando-se.
Respirava com dificuldade. Encurvava-se ligeiramente, só ligeiramente, como se quisesse manter um último e improvável resto ou rasto de dignidade.
Havia sangue em toda a parte. No peito, no rosto, no joelho.
Disse:
- Caí da janela!
A secretária do Henriques, Henriques esse que também aparecia lá ao fundo, a mastigar como de costume, não podia crer.
- Como? - perguntou ela.
- O que foi? - mastigou o Henriques.
- A sauna estava muito quente - explicou o senhor X, ensaiando um sorriso. Mas era o sorriso mais dorido da sua vida. - Tive de ir respirar à janela. E caí.
Imaginou a sua chegada a casa, onde a mulher também lhe perguntaria, com a sua voz ríspida:
- Que é que te aconteceu?
E desatou a chorar.
O senhor X tinha uma hora de absoluta solidão para agir: levantaria a tampa da caixa infernal em que o fechavam e, mesmo em cuecas (porque ninguém o veria nessa figura: o bairro era praticamente um deserto àquela hora, e a única pessoa que, às vezes, por ali passava, era um cego), ou em cuecas e, quando muito, uma camisola de lã que enfiasse num instantinho, para não adoecer com a brusca mudança de temperatura, saltaria pela janela que a secretária do Henriques deixava entreaberta, correria até sua casa, entraria, aproximar-se-ia de sua mulher, pegando, de caminho, numa faca de cozinha e, apanhando dona X desprevenida, talvez até de costas (sonhara tantas vezes com a cena), esfaqueá-la-ia até à morte. Simples. Básico. Perfeito. Partiria vasos, desarrumaria um pouco, roubaria dinheiro de gavetas de modo a que as culpas pudessem recair num intruso qualquer, um ladrão. Depois, sairia de casa em corrida, subiria pela janela do Henriques, reentraria na sala da sauna, por fim na caixa do inferno, certamente suado - o que não fazia a menor diferença porque, na sauna, era justamente suado que esperavam vê-lo quando o fossem desligar.
Na décima sessão, quando o tempo urgia porque só faltavam mais duas para concluir o tratamento, tomou a decisão.
Havia riscos no seu plano. Mas os riscos resumiam-se à possibilidade de alguma coisa não suceder como sucedia habitualmente.
Por exemplo: a secretária chinesa, até por causa das suas artrozes, nunca aparecia a não ser que ele gritasse por ela. Mas não poderia, por qualquer razão, naquele dia, aparecer e não o ver na sauna?
As ruas estavam sempre vazias. E, se passava alguém, era, como sabia, um senhor cego. Mas não poderia nesse dia, por azar, passar outra pessoa, um rapaz, uma senhora...?
Tinha de avançar. Não podia preocupar-se agora com os riscos. Era pegar ou largar a única oportunidade de uma vida horrível. Abriu a tampa. Correu, nas suas cuecas de ursinhos, até à cadeira onde pousara a roupa. Tentou vestir uma camisola. Mas os braços daquela espécie de embrulho de lã estavam como que amarrados um no outro. Desistiu da camisola. Enervava-se com o tempo a passar. Calçou uns sapatos de borracha. E, em cuecas, tronco nu e sapatos, sentou-se à janela, com as pernas voltadas para o exterior, prontas para o salto.
Para o salto, escrevi bem. Porque, repentinamente, apercebeu-se de que a altura era enorme. Foi deslizando como uma serpente, os dedos enclavinhados no parapeito, o corpo descendo pelo lado de fora, desenrolando-se, encostado à parede...! Mas, mesmo assim, todo esticado, os seus pés não tocavam no passeio. Longe disso. Estava pendurado, com os dedos a tremer pelo esforço para o manterem preso à janela. Considerou tornar a subir: impossível. Não tinha forças nos braços para puxar por si até lá acima de novo. Estava arrependido de toda aquela loucura. Ele não era um assassino. Era um cobarde. Por que razão um homem que não tem sequer coragem para se divorciar da mulher que odeia, haveria de ter coragem para matá-la?
Temia largar-se, saltar, aterrar no chão. Não podia gritar por socorro. Não podia, em suma, fazer coisa alguma. Estava perdido.
Nesse momento, quando a situação parecia tão complicada que nada seria capaz de a tornar pior para si, o joelho, o seu joelho, o seu joelho mau, principiou a doer. Mas a doer tanto, tão inimaginavelmente como já quase não lhe voltara a doer desde que iniciara a série de massagens...
E sob efeito da dor atroz, os dedos abriram-se-lhe todos, como cabelos eriçados.
E o seu corpo tombou.
O senhor X caía, pesada e dolorosamente, sobre um cão: era o cão do cego que costumava passar por ali àquela hora, rente à parede, ligando-se ao muro pela bengala branca.
O cão não ganiu, uivou de susto e dor.
O cego, em pânico, sentindo-se assaltado, percebendo vagamente que lhe roubavam o cão, seu único amigo nesta vida, espadeirou com a bengala em todas as direcções. E acertou regularmente em quase todo o corpo do senhor X.
Quando a secretária chinesa ouviu tocar a campainha e veio abrir a porta da rua, deu de caras, com um pequeno grito de surpresa, com o mesmo homem, o mesmo senhor X que, ainda não havia meia hora, tinha deixado a marinar no caixote.
O senhor X estava de tronco nu.
