quarta-feira, janeiro 09, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (VI)

Virginia Turtle que, para além de excelente cozinheira, era uma devoradora de livros policiais, num gosto cultivado pelos solitários e prolongados dias que os pulmões fracos a forçavam a passar na cama, tomou, repentinamente, a direcção do pequeno grupo. Nunca pensara viver, em vida real, um romance em tudo tão semelhante aos que povoavam as suas horas de respiração penosa e fatigante.
Por outro lado, naquele momento, ninguém mais estava, ali, em condições de tomar a mínima decisão. Mrs. Arbuckle e Emily haviam desmaiado em uníssono. Mr. Arbuckle, doido de dor, sentara-se no seu sofá predilecto, meio paralisado, como se afectado por uma estranha indiferença que não era mais do que a tentativa desesperada de regressar ao país das memórias, de onde se arrependia já de ter saído; Lady Gloria, chorando, procurava acordar as mulheres desmaiadas e, ao mesmo tempo, esconder a Melody o cadáver que esta já tivera ocasião de ver. Entretanto, John, o «primo» John, como o Engenheiro costumava chamar-lhe, arrastava as crianças dali para fora, tão triste como se sentisse a faca no próprio coração. Iria, seguidamente, fazer telefonemas - mas que polícia, ou que médico, o atenderiam no início de um novo ano?

Mrs. Virginia Turtle examinou atentamente o corpo, sem lhe tocar, e examinou a gaiola. Disse, para si: «Não a arrobaram. Trabalho bem feito...»; serviu uma bebida forte às únicas que permaneciam completamente acordadas, ajudou-as a sentar, deu umas palmadinhas no ombro de Melody e perguntou-lhe:
- Querida, está melhor? Oiça, preciso que me diga uma coisa. Mas pense bem, pense muito bem antes de responder. Quanto a Charlie: viu-o, realmente? Era ele? Foi de certeza ele que a... hum... incomodou?!
- Charlie! Sim, sim...- retorquiu a rapariga, assustadíssima, com os olhos muito abertos. Depois principiou a murmurar incongruências, numa obcecada reza aos demónios do seu espírito inquieto.
- Não podia ser Charlie - exclamou Lady Gloria. - Charlie tinha saído para a festa do Clube Sueco.
- Bem - pensava Virginia Turtle em voz alta -, saiu, é certo, mas podia ter tornado a entrar, discretamente, durante um momento de confusão, não é verdade? E houve tantos! A verdade é que ele e o pai se davam mal. Oh, e ultimamente, então, andavam furiosos, positivamente furiosos um com o outro, sobretudo por causa de Mrs. Björk. Devo aliás dizer que a cena a que eu assisti hoje à tarde... ui! A raiva com que o senhor Engenheiro insultou o filho diante da nora, e a raiva com que este lhe respondeu...
- Não - teimou Lady Gloria. - Charlie não poderia ter entrado, porque não tinha chave. Lembro-me de a minha cunhada me ter dito precisamente que o seu neto tinha perdido a chave hoje, quando foi fazer uma visita qualquer não se sabe a quem...

Lady Gloria parecia, de facto, tão empenhada em defender Charles Arbuckle, em recusar que ele pudesse ter molestado a sua filha, quanto mais assassinado o próprio pai (e feito sumir o gato, já agora...) que, mais do que espanto, foi quase com frustração que viu desfazer-se o argumento da chave. Era Charlie que estava justamente a entrar em casa, pela porta da rua, com uma chave que mantinha ainda entre dois dedos...
- Charlie!
Vinha só, com o fato em desalinho, o cabelo despenteado.
Melody levantou-se, num acto de pânico.

(CONTINUA)

4 comentários:

zorbas disse...

Angel não vai entrar na história? E Janota? Não faças como a Agatha qu gosta muito de revelar, só no fim da história, factos e ligações que nunca deu a conhecer aos leitores...

zorbas disse...

Bem, Angel (a neta do Engenheiro) já está presente no 1º capítulo, mas nada mais sabemos das suas angelicais malvadezas.

lara_1012 disse...

Só para dizer que a falta de comentário indica simplesmente que estou em estado de "suspense"... :)

Gil Duarte disse...

Aha, leitores exigentes. Isso é um verdadeiro desafio, gosto, gosto.Quanto às dúvidas que pairam:
1. Angel, que é uma criança, talvez não torne a aparecer. Num policial «eficaz», uma garota - a não ser que tivesse um papel chave na intriga - constituiria um desvio perturbador.
2. «Janota» pode ser o senhor Castorpopoulos. Sei que a «Janota» não apreciaria esta identificação mas, vamos lá, haverá mais janota do que ele?
3. Não, Zorbas, está descansado. Eu cá sou muito honesto. O resultado não dependerá de informações de última hora...