- É uma blasfémia! Não, não é isso que quero dizer, não é uma blasfémia, é uma, uma, uma... aaah... difamação! Não pense que se safa assim, senhora dona tartaruga. Ao contrário do que diz, eu sou muito rico, e prometo-lhe que não descansarei enquanto não a vir, a vir, aaah... E o Engenheiro? Hein?! E o Engenheiro?! Deixe-me adivinhar. Matei-o, não foi? Vinha eu a raspar-me com o gato debaixo do braço, o Engenheiro atravessou-se-me no caminho...
- Devo dizer que cheguei a achar isso. Foi a minha primeira teoria. Era mais económica, e eu sempre disse que as teorias mais simples são as mais bonitas. De resto, agradava-me que fosse antes o senhor... mas não seria sério, na verdade houve ali um período de tempo curtíssimo, em que não lhe seria possível raptar e matar. Mas por um triz o senhor e o assassino não tropeçaram um no outro. Não deixa de ser interessante a ideia de que, às escuras, e deve ter sido o senhor que cortou a corrente, mas, portanto, às escuras, sem saberem um do outro, quase chocaram...
- Porque a senhora também sabe quem é o assassino? - perguntou o inspector, mordiscando o próprio bigode. Estava verdadeiramente surpreendido com a agilidade mental de Mrs. Turtle.
Até Zorbas Castorpopoulos se interrompeu, num misto de curiosidade pela inculpação seguinte e de alívio por não ser ele o criminoso.
Mrs. Turtle fez render o peixe.
- O assassino. The murderer. Que pena que o nosso inglês seja tão ambíguo. Se falasse francês, não poderia antes dizer... Não seria o assassino uma mulher? Que me diz, Lady Gloria?
Voltou-se para a velha dama.
Emily e John, irreflectidamente, abraçaram-se.
Lady Gloria perguntou, num grito, à beira das lágrimas:
- Eu?!
Nova pausa.
- Não, Lady Gloria, não a senhora. Mas alguém que a senhora devia ter vigiado mais atentamente, alguém que a senhora sabe o que fez e que quer encobrir...
John perguntou:
- Refere-se a... a...?
- Sim, John, a Melody. Melody, que ansiava por casar com Charles, por quem se apaixonara, e a quem Charles fizera crer (deduzo eu) que poderia separar-se de Björk para vir a casar-se com ela. Melody, a quem Charles marcara um encontro amoroso durante a noite da passagem de ano... Mas vejam, quem é que se opunha com toda a força e toda a energia a este plano? Sem contar, é claro, com Björk. E admitindo que Charles queria alguma coisa mais do que divertir-se com uma rapariga mentalmente perturbada, que se apaixonara por ele...?
Melody estava estranhamente silenciosa. Os seus olhos pareciam perdidos no interior do seu inferno pessoal. Brincava com algo que ora ocultava ora mostrava entre as mãos.
Mrs. Turtle continuou:
- O Engenheiro, é claro. O Engenheiro, que chegou a tentar pôr cobro a este disparate, e da forma mais rude: ou és santa, ou és louca. Não foi, Melody? Num ou noutro caso, deixa-te de sonhar. O Engenheiro odiava Björk, mas nunca teria consentido nisto. Levei algum tempo a perceber que era ao Engenheiro que Melody se referia. Alguém que lhe teria dito: «Ou és Santa ou és louca, se fores santa, fica virgem, se fores louca, não penses trazer a infelicidade...»
- O meu pai não poderia impedir-me, se eu quisesse -, interpôs-se Charles, com a expressão mais séria possível. Uma onda de piedade começava a invadi-lo.
- Quem sabe, Charles, quem sabe? Melody foi molestada por ti. Estava perdida, desorientada, entre o amor que te tinha e a interdição do Engenheiro. O mal que tudo isto lge deve ter feito! Se não fosse... assim como é... poderia não lhe ter pesado tudo tanto! Fugiu-te, Charles. E cá em baixo, quando nos disse que eras tu, que tu lhe tinhas feito mal, procurando perdoar-se do que pensou que fosse um pecado, foi severamente admoestada pelo Engenheiro. Lembra-se do que ela lhe disse há algum tempo, inspector?
- Qualquer coisa como... não sei bem... espíritos maus... a casa ter de ser purificada... o corpo do Engenheiro ter de ser queimado...
- ...Para que ela se livrasse do pecado, do crime da culpa, para que os seus demónios a deixassem... Melody... nós não queremos que... Melody, que fazes? Lady Gloria, o que é que...?
- Filha!!!
- Tire-lhe isso da mão, mãe. É uma faca de cozinha -, advertiu John, branco.
- Esteja quieta, rapariga. Dê cá isso. Dê cá isso... Não faça isso, ninguém a vai prender, só queremos... - exclamava o inspector, receoso de que qualquer gesto brusco da sua parte deitasse tudo a perder.
Mas...
Muito tarde. Muito tarde. Muito tarde.
Tarde de mais.
FIM
terça-feira, janeiro 15, 2008
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