sexta-feira, abril 28, 2006

O INFERNO

Da brutal Divina Comédia de Dante Alighieri, a última parte, «O Paraíso», parece-me um final insípido para a obra. Mas sejamos justos: insípido precisamente porque, quem leu as partes anteriores, e se deixou arrebatar por elas, não se pode conformar nem satisfazer com uma conclusão que não está à medida da tensão e do prazer (literário, poético, estético) que tinham vindo a crescer em si. Mesmo a parte do meio, «O Purgatório», parece-me insuficiente ou, pelo menos, esquecível. Pelas mesmas razões: falta-lhe a tensão trágica do início, aquela dor que nos toca e comove, a crueldade que tudo impregna e nos dilacera de um modo sublime.
Que início é esse? «O Inferno».
Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudessemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra complexa e, sobretudo, completa. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo, que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a sublime dimensão do seu «Inferno».

Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condena as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...

Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada, por um lado, e de uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado, mas porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?

É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser interpretadas em interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se catiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.

É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.

Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.

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