segunda-feira, janeiro 28, 2008

O BURRO E O BEBÉ QUE TINHA FEITO CHICHI NA FRALDINHA. (MAS, INFELIZMENTE, O BEBÉ CÁ CÁ!)

Partindo do princípio de que os meus 1ooo e tal visitantes já se perderam no enredo da aventura dos deuses e que, por exemplo, o leitor-Zorba só se interessaria pela história se eu arranjasse por força maneira de o meter, como personagem, no interior da mesma, vou fazer uma breve interrupção, uma pausa, que aproveito para contar uma história muito, muito, muito mais simples: um conto infantil, na verdade.

O narrador sou eu próprio, enquanto conduzo o meu automóvel básico e esmurrado.
A ouvinte/interveniente é a Daisy, minha filha, que segue atrás, amarrada ao seu banquinho, e que não deve perceber a essência do que lhe vou dizendo, mas nem por isso se coíbe de ir mandando uns bitaites.

PAPÁ - Era uma vez um burro...
DAISY - Bulo...!
PAPÁ - ... sim, um burro, hi-hã, hi-hã! E então o burro encontrou um bebé.
DAISY - Bebé. Cá cá!
PAPÁ - Ah, ah, ah! Pois, Margarida, o bebé não tá cá, não é? Onde tá o bebé? O teu bebé? Em casa, não é?
DAISY - Bebé Cá cá!
PAPÁ - Mas não faz mal. Ouve.
DAISY - Cá cá!
PAPÁ - Queres ouvir ou não, gaita? Então, o burro encontrou...
DAISY - Bulo!
PAPÁ (levemente impaciente) - OUVE! O BULO, AAAH, O BURRO... [acalmando, reencontrando o tom carinhoso]... o burro encontrou o bebé...
DAISY - Cá cá! Bebé cá cá!
PAPÁ - Sim, sim, sim. E o bebé tinha feito chichi na fraldinha. E então estava a chorar.
DAISY - Ã-ã-ã! Ã-ã-ã!
PAPÁ - Pois, assim. E então...
DAISY - Ã-ã-ã! Ã-ã-ã. Bebé cá cá! O bebé? Cá cá!!!

Eu tinha-vos dito que uma historinha infantil era mais simples?
Desculpem.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

CONTAS

Parece que, de há uns meses a esta parte, este blogue ultrapassou a improvável fasquia dos mil e dezoito leitores. (Ou melhor, visitantes).

Temos, é claro, de descontar a este impressionante número, as inúmeras vezes em que sou eu mesmo a vir aqui escrever: o mecanismo, o contador, com o mesmo tipo de estreiteza de que o nosso governo tem dado provas na política nacional, assume de imediato: «Ops! Lá está mais um...!»

Há que não levar, também, muito a sério, as vezes em que desembocam neste lugar alguns leitores, sim, é verdade, LEITORES... mas que continuam a ser eu mesmo: eu quando venho reler-me, ou eu tentando descobrir se, entretanto, me deixaram, ou não, algum comentário mais, etc.

Mas mesmo descontando esta multiplicidade absorvente, inquieta e inquietante de «eus» que parasitam o meu próprio blogue, restam-me ainda, pelas contas, uns quantos leitores. Em síntese: um gato, uma anja e uma vaidosa!
Zorbas, Angel, Janota, obrigado. A vós devo este número surpreendente. E entusiasmante!

(Descobri entretanto que, noutros tempos, Angel me comentou sob outro nome. Mas isso não conta como mais um leitor).

Mil e tal? E ainda me queixo?!

quarta-feira, janeiro 23, 2008

A SEITA - VII

CAPÍTULO VINTINOVE.

Eis, pois, o agente infiltrado, quer dizer, a Mamã.
Bota segue-a, coxeando por causa do maldito joelho, que tanto tem sofrido nos últimos tempos.
- Não vêm? -, pergunta a Afrodite, por quem, aliás inevitavelmente, já se está apaixonando.
- Não - sopra-lhe a voz mais doce de todas. - Não te preocupes, vai com a Mamã, ela leva-te ao miudo. Nós ficamos a defender a entrada. (Vários deuses, sequazes de Javé, se aproximam de diversos pontos ao mesmo tempo. O próprio Javé vem chegando, imponente na sua zanga, respirando com força, em busca de Jesus, seu filho e parte de Si).

CAPÍTULO TRINTA.

Bota segue a Mamã.
- Ouvi dizer que o garoto desapareceu - segreda-lhe, nervoso, impressionado pelos descomunais corpo, peso e punhos da mulher.
- Não desapareceu -, responde ela, penetrando com Vicentino Bota numa divisão em madeira. - O que se passa é que ele...
- Morreu?!
- Não. Metamorfoseou-se. Ei-lo. Ou o que resta dele...