Vestia as suas cuecas de ursinhos, mas muito rasgadas.
Num dos pés, um sapato de borracha. O outro, descalço, era um pé de esqueleto, era um conjunto de ossos arrastando-se.
Respirava com dificuldade. Encurvava-se ligeiramente, só ligeiramente, como se quisesse manter um último e improvável resto ou rasto de dignidade.
Havia sangue em toda a parte. No peito, no rosto, no joelho.
Disse:
- Caí da janela!
A secretária do Henriques, Henriques esse que também aparecia lá ao fundo, a mastigar como de costume, não podia crer.
- Como? - perguntou ela.
- O que foi? - mastigou o Henriques.
- A sauna estava muito quente - explicou o senhor X, ensaiando um sorriso. Mas era o sorriso mais dorido da sua vida. - Tive de ir respirar à janela. E caí.
Imaginou a sua chegada a casa, onde a mulher também lhe perguntaria, com a sua voz ríspida:
- Que é que te aconteceu?
E desatou a chorar.
sábado, abril 08, 2006
UM CRIMINOSO COM UM JOELHO MAU (II)
Para quem quer que olhasse para o crime de fora, se realmente o viesse a cometer, dificilmente o senhor X cairia na lista dos suspeitos. De que móbil o acusariam?
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.
Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.
Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.
Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...
Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obssessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.
Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.
CONTINUA
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.
Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.
Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.
Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...
Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obssessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.
Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.
CONTINUA
sexta-feira, abril 07, 2006
UM CRIMINOSO COM UM JOELHO MAU (I)
Como, no Inverno, as dores no joelho se tornavam lancinantes, pôs-se duas ou três vezes por semana nas mãos do Henriques, que era um massagista particular e morava muito próximo dele.
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão», era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor...?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.
Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.
Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia - e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.
CONTINUA
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão», era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor...?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.
Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.
Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia - e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.
CONTINUA
terça-feira, abril 04, 2006
QUEM CONFERE VALOR À OBRA DE ARTE?
1. Tenho realmente de dizer que, mesmo quando nos compreendemos mal ou nos incompreendemos mutuamente de todo - o que sucede amiúde porque somos, manifestamente, duas pessoas muito diferentes uma da outra -, a extraordinária leitora que é sm consegue fazer, dos seus desacordos em relação ao que eu escrevo, uma autêntica corrente eléctrica de meditação e de luz. Para mim, os nossos desacordos têm valido como um verdadeiro tratado da discordância: de como esta pode ser um exercício fascinante de comunicação e de encontro no desencontro.
2. O seu último comentário, sobre o que é ser um escritor, e o meu canhestro comentário ao seu comentário, inspiram-me a pensar acerca do que eu penso disso; ou, ainda melhor: a pensar acerca do que eu não tinha pensado.
3. Alargo o problema à Arte em geral.
Pergunto: o que - ou quem - decide o valor de uma obra de Arte, quem determina o seu merecimento, a sua beleza, a sua qualidade?
Diria, antes de mais, que há um valor ideal, platónico, que não depende sequer de que haja um receptor, ou um ouvinte, ou um leitor dessa obra.
Da mesma maneira que há uma verdade matemática que subsiste por si, e seria igual a si mesma ainda que não existissem homens, nem se tivesse inventado a matemática - não foram os homens que convencionaram que dois mais dois «deveriam» ser quatro -, isto é, da mesma maneira que há, na verdade matemática, algo que não é meramente humano nem cultural, ainda que precise da humanidade e da cultura para se manifestar, também penso que uma melodia, uma pintura, um poema ou um romance podem ser em si mesmos magníficos, ainda que lhes falte um receptor, ainda que ninguém os oiça, nem veja, nem leia; ainda que desapareçam para todo o sempre sem nunca terem sido percepcionados por nenhum ser humano.
Por outras palavras: uma obra de Arte vale, primeiramente, aquilo que vale em si mesma, segundo um sentido ideal que pode até estar destinado a nunca ser decifrado. (A obra de Kafka, sabemo-lo, esteve perto de ser devorada pelo fogo. George Steiner lembra-nos que a noiva de Buchner queimou num fogão o manuscrito de «Arentino», que deveria ser a sua obra-prima. O que estes dois exemplos nos fazem pensar é que: 1. A obra de Kafka, mesmo que o seu amigo a tivesse queimado, seria, de algum modo, num mundo inteligível, o que entretanto sabemos hoje que é; 2. Não duvidamos de que «Arentino», que não existe corporeamente, que não está cá, «é», contudo, uma obra-prima).
4. Em segundo lugar - e neste ponto divirjo completamente de sm - a obra é constituída no seu merecimento, no seu valor, pelo «reconhecimento», mas não pelo reconhecimento do «público» (o público é volúvel e as mais das vezes ignorante) e sim pelo dos homens que, na época do artista em causa, têm o dever moral e estético de o compreenderem. Os que possuem cultura e conhecimentos, os que possuem instrumentos para uma apreciação profunda e rigorosa. Os críticos. Os estudiosos. Enganam-se? Sim senhor. Cometem erros? A História está pejada de exemplos. Falta-lhes o distanciamento necessário para procederem a um juízo justo? É verdade. São os mesmos a quem escapa o génio dos seus contemporâneos, os que recusam Proust (veja-se o caso de André Gide...). Mas eles são, naturalmente, os que detêm os instrumentos mais afinados e penetrantes e, com eles, o dever moral de se não enganarem. Ou de o não fazerem de ânimo leve.
