Não resisto a transcrever esta passagem de um texto, da autoria de George Steiner, que me toca no seu sabor e saber profundamente proustianos:
«Por que é que eu não vou para o céu? Decerto por excelentes razões morais, mas também por razões muito práticas: já lá estive. Mas é o quê, o céu? A «Galleria» de Milão. Estou sentado diante de um capuccino autêntico, com «La Stampa», a «Frankfurter Allgemeine», «Le Monde» e o «Times». Tenho um bilhete para o Scala no bolso, e chegam até mim os dez ou doze aromas complexos da «Galleria»: o do chocolate da padaria, mas também o perfume das vinte livrarias (que se contam entre as melhores do mundo); o ruído dos passos das pessoas que vão à ópera ou ao teatro essa noite; a maneira que Milão tem de vibrar à nossa volta. Já lá estive e não preciso de um segundo [céu].»
Detenho-me a pensar nas minhas próprias viagens ao céu, nesses momentos perfeitos que todos teremos vivido um par de vezes na vida, e que a memória nos devolve quando queremos, transformados em puro mito, próximo e longínquo, como uma trama de sons, sabores - e a sensação egoista de que tudo serviu, desde o Génesis, só para permitir aquele único e fugaz pedaço de tempo.
A minha primeiro experiência do céu é vaga, porque eu era muito criança: ser conduzido, à noite, num automóvel. Não conseguirei, talvez, descrever o conjunto excelso de sensações e sentimentos em que me suspendia, nessa ideia de estar muito protegido numa espécie de concha fechada, mas com vidros, ouvindo, desatentamente, as conversas dos adultos - possivelmente a minha mãe e o meu pai, nos lugares da frente do carro -, imerso numa obscuridade levemente atenuada pelas luzes do «tablier», enquanto furávamos a noite imensa, o obscuro infinito, o desconhecido exterior, como a primitiva verdade do universo, que seria ameaçadora, que estava a um passo de se tornar ameaçadora, não o conseguindo, porque eu me encontrava do lado de dentro, num habitáculo sólido e cómodo, numa casa móvel. Suspirava de prazer. Não adormecia: deixava-me estar numa modorra perfeita.
E recordo o conteúdo já inumano, já quase angélico, desta experiência extrema da felicidade, que reinvento, hoje, de uma forma perfeitamente descontextualizada, ou quase: não sei que idade teria, ou que faria na Àfrica-do-sul (Johannesburg), nem com quem estava. Talvez com os meus tios. Quase certamente com os meus tios.
Sei só que era véspera de Natal. E que eu ia no automóvel, lá atrás, fascinado com a noite iluminada (mas sempre profunda e escura, sob a iluminação) até que os meus olhos se detiveram num imenso Pai Natal - mas seria mesmo tão grande como estou agora a vê-lo, ou é a imaginação da memória que mo refabrica assim? -, irresistível de cor e luz, muito vermelho e muito branco. Recordo que o minha surpresa era um dos muitos rostos da felicidade.
Para que conste, quando aprendi a conduzir e fazê-lo se tornou um hábito e, muitas vezes, uma obrigação, esse poder, esse Dom da felicidade que emergia no andar de automóvel à noite, se perdeu irremediavelmente.
Mas lembro-me de uma outra viagem ao céu.
Tento repeti-la episodicamente, torná-la um ritual, mas percebo que é cada vez menos possível.
Em primeiro lugar, porque tínhamos quinze anos - e nunca mais os teremos.
Estávamos o meu primo, o primo do meu primo e eu.
O primo do meu primo, que entretanto desapareceu de circulação, cortando amarras e relações com tudo e com todos, ofendido com o mundo inteiro, é outra das razões pelas quais um tal momento é irrevivível.
Eu vivia em Cascais e recebia-os. Iam dormir em minha casa, o que era sempre um autêntico espectáculo de euforia e gargalhadas, como se nos drogássemos, coisa de que, manifestamente, não tínhamos qualquer necessidade.
No momento que a memória fragilmente me devolve, estávamos os três sentados a uma mesa do Santini. O primo do meu primo raspava, com a fúria da gula, o fundo do seu copo, para não desperdiçar o mínimo vestígio do gelado. O senhor Santini, que ainda era vivo (mas falo de um tempo em que, como diria Àlvaro de Campos, estavam todos vivos ainda: o meu pai, o pai do meu primo...) aproximou-se e brincou com a fúria do Manel: «No tene doppo fondo» - já acabou mesmo, pá, os copos não têm duplo fundo...!
E ríamos perdidamente (o Manel com um pouco de vergonha: talvez tivesse principiado aí a sua raiva contra o mundo...), «sentindo», nos nossos bolsos (à maneira da magia do Scala, simbolizado no bilhete que George Steiner sabia trazer consigo), os bilhetes para um filme do Woody Allen (que também nunca mais foi o mesmo, nem me voltou a fazer rir da mesma maneira) num cinema Oxford, de Cascais, que entretanto se transformou num templo da IURD.
Algum dos meus leitores, se os há ainda (regularmente, parece-me de novo que os perco todos), gostaria de me evocar os seus céus?
segunda-feira, abril 10, 2006
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