Na divisão, talvez o celeiro, diante do rosto estupefacto do bêbedo, um som baixo mas permanente, irritante, sem pausas, e um perfume: ah, maldita vulcanyte.

Atenção, as minhas antenas captam um pensamento, deixem-me prestar atenção, sim, sim, sim, é certo, capto um pensamento no ar: é o pensar do próprio sonorfume, o pensar daquele som mais aquele odor; tentarei acompanhá-lo, agarrá-lo, reproduzi-lo...

CAPÍTULO TRINTIUM.

É como se segue:

«Sentia-me mal. Mal. Mal. Tinha medo de ter sido envenenado. O Papá disse-me "Não te preocupes, isto não te fará mal, não actua sobre humanos, só sobre deuses", "Que faz nos deuses?", perguntei eu, "Transforma-os em sonorfumes", explicou-me ele, e eu ia responder-lhe e já não podia, porque já não tinha boca, nem cordas vocais, nem nariz nem coisa alguma, só este cheiro que pairava e este zumbido, como se eu fosse um mosquito, porra, como se eu fosse uma melga, que coisa horrorosa!, ser constantemente acompanhado por um ruído, ser eu mesmo esse um ruído, mas então sou um deus, então sou um deus, afinal também eu era um deus e não o sabia, devo ter sabido e esquecido, relembro agora, vagarosamente, ou descubro agora, pois, eu sou Jesus, verti, há milénios, muito do meu sangue pela humanidade, mas tenho tanto, por isso tanto era o meu sangue e podia até escrever textos a sangue, e agora não tenho sangue nem corpo, agora...»

CAPÍTULO TRINTIDOIS.

- Mas se ele se transformou num sonorfume, não poderei transportá-lo -, queixou-se Bota.
- Ele acompanhar-te-á. Não tens como transportá-lo, mas ele poderá acompanhar-te. Vão. Receio que a derradeira batalha esteja a principiar lá fora. Javé procura Seu filho.
- Mas já não há vulcanyte; este jovem era o recipiente da vulcanyte, e neste momento a vulcanyte já não existe. Aliás, não quero saber. Se este é o fim do mundo, deixo-me ficar já aqui. Troco toda a vulcanyte por uma última garrafa de whisky. Não quero mais nada. Estou preparado para morrer! Um whisky e Afrodite! Que se lixe o resto...!

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A SEITA - VI

CAPÍTULO VINTISSEIS.

O que falta a esta história delirante, que ninguém tem já tempo para comentar? Acção! Ah sim?! Eu dou-vos acção...

CAPÍTULO VINTISSETE.

O pequeno grupo foi raio-transportado, ou seja, uma espécie de teletransporte só que num dos raios de Zeus. (E não se assustem: na verdade, não é mais terrível do que uma breve viagem em montanha russa, beeeuh!)

Estão, agora, reunidos aos deuses egípcios, que vigiam no interior da nave.

- Que se passa? - pergunta Ares/Marte, em suma, Marte, com as veias cheias de Guerra.
- Três coisas -, responde o Deus-Chacal. - Primeiramente: a vulcanyte foi injectada num jovem. O puto tornou-se, portanto, no cofre, no recipiente da vulcanyte.
- Bem -, decide Marte. - Então, senhor detective, será assim: vamos colocá-lo no interior da quinta, o senhor vai procurar esse puto e...
- Não -, reata o Deus-Chacal. - Cá vem a segunda informação: o miúdo desapareceu. Completamente. Não o topamos em lado nenhum. A seita está estarrecida. Ninguém sabe dele. O Papá anda enervadíssimo. A Mamã culpa-o de tudo...
- Também eu estou enervadíssimo - responde Marte. - Vamos todos entrar.
- Não -, conclui Chacal. - Não será tão fácil entrarmos. Olhem.

À entrada, junto à cancela, o Arcanjo Gabriel monta guarda, de espada iluminando a escuridão em derredor. São Pedro, longas barbas brancas, empunhada a espada com que, na sua vida terrena, separara do rosto, em defesa de Jesus, a orelha de um chefe romano, não está longe.

CAPÍTULO VINTIOITO.