5. Em última análise, bem entendido, o tempo falará mais alto. E mais surpreendentemente. A longo prazo, cabe-lhe a última palavra: será o Grande Juiz, o Derradeiro Deus, o Decisivo Escrutinador.
Eu diria que, neste moroso e complicado processo, neste difícil acerto e concerto de tão diferentes factores, o que menos importância há-de ter é a quantidade de seguidores seus contemporâneos que um artista conseguiu convencer.
Muitos dos mais elogiados autores no próprio tempo tornaram-se, depois, inteiramente desconhecidos. Foram varridos.
Pelo contrário, alguns dos mais vilipendiados, perseguidos, troçados e incompreendidos traziam afinal, no seu porvir, uma inesperada Glória póstuma.
6. O que restará, no meio disto tudo, de uma Margarida Rebelo Pinto?
2. O seu último comentário, sobre o que é ser um escritor, e o meu canhestro comentário ao seu comentário, inspiram-me a pensar acerca do que eu penso disso; ou, ainda melhor: a pensar acerca do que eu não tinha pensado.
3. Alargo o problema à Arte em geral.
Pergunto: o que - ou quem - decide o valor de uma obra de Arte, quem determina o seu merecimento, a sua beleza, a sua qualidade?
Diria, antes de mais, que há um valor ideal, platónico, que não depende sequer de que haja um receptor, ou um ouvinte, ou um leitor dessa obra.
Da mesma maneira que há uma verdade matemática que subsiste por si, e seria igual a si mesma ainda que não existissem homens, nem se tivesse inventado a matemática - não foram os homens que convencionaram que dois mais dois «deveriam» ser quatro -, isto é, da mesma maneira que há, na verdade matemática, algo que não é meramente humano nem cultural, ainda que precise da humanidade e da cultura para se manifestar, também penso que uma melodia, uma pintura, um poema ou um romance podem ser em si mesmos magníficos, ainda que lhes falte um receptor, ainda que ninguém os oiça, nem veja, nem leia; ainda que desapareçam para todo o sempre sem nunca terem sido percepcionados por nenhum ser humano.
Por outras palavras: uma obra de Arte vale, primeiramente, aquilo que vale em si mesma, segundo um sentido ideal que pode até estar destinado a nunca ser decifrado. (A obra de Kafka, sabemo-lo, esteve perto de ser devorada pelo fogo. George Steiner lembra-nos que a noiva de Buchner queimou num fogão o manuscrito de «Arentino», que deveria ser a sua obra-prima. O que estes dois exemplos nos fazem pensar é que: 1. A obra de Kafka, mesmo que o seu amigo a tivesse queimado, seria, de algum modo, num mundo inteligível, o que entretanto sabemos hoje que é; 2. Não duvidamos de que «Arentino», que não existe corporeamente, que não está cá, «é», contudo, uma obra-prima).
4. Em segundo lugar - e neste ponto divirjo completamente de sm - a obra é constituída no seu merecimento, no seu valor, pelo «reconhecimento», mas não pelo reconhecimento do «público» (o público é volúvel e as mais das vezes ignorante) e sim pelo dos homens que, na época do artista em causa, têm o dever moral e estético de o compreenderem. Os que possuem cultura e conhecimentos, os que possuem instrumentos para uma apreciação profunda e rigorosa. Os críticos. Os estudiosos. Enganam-se? Sim senhor. Cometem erros? A História está pejada de exemplos. Falta-lhes o distanciamento necessário para procederem a um juízo justo? É verdade. São os mesmos a quem escapa o génio dos seus contemporâneos, os que recusam Proust (veja-se o caso de André Gide...). Mas eles são, naturalmente, os que detêm os instrumentos mais afinados e penetrantes e, com eles, o dever moral de se não enganarem. Ou de o não fazerem de ânimo leve.
5. Em última análise, bem entendido, o tempo falará mais alto. E mais surpreendentemente. A longo prazo, cabe-lhe a última palavra: será o Grande Juiz, o Derradeiro Deus, o Decisivo Escrutinador.
Eu diria que, neste moroso e complicado processo, neste difícil acerto e concerto de tão diferentes factores, o que menos importância há-de ter é a quantidade de seguidores seus contemporâneos que um artista conseguiu convencer.
Muitos dos mais elogiados autores no próprio tempo tornaram-se, depois, inteiramente desconhecidos. Foram varridos.
Pelo contrário, alguns dos mais vilipendiados, perseguidos, troçados e incompreendidos traziam afinal, no seu porvir, uma inesperada Glória póstuma.
6. O que restará, no meio disto tudo, de uma Margarida Rebelo Pinto?
O PARADOXO
Nenhuma crítica ao sistema de ensino ou, pelo menos, do ensino da filosofia (ou, se calhar, do professor de filosofia em causa) poderia ser tão contundente como a que se encerra no seguinte paradoxo: o meu melhor aluno foi um jovem que, num longínquo 12º ano - estávamos na Escola Secundária de Pedro Nunes - não tirou positiva em nenhum teste de filosofia.
