quarta-feira, janeiro 16, 2008

A SEITA - I

CAPÍTULO UM.

Vigiam-me. Não me dão lápis nem canetas, escrevo com uma lasca da perna da cama, embebida em sangue. No meu sangue. Muito menos papel, apenas uma camisola interior branca, que despi - e onde escrevo e escreverei sempre que possa, nesses raros segundos em que me encontre a sós, sobretudo agora que descobri onde a posso esconder: no mesmo buraco do chão (de madeira carcomida) que se abriu, ontem, sob o peso da Mamã. A Mamã assustou-se muito, acorreram todos, levaram-na, esqueceram-se do buraco que terei, talvez, de ocultar um pouco melhor, se o quiser realmente usar.

Eu não fui raptado. A culpa foi minha. Principiei por dar-me com alguns dos irmãos. Era tão bom no início: estavam sempre felizes, reuniamo-nos, líamos o Livro Sagrado, cantávamos e orávamos. Depois, convenceram-me a fugir. Fui recebido pelo Papá e pela Mamã, os líderes da comunidade. Arrancaram do meu espírito o meu nome terreno e não me atrevo a usar aqui, neste registo, o nome que me doaram. Trabalham afincadamente para que eu esqueça o mundo, a vida passada. Tenho já só algumas vagas memórias, que se confundem com sonhos e não sou capaz de precisar.
Entretanto, sob efeito do meu novo nome, do silêncio que cultivamos, da oração colectiva, do chá sagrado e da «libertação», que é como se designa o trânsito da alma fora do corpo, venho descobrindo a Verdade. E luto comigo próprio. Luto furiosamente comigo mesmo: porque às vezes sinto que devo abrir-me por inteiro à Verdade, como me exigem, mas, outras vezes, tenho repulsa por ela, abomino-a e só desejo prevenir os outros homens do que sei. Contar ao mundo. Por isso escrevo! Enquanto me é possível. Enquanto me restam raiva, repulsa e lucidez... quem sabe como estarei, como serei, o que serei eu amanhã?!

CAPÍTULO DOIS.

Eis a Verdade: não havia tempo. Havia deuses. Somente. E os deuses estavam unidos. Às vezes com ressentimentos mútuos, com desejos reprimidos, com ofensas, invejas, ciumes e malquerenças que, no entanto, não eram suficientes para os afastar uns dos outros. Os deuses viviam sem Rei, nem Pai, nem Lei que não a própria lei de cada um em consonância, tanto quanto possível, com as leis dos demais. Às vezes, lutavam em duelo. Nenhum deus se submeteria a outro deus e, portanto, o regime divino só poderia ser este: uma anarquia.

CAPÍTULO TRÊS.

Um dia, um deus começou a desprezar todos os outros. Não queria ser Rei. Queria pior: queria ser o Único Deus! Perseguiu e esmagou impiedosamente os outros, desbaratou-os, lançando num não-lugar, a que chamou inferno, os que se rebelavam, os que se lhe opunham, os que quebravam correntes, os que gargalhavam. E então, como Deus, criou um outro plano, o universo, ponto por ponto, com coisas boas e coisas más - a luz, a noite, a água, o fogo, buracos negros e pÓ; mas, tendo escorraçado ou sido abandonado por todos os outros, sentiu-se só. E decidiu criar, então, uma espécie de seres que seriam seus servos. E chamou-lhes homens. E não repousou enquanto não lhe mostrou a sua lei. Mas...

CAPÍTULO QUATRO.

Muitos dos deuses expulsos, conseguindo revestir-se de forma humana, refugiaram-se entre os homens. Com poderes descomunais, como super-heróis, todavia mantendo-se discretos no dia-a-dia, com identidades secretas, estão desde o começo dos tempos entre nós: talvez o nosso vizinho, talvez a vossa mulher-a-dias, o vosso subalterno, o senhor da mercearia, sejam deuses. Talvez não. Nunca os identificarão. (A não ser que...!)

CAPÍTULO CINCO.

Mas como os «Anjos do Senhor» foram imediatamente enviados em busca dos deuses, perseguindo-os onde quer que se escondessem, onde se acoitassem, reconhecendo-os sob as suas identidades secretas, sucedeu que a guerra, a sublime guerra divina teve lugar, e que se prepara a batalha final. Entre nós. Pois o terreno da batalha não há-de ser outro senão o mundo dos homens. E os homens, aliás, desde há muito, sem o saberem, são já, com as suas diversas guerras em todas as partes do mundo, joguetes da imensa e tentacular batalha subterrânea.

1 comentário:

zorbas disse...

Deixa o Génesis e passa já para o Apocalipse. Isto promete!