1. Devo confessar que nunca é sem um leve sorriso dos lábios da minha alma que digiro a informação de que certos intelectuais já tinham lido, entre os seus dez e quinze anos, alguns dos clássicos da literatura. Ainda bem para eles: A Cartuxa de Parma ou Madame Bovary, que Clara Ferreira Alves nos conta que lera por essa idade, ou Guerra e Paz, que Mega Ferreira aponta, displicentemente, que, em miúdo, tinha lido na íntegra, são bons exemplos; não me impressiono: quando me esmurram com essas gabarolices, raramente penso «Que precoces!» - penso, porventura sob efeito de um preconceito sardónico, que ou são mentirosos, ou não se lembram bem, ou que eram umas crianças enfermiças, muito pálidas, dessas que passavam longos períodos na cama, entre colheradas de óleo de fígado de bacalhau e excelentes livros. O tipo de adolescente que eu era, aos onze anos ainda não passara d'Os Cinco e d'Os Sete; não jogava futebol porque não tinha pé certeiro - mas preferia jogar basquete ou subir às árvores do que ficar fechado com um clássico nas mãos.
2. As leituras da minha vida foram encontradas e começadas e concluídas relativamente tarde. Quase todas depois dos dezoito anos. Até aí, perdera - dir-se-á - muito tempo com Banda Desenhada e cinema. Mas terei perdido de facto esse tempo? Não creio. Em todo o caso, se sim, sinto que o recuperei perfeitamente. O que este atraso precisamente me trouxe de inegavelmente bom foi uma avidez apaixonada (as paixões tardias não são melhores nem piores: são únicas, porém) e, sobretudo, um prazer da descoberta do essencial, juntamente com a sensação de que o essencial desse essencial estará poventura por vir.
3. Henry James, por exemplo.
Não conhecia de Henry James - será um sacrilégio, sem dúvida - senão um único romance: Retrato de uma Dama. Atenção: não o conhecia senão em filme (Duplo sacrilégio, portanto). Pior: ficara com uma ideia muito vaporosa do filme - a indiferença sofisticada e snob de um John Malkovich, muitos chapéus femininos, paisagens de palácios italianos, uma conversa que voara rapidamente por mim que tinha passado a maior parte do filme a dormir. Ainda se não perderam na conta dos sacrilégios?
4. Descubro agora H. James (quando o ideal seria poder dizer «redescubro») por duas vias simultâneas: a de uma biografia romanceada («Autor, Autor», de um David Lodge que nunca fora tão bom), e a da obra do próprio James, que consumo cada vez mais como um Henryjamescoholic, um James Adict, completamente maravilhado. Retrato de uma Dama, as novelas, os contos...
5. O Retrato é notável. Os diálogos são perfeitos: autênticos jogos em que, com sínteses brilhantes, inesquecíveis, se revela a perspicácia irónica das personagens principais. E, no entanto, as falas soam diferentemente em virtude das características das diferentes personagens que falam. Que lição, compreendermos que não são necessárias explicações acerca do estado do espírito dos protagonistas («Disse ela irritada» ou «respondeu ele agressivamente») para que tudo nos seja dado pelo discurso directo de cada uma. Como se o ouvíssemos interiormente, como se a irritação nos soasse aos ouvidos da mente como irritação, a ironia como ironia, a surpresa como surpresa, sem que nenhum narrador precisasse de nos alertar, de o sublinhar com adjectivos e razões.
6. Osborne, de que me lembrava vagamente, mascarado com o rosto de Malkovich - e tive de refazer no meu espírito porque, como é evidente, o Osborne de James nunca teria nem o rosto nem nada daquele actor - é uma das personagens mais extraordinárias de todas quantas me marcaram: a sua fraqueza espiritual, que é também uma indomável energia niilista, o seu mal radical de alma, o seu absoluto desinteresse pelo outro, a sua total impotência afectiva, transformados numa negligência cultivada e sofisticadíssima, é-nos dado num retrato psicológico profundo, penetrante - ao nível, para resvalar para o terreno da comparação fácil e do lugar comum, de Shakespeare.
Ter-me-ia marcado do mesmo modo na adolescência?
Tê-lo-ia lido com o mesmo prazer e interesse, com a mesma sensação de um mergulho absoluto em que, seja pelo tempo que for, estou em transe, cortei amarras com o mundo onde se encontra fisicamente a cadeira em que me sento, o candeeiro que ilumina a página e o meu próprio corpo ali sentado?
7. Recomendo, pois, que se principie tarde na literatura?
Nem por sombras.
O que penso é que nunca é tarde. Para coisa nenhuma...
sábado, abril 01, 2006
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