Que ele era o melhor aluno de filosofia, era-o, claramente, por uma notável conjugação de diversas competências: uma cultura superior à média, um interesse e uma curiosidade agudíssimas para as questões que eu lhes provocava, um inexcedível prazer na leitura, uma intuição filosófica penetrante, uma enorme facilidade na interpretação dos textos, uma imaginação vivíssima, que o levava a relacionar brilhantemente aspectos que muitas vezes eu próprio não relacionara e, sobretudo, uma poderosa capacidade de argumentação, perante a qual me sucedia, não frequentemente, mas algumas vezes, ficar sem nenhuma resposta convincente, hesitando, procurando aflitivamente na minha mente; o João, com quem as discussões eram tantas vezes de igual para igual, que me estimulava o espírito e me obrigava a rever-me e a repensar as ideias feitas, como não recordo que nenhum outro aluno tivesse conseguido nem creio que algum venha a conseguir do mesmo modo, era um daqueles casos em que, por uma vez, a velha banalidade usada pelos professores, «Eu aprendo imenso com os meus alunos», tinha, de facto, toda a razão de ser.
O facto de nunca ter tido positiva nos testes, não se prende necessariamente com a natureza destes. Os testes eram claros, as perguntas perfeitamente respondíveis, outros alunos, menos bons do que o João, tinham classificações elevadas.
Simplesmente, para ele, cada pergunta era o início de uma viagem que já não sabia travar. O mínimo pormenor se lhe tornava de uma exigência absurda. A necessidade de fundamentar cuidadosa e rigorosamente as suas respostas, obrigava-o a um longo tempo de preparação interior, a uma reflexão tranquila e, só depois, a pegar na esferográfica para principiar a encontrar o fio condutor da sua escrita. Não havia tempo suficiente para uma tão enorme auto-exigência. Cerca de duas horas de teste, mesmo com o intervalo, eram manifestamente insuficientes: o João apresentava-me, no fim, uma folha de ponto com muitos riscos, com respostas começadas, com promissoras ideias somente esboçadas.
Nunca resolvemos esse problema. Nem ele - que, pelo contrário, começou a encarar cada novo teste como um novo factor de perturbação e nervosismo, cada vez mais inseguro e menos capaz - nem eu, que hesitava longamente nas notas que deveria dar-lhe no fim de cada período, acabando por penalizá-lo muito menos do que poderia fazê-lo em termos de média aritmética mas, mesmo assim, muito mais do que merecia um aluno com aquela capacidade, aqueles rasgos de puro génio filosófico, aquela vertigem do pensamento.
Uma andorinha não faz a Primavera, e um João pode não ser, por si, um diagnóstico da incapacidade do ensino.
Não deixa de ter sido, para mim, uma lição que, naqueles meus primeiros anos de ensino, ainda com muitas dúvidas, valeu como um murro no estômago.
Ainda hoje sinto que este paradoxo é de uma notável eloquência:
O meu melhor aluno de filosofia nunca teve uma positiva num teste de filosofia!
Que ele era o melhor aluno de filosofia, era-o, claramente, por uma notável conjugação de diversas competências: uma cultura superior à média, um interesse e uma curiosidade agudíssimas para as questões que eu lhes provocava, um inexcedível prazer na leitura, uma intuição filosófica penetrante, uma enorme facilidade na interpretação dos textos, uma imaginação vivíssima, que o levava a relacionar brilhantemente aspectos que muitas vezes eu próprio não relacionara e, sobretudo, uma poderosa capacidade de argumentação, perante a qual me sucedia, não frequentemente, mas algumas vezes, ficar sem nenhuma resposta convincente, hesitando, procurando aflitivamente na minha mente; o João, com quem as discussões eram tantas vezes de igual para igual, que me estimulava o espírito e me obrigava a rever-me e a repensar as ideias feitas, como não recordo que nenhum outro aluno tivesse conseguido nem creio que algum venha a conseguir do mesmo modo, era um daqueles casos em que, por uma vez, a velha banalidade usada pelos professores, «Eu aprendo imenso com os meus alunos», tinha, de facto, toda a razão de ser.
O facto de nunca ter tido positiva nos testes, não se prende necessariamente com a natureza destes. Os testes eram claros, as perguntas perfeitamente respondíveis, outros alunos, menos bons do que o João, tinham classificações elevadas.
Simplesmente, para ele, cada pergunta era o início de uma viagem que já não sabia travar. O mínimo pormenor se lhe tornava de uma exigência absurda. A necessidade de fundamentar cuidadosa e rigorosamente as suas respostas, obrigava-o a um longo tempo de preparação interior, a uma reflexão tranquila e, só depois, a pegar na esferográfica para principiar a encontrar o fio condutor da sua escrita. Não havia tempo suficiente para uma tão enorme auto-exigência. Cerca de duas horas de teste, mesmo com o intervalo, eram manifestamente insuficientes: o João apresentava-me, no fim, uma folha de ponto com muitos riscos, com respostas começadas, com promissoras ideias somente esboçadas.
Nunca resolvemos esse problema. Nem ele - que, pelo contrário, começou a encarar cada novo teste como um novo factor de perturbação e nervosismo, cada vez mais inseguro e menos capaz - nem eu, que hesitava longamente nas notas que deveria dar-lhe no fim de cada período, acabando por penalizá-lo muito menos do que poderia fazê-lo em termos de média aritmética mas, mesmo assim, muito mais do que merecia um aluno com aquela capacidade, aqueles rasgos de puro génio filosófico, aquela vertigem do pensamento.
