quarta-feira, abril 12, 2006

O PRIVILÉGIO DA INOCÊNCIA

Tenho, no meu escritório, um soberbo quadro com um circo. Olhando para a pintura vejo uma tenda realista, enquadrada por bandeiras de diversos países, muito rasgadas. Um pouco atrás, pastam um dromedário miúdo e um boi pouco boi, com uns chifres anormalmente longos.

Esperem um instante. É um quadro com efeitos sonoros? Oiço uma voz metalizada que chama a petizada para o circo? Alegria, alegria, alegria, vêm aí os palhaços? Mas não me lembro de uma tal pintura...!

Não, é a janela. Uma pequena janela, aliás, quase uma vigia: através dela, observo o «magnífico» e «internacional» circo de Montreal, que foi erguido mesmo defronte de minha casa, num descampado com muita erva. O meu filho está extasiado. «Um circo mesmo à porta de casa. Uau! Vamos, não vamos, pai? Vamos, não vamos?»

Os tempos não correm de feição para os circos. E mesmo na televisão, a concentração das mais estranhas e caducas vedetas e ex-vedetas candidatas a vedetas novamente (no mesmo sentido em que Soares foi um ex-Presidente candidato a Presidente novamente), a concentração dessas vedetas, escrevia eu, num «Circo das Celebridades», que deveria ter como efeito o redespertar da magia circense, acabou por ter o efeito contrário: convocou os descontentes, os amigos dos animais, fez reunir manifestações de pessoas que chamam a atenção para o facto de que os animais são maltratados e nenhum ser pode ser feliz na exiguidade e no desrespeito.
É politicamente incorrecto gostar-se de circo. E eu, que trago nos olhos ainda maravilhados da minha infância a experiência dos circos a que assisti e dos circos que eu próprio reproduzi, sentando amigos e familiares no meu quarto para lhes oferecer palhaçadas e magias, hesito sobre o que deverei ensinar ao meu filho. Posso deixá-lo amar qualquer coisa do circo? Ou treino-lhe os olhos para as malvadezas que o circo contém?

Eu tive o privilégio da inocência; o termo que uso carece de explicação: falo de «privilégio» no pior sentido da palavra, que é o de um bem que me coube numa injusta distribuição de bens, da qual saí favorecido.

O privilégio da inocência, que as crianças não possuem no tempo sábio, questionante, que é o nosso, tem que ver com o facto de eu ter conhecido, e amado, e brincado com muitas coisas que mais tarde viriam a ser banidas ou arrumadas do lado do pecado ou, pelo menos, do «politicamente incorrecto».
Nascido em Moçambique, filho de colonos, vivi feliz numa terra cujos limites a minha vista nunca alcançava, tão espacialmente diversa da Lisboa de ruas estreitas e escadinhas esconsas para onde me mandaram viver mais tarde.
Vivi sem dramas nem complexos: não questionava nem ouvira questionar a virtude da minha experiência colonial, de que não tinha consciência porque se tratava claramente, para mim, da «minha» casa na «minha» terra; não me sabia nem sentia opressor, nem filho de opressores, nem para mim existia a menor noção de «exploração de algo que nos não pertencia». Não tinha essa noção, porque a não tinham, possivelmente, os adultos que constituíam o meu círculo de laços e de convivência.
Fui servido por criados. Desculpem a palavra, mas é a única que devo empregar se não quero fugir da verdade. Fui «servido», sim: sem complexos, porque a minha sociedade era uma sociedade em que essa estrutura se apresentava como um dado simples, claro, certo na sua simplicidade e na sua clareza, sem os rasgões da vergonha ou da culpabilidade.

Do mesmo modo, soube de pessoas que caçavam, de alguns homens que eram «grandes» caçadores, e terei certamente admirado esses Clark Gables, num tempo em que me não tinham revelado a crueldade de se matarem animais. Tinha piedade dos cães esfomeados ou dos pássaros sofredores. Gostava de ver elefantes no Jardim Zoológico. Não seria capaz de fazer mal a um crocodilo indefeso (e dou este exemplo aparentemente absurdo porque me lembro de me exaltar com uns amigos que, do lado de cá do perímetro gradeado, atiravam paus a um crocodilo quieto como um tronco).

Sou, pois, de um tempo em que os circos faziam parte do imaginário das crianças.
A ida ao circo correspondia a um desses momentos sagrados, a um perfeito e feliz ritual do extasiamento.
Os palhaços eram o grande objectivo, mas não desdenhava os outros números e adorava os domadores, com os chicotes com que dirigiam animais obedientes ou relutantes. A justa questão que hoje se põe a propósito do modo como os animais circenses são tratados, do espaço que não têm ou da indignidade a que os sujeitam, se não mesmo crueldade, era uma questão que, para o dizer com uma simplicidade inaceitável, não me ocorreria. E, portanto, eu pude ser feliz sobre essas luzes e essas cores, sobre essa matéria do sonho, completamente ignorante de que, por vezes - naquele caso era precisamente o que se passava - a felicidade e o sonho dos meninos privilegiados são tecidos com o sofrimento, a exploração, a crueldade sobre os não-privilegiados.

Há, evidentemente, um preço a pagar.
O preço a pagar pela felicidade inocente é, mais tarde, a culpabilidade: éramos inocentes quando não tínhamos o direito a sê-lo.

Mas, olhando para a excitação do meu filho, «Uau, pai, vamos, não vamos?, um circo à porta de casa; quando os meus amigos souberem...», pergunto-me se a solução para a imperdoável inocência em que vivemos será, de facto, a sociedade da culpa em que os meninos são hoje educados.
Pergunto-me se será a ausência total, quase total, de inocência, a interdição da inocência, numa sociedade em que as crianças se culpabilizam por cada gesto seu e temem os gestos dos que as rodeiam; onde os adultos são, a seus olhos, potenciais monstros; onde o mínimo prazer vem embebido numa espécie de veneno; onde até o prazer de brincar com a água é imediatamente associado ao crime de «gastar» um bem escasso; onde comer doces é proibido porque se sabe bem de mais os efeitos e as consequências da coisa mais simples; onde o futuro ameaça e nada é inteiramente puro nem inteiramente são.
Pergunto-me.

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