terça-feira, abril 04, 2006

O PARADOXO

Nenhuma crítica ao sistema de ensino ou, pelo menos, do ensino da filosofia (ou, se calhar, do professor de filosofia em causa) poderia ser tão contundente como a que se encerra no seguinte paradoxo: o meu melhor aluno foi um jovem que, num longínquo 12º ano - estávamos na Escola Secundária de Pedro Nunes - não tirou positiva em nenhum teste de filosofia.
Que ele era o melhor aluno de filosofia, era-o, claramente, por uma notável conjugação de diversas competências: uma cultura superior à média, um interesse e uma curiosidade agudíssimas para as questões que eu lhes provocava, um inexcedível prazer na leitura, uma intuição filosófica penetrante, uma enorme facilidade na interpretação dos textos, uma imaginação vivíssima, que o levava a relacionar brilhantemente aspectos que muitas vezes eu próprio não relacionara e, sobretudo, uma poderosa capacidade de argumentação, perante a qual me sucedia, não frequentemente, mas algumas vezes, ficar sem nenhuma resposta convincente, hesitando, procurando aflitivamente na minha mente; o João, com quem as discussões eram tantas vezes de igual para igual, que me estimulava o espírito e me obrigava a rever-me e a repensar as ideias feitas, como não recordo que nenhum outro aluno tivesse conseguido nem creio que algum venha a conseguir do mesmo modo, era um daqueles casos em que, por uma vez, a velha banalidade usada pelos professores, «Eu aprendo imenso com os meus alunos», tinha, de facto, toda a razão de ser.
O facto de nunca ter tido positiva nos testes, não se prende necessariamente com a natureza destes. Os testes eram claros, as perguntas perfeitamente respondíveis, outros alunos, menos bons do que o João, tinham classificações elevadas.
Simplesmente, para ele, cada pergunta era o início de uma viagem que já não sabia travar. O mínimo pormenor se lhe tornava de uma exigência absurda. A necessidade de fundamentar cuidadosa e rigorosamente as suas respostas, obrigava-o a um longo tempo de preparação interior, a uma reflexão tranquila e, só depois, a pegar na esferográfica para principiar a encontrar o fio condutor da sua escrita. Não havia tempo suficiente para uma tão enorme auto-exigência. Cerca de duas horas de teste, mesmo com o intervalo, eram manifestamente insuficientes: o João apresentava-me, no fim, uma folha de ponto com muitos riscos, com respostas começadas, com promissoras ideias somente esboçadas.
Nunca resolvemos esse problema. Nem ele - que, pelo contrário, começou a encarar cada novo teste como um novo factor de perturbação e nervosismo, cada vez mais inseguro e menos capaz - nem eu, que hesitava longamente nas notas que deveria dar-lhe no fim de cada período, acabando por penalizá-lo muito menos do que poderia fazê-lo em termos de média aritmética mas, mesmo assim, muito mais do que merecia um aluno com aquela capacidade, aqueles rasgos de puro génio filosófico, aquela vertigem do pensamento.
Uma andorinha não faz a Primavera, e um João pode não ser, por si, um diagnóstico da incapacidade do ensino.
Não deixa de ter sido, para mim, uma lição que, naqueles meus primeiros anos de ensino, ainda com muitas dúvidas, valeu como um murro no estômago.
Ainda hoje sinto que este paradoxo é de uma notável eloquência:
O meu melhor aluno de filosofia nunca teve uma positiva num teste de filosofia!

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