Uma andorinha não faz a Primavera, e um João pode não ser, por si, um diagnóstico da incapacidade do ensino.
Não deixa de ter sido, para mim, uma lição que, naqueles meus primeiros anos de ensino, ainda com muitas dúvidas, valeu como um murro no estômago.
Ainda hoje sinto que este paradoxo é de uma notável eloquência:
O meu melhor aluno de filosofia nunca teve uma positiva num teste de filosofia!
segunda-feira, abril 03, 2006
MARGARIDA E GEORGE
Margarida Rebelo Pinto não se sente insultada por que lhe dizerem que não sabe escrever, que não é capaz de fazer um romance com pés e cabeça, que o que produz não é literatura. Valha-me Deus! Seria muito mau sinal que a senhora o não soubesse já, ou que a preocupasse minimamente qualquer coisa que está tão obviamente arredada dos seus objectivos.
O negócio de Margarida Rebelo Pinto é outro: mais precisamente, o negócio.
Descobrir, num país inculto e vagamente semi-alfabetizado, onde se lê a «Maria», a «Crónica Feminina» ou a «TV-Guia» - que um livro propriamente dito, com mais de cinquenta ou de cem páginas, não pode vingar, a não ser que seja o desenvolvimento de uma típica carta de leitora da «Crónica Feminina», com palavrões de cinco em cinco linhas, personagens lineares (mulheres emancipadas e homens maus e estúpidos) e, uma vez feita essa descoberta, torná-la um ganha-pão, não tem que ver com literatura: tem que ver com negócio. O negócio do «best-selling». Margarida Rebelo Pinto não se preocupa com isso. Não se ofende com isso. Que haja críticos que se dêem ao trabalho de lhe ler as obras e as comentar, como se elas tivessem qualquer pretensão a ser mais do que são, revela um enorme equívoco e uma mente perturbada. Não a de Margarida. A do crítico.
João Pedro George, que é um professor universitário e tem ensaios publicados, está agora muito na moda por ter escrito um livro sobre os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto. Já tinha dado uma entrevista ao 24 Horas, vem agora à televisão a propósito da sua crítica, sem perceber aquilo que, talvez injustamente, vai estar na mente de todas as pessoas: que George se aproveita da celebridade da autora de «Não há Coincidências», «Sei lá», «Alma de Pássaro» e não sei que mais, para tratar da sua própria vida e da sua própria carreira, que havia certamente estagnado (ou, mais rigorosamente: não havia ainda arrancado) até ao momento em que teve a genial intuição de parasitar dona Rebelo Pinto. George, que não creio que alguma vez tivesse posto os pés numa televisão, dificilmente, agora, sai de lá. Vemo-lo à hora do almoço, do lanche e do jantar, entre notícias sobre manifestações em França e sobre os treze restaurantes chineses encerrados por motivo de absoluta nojeira. Aparece, geralmente, sentado num escritório pobrezinho, no género do meu, com poucos livros e uma mesa em pinho. Pensa-se logo, maldosamente: «Lá está ele à procura de um meio para progredir na vida...!»
Alguém ganhou alguma coisa com isso?
O senhor George sim - e há-de, talvez, ganhar ainda um pouco mais.
A senhora Margarida sim, porque lhe dão atenção e a confundem com uma escritora criticável (ao nível, note-se, de um Agualusa), quando se não trata de uma «escritora» mas de uma «pessoa que escreve», o que é completamente diferente. Pode agora fingir que se ofende, que se melindra, quando, de facto, nada disto lhe faz a menor mossa.
Os noticiários televisivos ganham porque, durante este início de Primavera, recebem no palco mais duas personagens envolvidas num conflito serôdio.
Todos os outros, os que vêem e ouvem, e os que ainda se dão ao trabalho de escrever sobre este assunto, como eu, só perdem. Quanto mais não seja, tempo.
Se ainda tiver leitores, peço humildemente desculpa pelo tempo que os fiz perder com esta caca.
O negócio de Margarida Rebelo Pinto é outro: mais precisamente, o negócio.
Descobrir, num país inculto e vagamente semi-alfabetizado, onde se lê a «Maria», a «Crónica Feminina» ou a «TV-Guia» - que um livro propriamente dito, com mais de cinquenta ou de cem páginas, não pode vingar, a não ser que seja o desenvolvimento de uma típica carta de leitora da «Crónica Feminina», com palavrões de cinco em cinco linhas, personagens lineares (mulheres emancipadas e homens maus e estúpidos) e, uma vez feita essa descoberta, torná-la um ganha-pão, não tem que ver com literatura: tem que ver com negócio. O negócio do «best-selling». Margarida Rebelo Pinto não se preocupa com isso. Não se ofende com isso. Que haja críticos que se dêem ao trabalho de lhe ler as obras e as comentar, como se elas tivessem qualquer pretensão a ser mais do que são, revela um enorme equívoco e uma mente perturbada. Não a de Margarida. A do crítico.
