sexta-feira, abril 21, 2006

O LUGAR DA MENTIRA

Uma vez que o meu objectivo não é, neste blogue, a aprovação dos leitores ou a geração de qualquer tipo de consenso entre mim, que escrevo, e quem quer que me leia, e uma vez que me proponho mover-me, kaosticamente, sempre à margem das rotinas do pensamento moral e político, frequentemente ao contrário dessas rotinas, quero, hoje, atrever-me a assumir aquilo que começou por me pôr os próprios cabelos em pé.

Não concebo um mundo sem mentira.

A ideia kantiana de que devo agir sempre segundo um imperativo incondicionado, universal, independentemente das consequências, perturba-me: não só pela sua inviabilidade (porque, aliás, não há nisto qualquer inviabilidade: conheço pessoas que agem sempre por dever, sejam quais forem os estragos que daí advenham), mas porque não tomar em consideração as consequências dos meus actos, não me preocupar em saber como eles afectam e prejudicam os outros, ou como os ferem, é uma atitude que raia a pura insensibilidade e que, portanto, me parece profundamente imoral.

Não entendo, de resto, uma moral pura, inteiramente racional, sem um elemento afectivo e amoroso, num total desprezo pelo sensível. Não entendo uma moral insensível.

A questão da mentira introduz-se, então, neste intervalo entre razão e sentimento: sim, sim, sim, eu sei, sm, eu sei que a mentira implica sempre «enganar» outrem, implica não confiar na sua capacidade de viver a verdade, de conviver com a verdade, como se ele a não merecesse. A minha amiga Maria, por exemplo, diz-me que, para ela, os amigos - pelo menos os amigos - são aqueles que lhe merecem unicamente a verdade, custe ela o que custar.
Não sei. O ponto é que essa interpretação dos factos que designo por verdade pode conter uma terrível carga de destruição.
À mentira sem a qual não podemos passar, chamo delicadeza. Porquê «delicadeza»? Porque a mentira em que penso se produz por cuidado e preoupação, por compreensão da fragilidade de outrem (o termo correcto seria vulnerabilidade: somos todos vulneráveis); porque se não trata da trapaça ou da fraude. Porque se não trata de enganar para proveito próprio.
É de notar, a propósito destas distinções, que elas nunca foram, que eu saiba, pensadas moralmente. Em nenhum tratado de moral que eu conheça, se procura determinar esta diferenciação essencial entre mentiras: a patológica; aquela de que o mentiroso tiraria proveito (que, essa sim, considero imoral); a que visaria servir uma Causa - política, social ou outra -; a que me protegeria do castigo - ou essa espécie de delicadeza, esse desvelo que receia agredir alguém com uma verdade insuportável. Podemos, honestamente, indiferenciá-las? Colocá-las no mesmo saco? Considerá-las todas num mesmo grau do pecado, do mal?
Por mim, confesso, não sou capaz de dizer a uma pessoa que me pergunta, ansiosamente, se a acho bonita - «Não»; nem a uma pessoa que me pergunta se gostei do seu poema - «Não»; nem a uma pessoa que, de algum modo, se abre comigo, se me confia - que, do meu ponto de vista, não tem razão alguma e que procedeu mal.
O problema reside em que, assim sendo, deixo de ser uma pessoa confiável. Podem procurar-me para que eu lhes diga o que, no fundo, querem ouvir, mas não me procuram para saber a verdade.

E, no entanto, a verdade está sempre presente em tudo quanto digo: presente como um fim, uma preocupação, um fantasma, um espinho, um remorso, uma intranquilidade, uma angústia, um olho severo, uma culpa, por vezes uma utopia. Di-la-ei quando perceber que é o melhor para aquela pessoa: o que ela precisa de ouvir e de saber. Ou di-la-ei quando o conseguir.

Mas recuso-me a usar a verdade como uma arma.
Recuso-me a fazer dela um puro dever moral.
Recuso-me a fazer dela um modo de vingança, para meu sádico prazer, ou o meio, deliberado ou inocente, de esmagamento do outro, de humilhação e rejeição.

Recuso-me a fazer dela um valor absoluto.

A necessidade de mentir não está longe da necessidade de dizer a verdade. Essa hesitação, essa impotência em face da verdade, admito mesmo chamá-la assim é, do meu ponto de vista, uma outra face da exigência de ser verdadeiro. A exigência que, neste momento, me obriga a ser completa e rigorosamente sincero: ao ponto de escrever um texto tão «incorrecta» e dolorosamente verdadeiro como este.

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