quinta-feira, janeiro 03, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (III)

Por desejo do improvável visitante, conduziram-no à sala de jantar (ou, mais rigorosamente, «a uma divisão», conforme ele pedira, que tivesse «uma mesa grande», e que acabou por coincidir, de facto, com a sala de jantar).
Aí chegados, fazendo, com a ajuda de Mrs. Arbuckle, espaço entre copos e pratos, o grego depositou o impressionante embrulho sobre aquela mesa longa (que, quando havia muitos convidados, se tornava ainda mais longa, mercê de umas providenciais orelhas que ora se ocultavam, ora a estendiam).
Com uma lentidão deliberada, principiou a rasgar o papel do que quer que fosse, no embrulho.
Enquanto assim procedia, contudo, não parava de falar: sim, tinha vindo absolutamente sozinho, confessou. Ele próprio, contra os seus hábitos e a sua comodidade, conduzira o Bentley até ali, prescindindo do motorista. (As crianças seguiam, atentas, aquelas mãos que, em câmara lenta, continuavam a tirar pedacinhos do papel de embrulho).
A questão - revelava Zorbas Castorpopoulos - é que à meia noite, deveria imperiosamente estar numa festa, num local onde a sua ausência seria tomada como um imperdoável gesto de hostilidade.
Obviamente, não poderia fazer-se acompanhar «daquilo». (E, com o queixo, impondo-se uma pausa na manobra de desembrulhar, apontava para o misterioso objecto, ainda envolvido em papel colorido).
Todavia, por outro lado, não poderia deixar «aquilo» em sua casa, porque não confiava em ninguém. Em nenhuma das pessoas que o rodeavam habitualmente. Mesmo que tivesse dado folga ao mordomo, ao motorista, à governanta, à cozinheira, ao copeiro, aos criados e criadas, aos moços de estrebaria, ao treinador dos cavalos, ao tratador dos cães, aos jardineiros e por aí fora, bastava-lhe ... (voltara ao «desembrulhanço»; via-se já a parte superior de qualquer coisa metálica; uma espécie de capacete?)... bastava-lhe a simples ideia de que eles conheciam os cantos à mansão, de que possuíam chaves, possibilidades quase infinitas de entrada e circulação, para que não pudesse serenar.
Com três últimos gestos, desfez, por fim, o embrulho, deixando ver que aquela espécie de capacete não era senão o tecto, digamos assim, de uma gaiola.
No seu interior, fitava-os agudamente, com uns olhos verdes, faiscantes, em tudo semelhantes aos do seu proprietário, um gato.
- Meus senhores, este é Zorba, o gato! É o meu único herdeiro. Tudo o que vos peço é que mo vigiem durante esta noite. Só esta noite. Oh, serão principescamente recompensados. Não tenho qualquer outra solução.
- Mas o senhor não nos conhece...
- Oh, mas conheço, Lady Gloria, conheço todos e cada um dos presentes. Eu faço sempre o meu trabalho de casa. Nunca improviso. - Com estas palavras, olhou para o relógio preso de uma corrente no bolso. Deu um estalido com a língua, como se quisesse dizer «já estou a demorar muito...»; desejou boas-noites e, sem esperar por nenhum assentimento, retirou-se.
Zorba, o gato, fez «pffffff» com alguma agressividade.

Nesse preciso momento, eram vinte e três horas e quarenta e sete minutos (já Mr. Castorpopoulos entrara no seu Bentley e se sumira na noite, ainda a maioria dos convivas não regressara inteiramente a si), ouviu-se, da cozinha, uma tremenda gritaria.
Começava assim, desta forma absurda, com gritos histéricos, o primeiro dos três escândalos dessa noite.

(CONTINUA)

1 comentário:

zorbas disse...

Zorbas, o único herdeiro! Soa bem...