João Pedro George, que é um professor universitário e tem ensaios publicados, está agora muito na moda por ter escrito um livro sobre os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto. Já tinha dado uma entrevista ao 24 Horas, vem agora à televisão a propósito da sua crítica, sem perceber aquilo que, talvez injustamente, vai estar na mente de todas as pessoas: que George se aproveita da celebridade da autora de «Não há Coincidências», «Sei lá», «Alma de Pássaro» e não sei que mais, para tratar da sua própria vida e da sua própria carreira, que havia certamente estagnado (ou, mais rigorosamente: não havia ainda arrancado) até ao momento em que teve a genial intuição de parasitar dona Rebelo Pinto. George, que não creio que alguma vez tivesse posto os pés numa televisão, dificilmente, agora, sai de lá. Vemo-lo à hora do almoço, do lanche e do jantar, entre notícias sobre manifestações em França e sobre os treze restaurantes chineses encerrados por motivo de absoluta nojeira. Aparece, geralmente, sentado num escritório pobrezinho, no género do meu, com poucos livros e uma mesa em pinho. Pensa-se logo, maldosamente: «Lá está ele à procura de um meio para progredir na vida...!»
Alguém ganhou alguma coisa com isso?
O senhor George sim - e há-de, talvez, ganhar ainda um pouco mais.
A senhora Margarida sim, porque lhe dão atenção e a confundem com uma escritora criticável (ao nível, note-se, de um Agualusa), quando se não trata de uma «escritora» mas de uma «pessoa que escreve», o que é completamente diferente. Pode agora fingir que se ofende, que se melindra, quando, de facto, nada disto lhe faz a menor mossa.
Os noticiários televisivos ganham porque, durante este início de Primavera, recebem no palco mais duas personagens envolvidas num conflito serôdio.
Todos os outros, os que vêem e ouvem, e os que ainda se dão ao trabalho de escrever sobre este assunto, como eu, só perdem. Quanto mais não seja, tempo.
Se ainda tiver leitores, peço humildemente desculpa pelo tempo que os fiz perder com esta caca.
domingo, abril 02, 2006
A POESIA DO HIP-HOP
Se, nos Estados Unidos da América, o Hip-hop se tornou num gigantesco universo de tiques e de lugares comuns, ideias feitas para palavras feitas entoadas numa música feita, que soa, aliás, como se fosse precisamente sempre a mesma, e se os «clips» não se distinguem quase uns dos outros (os mesmos negros com os mesmos gestos e as mesmas coreografias, as mesmas roupas nos homens e a mesma falta de roupa nas mulheres), em Portugal, por um curioso fenómeno, passa-se o contrário disto.
Talvez porque a referência mtv seja fortíssima, mas também porque há, no hip-hop, uma indesmentível carga de «música negra contemporânea» e porque não são necessários instrumentos dispendiosos (o hip-hop vive muito da voz e dos passos), vários jovens, vários grupos de jovens formam, em Portugal, bandas de música: são negros, imigrantes cabo-verdeanos ou angolanos, tiveram na vida, certamente, as dificuldades que todos os imigrados, mesmo de 2ª ou 3ª geração conhecem (na escola, com a língua, profissionalmente) e vêem neste género de música um potente instrumento para denunciarem o que os faz sofrer, cantarem as suas histórias pessoais, darem-se a conhecer, progredirem a todos os níveis.
E é curioso, porque não sendo o hip-hop expressão da cultura própria, mas um género globalizado, torna-se, nas suas vozes, num revelador da sua verdade mais profunda e numa forma em que se realizam e definem, eles que, se pensarmos bem, não se reconheciam já na cultura dos seus pais, nem inteiramente na do país que os recebe nem, afinal, em nenhuma outra.
A poesia que criam é a das suas histórias pessoais, sofridas, e é, nessa medida, sempre em parte concreta, ligada aos episódios do dia-a-dia suburbano mas, ao mesmo tempo (oiçam-nos bem!), torna-se um esplêndido veículo de assimilação do que poderia ser visto como a cultura do opressor: eles aprendem um português fluente, compreendem que só o conhecimento os libertará, tornam-se filósofos, vão para além do senso comum desse seu quotidiano de jovens, procuram romper horizontes culturais e cognitivos.
Está tudo lá.
Comecei a ouvir um ou outro grupo, aqui ou ali, por mero acaso, mas cada vez mais atentamente, e vou seguindo com um ouvido desperto.
Experimentem fazê-lo.
Talvez porque a referência mtv seja fortíssima, mas também porque há, no hip-hop, uma indesmentível carga de «música negra contemporânea» e porque não são necessários instrumentos dispendiosos (o hip-hop vive muito da voz e dos passos), vários jovens, vários grupos de jovens formam, em Portugal, bandas de música: são negros, imigrantes cabo-verdeanos ou angolanos, tiveram na vida, certamente, as dificuldades que todos os imigrados, mesmo de 2ª ou 3ª geração conhecem (na escola, com a língua, profissionalmente) e vêem neste género de música um potente instrumento para denunciarem o que os faz sofrer, cantarem as suas histórias pessoais, darem-se a conhecer, progredirem a todos os níveis.
E é curioso, porque não sendo o hip-hop expressão da cultura própria, mas um género globalizado, torna-se, nas suas vozes, num revelador da sua verdade mais profunda e numa forma em que se realizam e definem, eles que, se pensarmos bem, não se reconheciam já na cultura dos seus pais, nem inteiramente na do país que os recebe nem, afinal, em nenhuma outra.
