A minha primeira reunião espírita não foi nenhuma reunião espírita.
Éramos jovens entre os dezoito e os vinte anos e encontrávamo-nos no apartamento do único de nós que já vivia em completa situação de independência - embora a mãe passasse de vez em quando para lhe arrumar a casa -, à Calçada do Carriche.
Na altura, fazíamos a experiência do copo: mas sei que os meus inúmeros e silenciosos leitores tiveram, em algum momento da vida de que nada vão querer contar-me, a sua experiência da «experiência do copo»: sobre uma mesa, punha-se um tabuleiro - um mero cartão, no fundo - previamente marcada com as letras do alfabeto e os algarismos de 0 a 9 e, em cima do tabuleiro, um copo com a boca virada para baixo.
Os presentes colocavam os dedos sobre o copo - mas, atenção: não forçavam, não pressionavam, não empurravam: limitavam-se a pousar, mal pousando sequer, as polpas dos dedos.
Alguém fazia uma pergunta.
E depois, imbuído de uma estranha e inexplicável força, o copo deslocava-se até uma letra, a seguir até outra, formando palavras, e frases, e dando-nos respostas.
Inventávamos várias teorias: que se tratava de uma energia composta pelo encontro de tantas energias secretamente emanadas das mãos próximas, como se o copo fosse um atractor. Mas uma energia capaz de escrever?, ironizava um de nós; ou, então, que, inconscientemente, um de nós, com uma personalidade de líder, instruía os demais sem ele próprio se aperceber, através de sinais de que ele mesmo não dava conta, ou semiempurrando o copo.
De todos, era eu o mais incrédulo. Aliás, eu era um sujeito estranho: recentemente chegado de Moçambique, com vários desequilíbrios motivados pela radical mudança, profundamente sociofóbico, tornara-me o céptico de serviço, o cínico, o trocista. Aquele que, muitas vezes, preferia não participar mas, de pé, mãos nos bolsos, como o espectador de um jogo de cartas, ia rodando e quebrando o ritual com uma série de comentários jocosos e perversos. Quando me lembro de como era, penso que me deviam suportar a custo.
Uma noite, em pleno teatro espírita, a luz apagou-se. De súbito.
Improvisaram-se nervosamente velas; os mais empenhados queriam prosseguir com a brincadeira.
E no silêncio que entretanto se fizera, cresceu um ruído enorme, como das profundezas da terra, como proveniente de um espírito maligno, mais que malicioso: era um apelo grave, um gemido monocórdico, um arroto prolongado.
Senti-me mal.
De uma forma ostensivamente cobarde, deixei de estar ali. (O sociofóbico que eu era tornara-se conhecido - e vulgarmente criticado - por essas súbitas retiradas, às vezes muito rápidas e quase mágicas, como puros desaparecimentos que não requeriam despedida). Fui-me, em suma.
Nessa noite, não dormi. Nos meus pesadelos, visitaram-me os espíritos de todos os meus antepassados, alguns dos quais nunca tivera a honra de conhecer, como uma certa tia-bisavó de bigode e barba.
Só no dia seguinte pude saber que o tremendo apelo das profundezas não viera de maior profundeza do que o andar de baixo, onde um vizinho adormecera cedo e ressonava o justo sono do seu cansaço.
Experiências com copos depois disso? Só mesmo as de ingerir líquidos!
quinta-feira, abril 27, 2006
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1 comentário:
É fantástico, não é? Como o cepticismo é tão frágil...
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