terça-feira, abril 04, 2006

QUEM CONFERE VALOR À OBRA DE ARTE?

1. Tenho realmente de dizer que, mesmo quando nos compreendemos mal ou nos incompreendemos mutuamente de todo - o que sucede amiúde porque somos, manifestamente, duas pessoas muito diferentes uma da outra -, a extraordinária leitora que é sm consegue fazer, dos seus desacordos em relação ao que eu escrevo, uma autêntica corrente eléctrica de meditação e de luz. Para mim, os nossos desacordos têm valido como um verdadeiro tratado da discordância: de como esta pode ser um exercício fascinante de comunicação e de encontro no desencontro.

2. O seu último comentário, sobre o que é ser um escritor, e o meu canhestro comentário ao seu comentário, inspiram-me a pensar acerca do que eu penso disso; ou, ainda melhor: a pensar acerca do que eu não tinha pensado.

3. Alargo o problema à Arte em geral.
Pergunto: o que - ou quem - decide o valor de uma obra de Arte, quem determina o seu merecimento, a sua beleza, a sua qualidade?
Diria, antes de mais, que há um valor ideal, platónico, que não depende sequer de que haja um receptor, ou um ouvinte, ou um leitor dessa obra.
Da mesma maneira que há uma verdade matemática que subsiste por si, e seria igual a si mesma ainda que não existissem homens, nem se tivesse inventado a matemática - não foram os homens que convencionaram que dois mais dois «deveriam» ser quatro -, isto é, da mesma maneira que há, na verdade matemática, algo que não é meramente humano nem cultural, ainda que precise da humanidade e da cultura para se manifestar, também penso que uma melodia, uma pintura, um poema ou um romance podem ser em si mesmos magníficos, ainda que lhes falte um receptor, ainda que ninguém os oiça, nem veja, nem leia; ainda que desapareçam para todo o sempre sem nunca terem sido percepcionados por nenhum ser humano.
Por outras palavras: uma obra de Arte vale, primeiramente, aquilo que vale em si mesma, segundo um sentido ideal que pode até estar destinado a nunca ser decifrado. (A obra de Kafka, sabemo-lo, esteve perto de ser devorada pelo fogo. George Steiner lembra-nos que a noiva de Buchner queimou num fogão o manuscrito de «Arentino», que deveria ser a sua obra-prima. O que estes dois exemplos nos fazem pensar é que: 1. A obra de Kafka, mesmo que o seu amigo a tivesse queimado, seria, de algum modo, num mundo inteligível, o que entretanto sabemos hoje que é; 2. Não duvidamos de que «Arentino», que não existe corporeamente, que não está cá, «é», contudo, uma obra-prima).

4. Em segundo lugar - e neste ponto divirjo completamente de sm - a obra é constituída no seu merecimento, no seu valor, pelo «reconhecimento», mas não pelo reconhecimento do «público» (o público é volúvel e as mais das vezes ignorante) e sim pelo dos homens que, na época do artista em causa, têm o dever moral e estético de o compreenderem. Os que possuem cultura e conhecimentos, os que possuem instrumentos para uma apreciação profunda e rigorosa. Os críticos. Os estudiosos. Enganam-se? Sim senhor. Cometem erros? A História está pejada de exemplos. Falta-lhes o distanciamento necessário para procederem a um juízo justo? É verdade. São os mesmos a quem escapa o génio dos seus contemporâneos, os que recusam Proust (veja-se o caso de André Gide...). Mas eles são, naturalmente, os que detêm os instrumentos mais afinados e penetrantes e, com eles, o dever moral de se não enganarem. Ou de o não fazerem de ânimo leve.

5. Em última análise, bem entendido, o tempo falará mais alto. E mais surpreendentemente. A longo prazo, cabe-lhe a última palavra: será o Grande Juiz, o Derradeiro Deus, o Decisivo Escrutinador.
Eu diria que, neste moroso e complicado processo, neste difícil acerto e concerto de tão diferentes factores, o que menos importância há-de ter é a quantidade de seguidores seus contemporâneos que um artista conseguiu convencer.
Muitos dos mais elogiados autores no próprio tempo tornaram-se, depois, inteiramente desconhecidos. Foram varridos.
Pelo contrário, alguns dos mais vilipendiados, perseguidos, troçados e incompreendidos traziam afinal, no seu porvir, uma inesperada Glória póstuma.

6. O que restará, no meio disto tudo, de uma Margarida Rebelo Pinto?

1 comentário:

Gil Duarte disse...

Penso que o que é irrelevante literariamente, não merece que percamos tempo a fazer-lhe crítica literária. Não significa (como comentavas noutro lado) que se não deva criticar negativamente, mas que se não pode criticar o que não tem relevância sem se cair na irrelevância. A «obra» de Margarida Rebelo Pinto é digna dos mais diversos e exaustivos estudos e análises, de História da cultura, das mentalidades, do gosto da época e do país, de sociologia. É fundamental que o façam. Mas qualquer crítica literária dos seus romances, na minha opinião, está destinada a converter-se em caca. Se leres o livro do George sobre os segredos da escrita da Margarida, percebes o que quero dizer: como se fosse um receituário, uma selecção de debilidades e uma detecção dos constantes plágios que faz de si mesma...! Deve-se estar o «caso» sociológico Margarida. Não há aí, porém, qualquer caso literário para se estudar.
O «corrente eléctrica» era o maior dos elogios. As palavras não acertam mesmo, hein?