A poesia que criam é a das suas histórias pessoais, sofridas, e é, nessa medida, sempre em parte concreta, ligada aos episódios do dia-a-dia suburbano mas, ao mesmo tempo (oiçam-nos bem!), torna-se um esplêndido veículo de assimilação do que poderia ser visto como a cultura do opressor: eles aprendem um português fluente, compreendem que só o conhecimento os libertará, tornam-se filósofos, vão para além do senso comum desse seu quotidiano de jovens, procuram romper horizontes culturais e cognitivos.
Está tudo lá.
Comecei a ouvir um ou outro grupo, aqui ou ali, por mero acaso, mas cada vez mais atentamente, e vou seguindo com um ouvido desperto.
Experimentem fazê-lo.
IMAGENS KAOSTICAS (II)
Numa parede meio descascada de um velho bairro J. Pimenta, dou com a gloriosa simplicidade deste graffiti: «Bandido do Céu»!
Só isto. Que excelente título não daria.
E que significa exactamente? Como interpretar o genitivo? Será que o «do» quer dizer que o bandido tem o céu como seu limite e objectivo, que se prepara para o invadir e assaltar? Ou o «do» quer dizer que o bandido provém do céu? Do céu podem provir bandidos, anjos caídos, demónios. A origem do próprio Lúcifer não é outra. Mas, no momento da queda, perderam o vínculo com essa morada primordial. Não são demónios do céu. São só demónios. Por que manterá este bandido o seu vínculo? Tratar-se-á de um bandido de bom fundo? De um bandido que, sob a capa das suas malfeitorias, procura o Bem? Um bandido fascinante, a que o próprio Deus não conseguirá resistir...?
O que este enigmático título me lembra, é que estamos a passar completamente ao lado de uma verdadeira revolução estética e poética. A do hip-hop português.
Talvez um dia me debruce sobre essa revelação.
Só isto. Que excelente título não daria.
E que significa exactamente? Como interpretar o genitivo? Será que o «do» quer dizer que o bandido tem o céu como seu limite e objectivo, que se prepara para o invadir e assaltar? Ou o «do» quer dizer que o bandido provém do céu? Do céu podem provir bandidos, anjos caídos, demónios. A origem do próprio Lúcifer não é outra. Mas, no momento da queda, perderam o vínculo com essa morada primordial. Não são demónios do céu. São só demónios. Por que manterá este bandido o seu vínculo? Tratar-se-á de um bandido de bom fundo? De um bandido que, sob a capa das suas malfeitorias, procura o Bem? Um bandido fascinante, a que o próprio Deus não conseguirá resistir...?
O que este enigmático título me lembra, é que estamos a passar completamente ao lado de uma verdadeira revolução estética e poética. A do hip-hop português.
Talvez um dia me debruce sobre essa revelação.
sábado, abril 01, 2006
OS PEQUENOS LEITORES E OS LEITORES RETARDADOS
1. Devo confessar que nunca é sem um leve sorriso dos lábios da minha alma que digiro a informação de que certos intelectuais já tinham lido, entre os seus dez e quinze anos, alguns dos clássicos da literatura. Ainda bem para eles: A Cartuxa de Parma ou Madame Bovary, que Clara Ferreira Alves nos conta que lera por essa idade, ou Guerra e Paz, que Mega Ferreira aponta, displicentemente, que, em miúdo, tinha lido na íntegra, são bons exemplos; não me impressiono: quando me esmurram com essas gabarolices, raramente penso «Que precoces!» - penso, porventura sob efeito de um preconceito sardónico, que ou são mentirosos, ou não se lembram bem, ou que eram umas crianças enfermiças, muito pálidas, dessas que passavam longos períodos na cama, entre colheradas de óleo de fígado de bacalhau e excelentes livros. O tipo de adolescente que eu era, aos onze anos ainda não passara d'Os Cinco e d'Os Sete; não jogava futebol porque não tinha pé certeiro - mas preferia jogar basquete ou subir às árvores do que ficar fechado com um clássico nas mãos.
2. As leituras da minha vida foram encontradas e começadas e concluídas relativamente tarde. Quase todas depois dos dezoito anos. Até aí, perdera - dir-se-á - muito tempo com Banda Desenhada e cinema. Mas terei perdido de facto esse tempo? Não creio. Em todo o caso, se sim, sinto que o recuperei perfeitamente. O que este atraso precisamente me trouxe de inegavelmente bom foi uma avidez apaixonada (as paixões tardias não são melhores nem piores: são únicas, porém) e, sobretudo, um prazer da descoberta do essencial, juntamente com a sensação de que o essencial desse essencial estará poventura por vir.
3. Henry James, por exemplo.
Não conhecia de Henry James - será um sacrilégio, sem dúvida - senão um único romance: Retrato de uma Dama. Atenção: não o conhecia senão em filme (Duplo sacrilégio, portanto). Pior: ficara com uma ideia muito vaporosa do filme - a indiferença sofisticada e snob de um John Malkovich, muitos chapéus femininos, paisagens de palácios italianos, uma conversa que voara rapidamente por mim que tinha passado a maior parte do filme a dormir. Ainda se não perderam na conta dos sacrilégios?
4. Descubro agora H. James (quando o ideal seria poder dizer «redescubro») por duas vias simultâneas: a de uma biografia romanceada («Autor, Autor», de um David Lodge que nunca fora tão bom), e a da obra do próprio James, que consumo cada vez mais como um Henryjamescoholic, um James Adict, completamente maravilhado. Retrato de uma Dama, as novelas, os contos...
