domingo, abril 30, 2006

EM DEFESA DE SIGMUND FRAUDE

1. Nos anos setenta, quando a psicanálise invadira, de alguma forma, o discurso de qualquer gato-pingado e não havia conversa de café que não estivesse recheada do jargão freudiano, alguma coisa nesse abuso começou a cansar-me e a soar-me a exagero: demasiado sexo (no sentido em que diríamos de alguém que não viveu senão para isso e disso morreu), demasiado inconsciente e demasiados complexos vinham explicar e justificar os comportamentos mais inocentes - e isso porque, num certo sentido (o sentido psicanalítico, justamente), não havia comportamentos inocentes.

2. Nos anos oitenta li, com surpresa, um dos primeiros artigos em que o nome «Freud» aparecia associado ao termo «fraude», permitindo jogos de palavras que faziam vir ao de cima um inesperado recalcado feito de erros, de enganos, de imposturas.

3. Passando, ontem, uma vista de olhos por uma das centenas de revistas do Expresso, que não quer deixar de assinalar o século e meio do nascimento de Freud, assusto-me um pouco com a forma como a intelectualidade mudou de ideias desde o tempo abusivamente freudiano da minha adolescência, e parece agora comprazer-se na destruição sistemática da herança do Sigismundo. Desde o seu mau feitio e a sua relação difícil com os amigos, até às mentiras que publicou a propósito das terapias - que, afinal, raramente teriam sido tão bem sucedidas como as descreveu -, passando pelos roubos intelectuais, tudo se conjuga e amontoa para fazer da psicanálise a maior mistificação do século.

4. Mas que significa exactamente isso? Que não há «inconsciente»? Que não existe «superego»? Que o sonho, seja ou não «a realização cifrada dos nossos desejos», como o pretendia Freud, não é, sequer, uma expressão do nosso inconsciente? Que não é, em última análise, uma expressão «interpretável»? Ou que, na verdade, o sexo não tem, no homem e na vida humana, o peso que a psicanálise lhe atribuiu? Ou que não está presente na infância - e as crianças são, de facto, os anjos assexuados que a rainha Vitória teria gostado que fossem...?

5. Não contesto que, na base, a psicanálise seja, antes de mais, um brilhante mito. Um mito, isto é, uma explicação da vida e dos comportamentos humanos segundo os actos de deuses antropomórficos: o «ego», o «id», o «superego» são deuses em guerra e em paz, o «sexo» é um Zeus que tudo controla poderosamente, as «neuroses» são duendes maléficos contra os quais o homem tem de se proteger através das novas formas de oferenda e sacrifício patrocinados pela psicanálise. Nem contesto que, na criação dessa mitologia esteja um outro ser mitológico, o próprio Freud, um deus desrespeitador, pouco íntegro, arrogante e vaidoso. Contesto é que, em face dessa genial fabricação, desse romance acerca dos nossos impulsos, não reste hoje nada senão desprezo e desconfiança. Porque, na minha perspectiva, o que se faz é - como em tudo -, passar-se de um fascínio ilimitado, para um radical e sistemático apagamento do significado, a vários títulos extraordinário, da psicanálise. Ou seja, passa-se de uma hipérbole de sinal positivo para uma hipérbole de sinal negativo...

6. Culturalmente, nem vale a pena lembrar o que a psicanálise indirectamente alimentou em todas as áreas: da poesia e da literatura à pintura, à música ou ao cinema (e por que se associa tão raramente Hitschkock à psicanálise?), nada terá ficado imune ao contágio. Nos domínios da hermenêutica e da crítica - com os exageros do costume -, ou na filosofia, o nosso pensamento é inteiramente freudiano, do mesmo modo que é marxista: mesmo que (em certos casos, «sobretudo se») não somos freudianos e não somos marxistas.

7. Mas, mais do que isso, insisto em que a psicanálise é uma ciência: não, naturalmente, no sentido estrito em que Popper a define - mas por que razão deveremos aceitar que é a Popper que cabe traçar as derradeiras fronteiras entre o científico e o não-científico?
(Se, neste momento, Popper é ainda respeitado como uma espécie de papa da epistemologia, não será bom começarmos a temer pela forma como possam depois vir a tratá-lo, quando se descobrir que, afinal, sob o mito havia um homem com vícios e defeitos?)
É uma ciência no sentido em que nos forneceu instrumentos e conceitos, porventura não-falsificáveis na acepção popperiana, mas, contudo, inteligentíssimos e, indiscutivelmente, eficazes, produtivos, riquíssimos de consequências.
Ou chamemos-lhe uma quase-ciência: um terreno minado onde, como se diria de droga, o «bom» produto se mistura e confunde com produto «mau», onde muito está por testar e provar, onde intuições, as mais das vezes geniais, carecem inteiramente de confirmação ou foram falsamente «confirmadas». É uma ciência marcada pelo charlatanismo. É uma ciência carregada de mito. Sim.
Mas, precisamente: não é, de algum modo, toda a história da ciência, esta mesma mistura? Esta amálgama de intuição e racionalidade?
Não é muitas vezes confusa, nessa história, o limite onde acaba o charlatanismo e começa o inatacável rigor científico?

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