5. O Retrato é notável. Os diálogos são perfeitos: autênticos jogos em que, com sínteses brilhantes, inesquecíveis, se revela a perspicácia irónica das personagens principais. E, no entanto, as falas soam diferentemente em virtude das características das diferentes personagens que falam. Que lição, compreendermos que não são necessárias explicações acerca do estado do espírito dos protagonistas («Disse ela irritada» ou «respondeu ele agressivamente») para que tudo nos seja dado pelo discurso directo de cada uma. Como se o ouvíssemos interiormente, como se a irritação nos soasse aos ouvidos da mente como irritação, a ironia como ironia, a surpresa como surpresa, sem que nenhum narrador precisasse de nos alertar, de o sublinhar com adjectivos e razões.
6. Osborne, de que me lembrava vagamente, mascarado com o rosto de Malkovich - e tive de refazer no meu espírito porque, como é evidente, o Osborne de James nunca teria nem o rosto nem nada daquele actor - é uma das personagens mais extraordinárias de todas quantas me marcaram: a sua fraqueza espiritual, que é também uma indomável energia niilista, o seu mal radical de alma, o seu absoluto desinteresse pelo outro, a sua total impotência afectiva, transformados numa negligência cultivada e sofisticadíssima, é-nos dado num retrato psicológico profundo, penetrante - ao nível, para resvalar para o terreno da comparação fácil e do lugar comum, de Shakespeare.
Ter-me-ia marcado do mesmo modo na adolescência?
Tê-lo-ia lido com o mesmo prazer e interesse, com a mesma sensação de um mergulho absoluto em que, seja pelo tempo que for, estou em transe, cortei amarras com o mundo onde se encontra fisicamente a cadeira em que me sento, o candeeiro que ilumina a página e o meu próprio corpo ali sentado?
7. Recomendo, pois, que se principie tarde na literatura?
Nem por sombras.
O que penso é que nunca é tarde. Para coisa nenhuma...
2. As leituras da minha vida foram encontradas e começadas e concluídas relativamente tarde. Quase todas depois dos dezoito anos. Até aí, perdera - dir-se-á - muito tempo com Banda Desenhada e cinema. Mas terei perdido de facto esse tempo? Não creio. Em todo o caso, se sim, sinto que o recuperei perfeitamente. O que este atraso precisamente me trouxe de inegavelmente bom foi uma avidez apaixonada (as paixões tardias não são melhores nem piores: são únicas, porém) e, sobretudo, um prazer da descoberta do essencial, juntamente com a sensação de que o essencial desse essencial estará poventura por vir.
3. Henry James, por exemplo.
Não conhecia de Henry James - será um sacrilégio, sem dúvida - senão um único romance: Retrato de uma Dama. Atenção: não o conhecia senão em filme (Duplo sacrilégio, portanto). Pior: ficara com uma ideia muito vaporosa do filme - a indiferença sofisticada e snob de um John Malkovich, muitos chapéus femininos, paisagens de palácios italianos, uma conversa que voara rapidamente por mim que tinha passado a maior parte do filme a dormir. Ainda se não perderam na conta dos sacrilégios?
4. Descubro agora H. James (quando o ideal seria poder dizer «redescubro») por duas vias simultâneas: a de uma biografia romanceada («Autor, Autor», de um David Lodge que nunca fora tão bom), e a da obra do próprio James, que consumo cada vez mais como um Henryjamescoholic, um James Adict, completamente maravilhado. Retrato de uma Dama, as novelas, os contos...
5. O Retrato é notável. Os diálogos são perfeitos: autênticos jogos em que, com sínteses brilhantes, inesquecíveis, se revela a perspicácia irónica das personagens principais. E, no entanto, as falas soam diferentemente em virtude das características das diferentes personagens que falam. Que lição, compreendermos que não são necessárias explicações acerca do estado do espírito dos protagonistas («Disse ela irritada» ou «respondeu ele agressivamente») para que tudo nos seja dado pelo discurso directo de cada uma. Como se o ouvíssemos interiormente, como se a irritação nos soasse aos ouvidos da mente como irritação, a ironia como ironia, a surpresa como surpresa, sem que nenhum narrador precisasse de nos alertar, de o sublinhar com adjectivos e razões.
6. Osborne, de que me lembrava vagamente, mascarado com o rosto de Malkovich - e tive de refazer no meu espírito porque, como é evidente, o Osborne de James nunca teria nem o rosto nem nada daquele actor - é uma das personagens mais extraordinárias de todas quantas me marcaram: a sua fraqueza espiritual, que é também uma indomável energia niilista, o seu mal radical de alma, o seu absoluto desinteresse pelo outro, a sua total impotência afectiva, transformados numa negligência cultivada e sofisticadíssima, é-nos dado num retrato psicológico profundo, penetrante - ao nível, para resvalar para o terreno da comparação fácil e do lugar comum, de Shakespeare.
Ter-me-ia marcado do mesmo modo na adolescência?
Tê-lo-ia lido com o mesmo prazer e interesse, com a mesma sensação de um mergulho absoluto em que, seja pelo tempo que for, estou em transe, cortei amarras com o mundo onde se encontra fisicamente a cadeira em que me sento, o candeeiro que ilumina a página e o meu próprio corpo ali sentado?
7. Recomendo, pois, que se principie tarde na literatura?
Nem por sombras.
O que penso é que nunca é tarde. Para coisa nenhuma...
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