Antes que tenha tempo de se aperceber do que verdadeiramente lhe está acontecendo, Vicentino Bota encontra-se no chão, às costas do irascível Marte. Gabriel já os viu. Dirige-se para eles, em pose de ataque. Lança berros de combate que acordam os habitantes da quinta; faísca-lhe a fina e poderosa arma na mão. Marte, o deus grego romanizado, com os olhos vermelhos de ódio, lança-se contra Gabriel; segura-lhe os pulsos; fá-lo deixar cair a espada - excessiva e frustrantemente depressa, como se Gabriel fosse um amador -, espada imediatamente apanhada, entretanto, por Bota.
São Pedro luta com Vulcano: o inventor da vulcanyte, demasiado baixo, feio, coxo, cego de um olho, ansioso por reconquistar de uma vez por todas Afrodite, a bela. A qual, por sua vez, se apressa a conduzir Bota, que mal sabe o que fazer da espada, isto é, daquele fogo enfiado num cabo de ouro, que, de qualquer modo, não abandona, não se atreve a largar. Eros empurra-os. Apressa-os.
- Por aqui -, chama uma voz. - Venham. Depressa. Venham...

É o seu agente infiltrado na seita.

domingo, janeiro 20, 2008

A SEITA - V

CAPÍTULO VINTIDOIS.

Peço aos meus leitores, encarecidamente, que se não percam, porque os acontecimentos se vão precipitar e todos quantos os acompanham serão chamados a descobrir a sua prória omnisciência e a estar, mercê dela, em vários lugares aos mesmo tempo.

CAPÍTULO VINTITRÊS.

O que interessa reter, é que a «vulcanyte», poderosa arma concebida por um Vulcano roído de ciúmes, tentando impressionar a sua mulher, não tem qualquer efeito sobre os humanos. Assim se explica por que razão os deuses contratam um homem - e que homem, pobre dele! -, para se apoderar da substância que, como é evidente, trará uma incomensurável vantagem a quem quer que esteja na sua posse. O facto de se tratar de um homem que se embriaga, faz até sentido: alguém sem escrúpulos, que se está nas tintas para as trágicas consequências dos seus actos, desde que lhos paguem convenientemente, trate-se de fotografar situações de infidelidade, trate-se de roubar a sagrada «vulcanyte». Bota irá. Acompanhado de Eros, de Ares, aliás Marte, de Afrodite - e de Vulcano, que não aceita que Afrodite se lhe afaste excessivamente da mira (sobretudo com Marte por perto...).
- Mas não! -, protesta inicialmente Vicentino Bota. - Eu sou um típico individualista. Trabalho sozinho...
- Meu caro -, põe Mefisto os pontos nos ii - as coisas serão feitas como nós entendemos. Porque, afinal, o nosso entendimento é um entendimento divino!

CAPÍTULO VINTIQUATRO.

Interrompemos o curso da narrativa para introduzir uma informação que talvez venha a ter a sua importância: Muito longe dali, nos céus que conquistou e constituiu como seus absolutos domínios, Javé, Deus Único, está furioso porque, Ele-que-tudo-sabe-e-vê, tem consciência de que Jesus, seu filho - e, mais do que isso, segunda parte de si próprio numa complexa estrutura a que chama a Santíssima Trindade -, está em apuros. Javé ferve. É uma sarça em chamas!

CAPÍTULO VINTICINCO.

O grupo de deuses que acompanha Vicentino Bota está, entretanto, em contacto com outros deuses que, numa nave, vigiam, desde há alguns dias, uma pequena quinta. Aí, uma seita, sob as ordens implacáveis do Papá e da Mamã, assume-se como a comunidade dos verdadeiros «Guardiões do Fogo Sagrado»: que, na verdade, não é fogo algum: não é outra coisa que não a poderosa vulcanyte!
- Mas porquê, Vulcano? - insurge-se Bota, entre o espantado e o orgulhoso por poder ralhar a um deus. - Por que raio deixaste que esses humanos meio ensandecidos tomassem conta da vulcanyte?
- Porque Javé vigiava as minhas investigações e vinha, precisamente, apropriar-se do meu segredo. Foi uma aventura fantástica. Gabriel e Rafael, que eu sempre odiei, entraram no meu laboratório, flamejando espadas ameaçadoras pelo ar. Partiram tudo. Eu detesto que usem, contra mim, as espadas de fogo que eu próprio forjei, quando nos dávamos todos tão bem...
- E então? -, interessou-se Afrodite, com um tom quase de carinho na voz que comoveu Vulcano.
- Então, tive de fugir. Tive de procurar alguém nas mãos de quem o segredo ficaria resguardado. Uma seita! A seita guardaria a substância com a própria vida.
- Uma seita de adoradores de Javé? - pergunta Eros, o sarcasmo queimando-lhe a voz já de si bastante quente.
- Bem... não tanto!Na verdade, há um dos nossos entre eles... E é no nosso infiltrado que eu confio...

sábado, janeiro 19, 2008

A SEITA - IV

CAPÍTULO DEZASSETE.

De regresso à incrível conversa entre Mefisto e Bota.

CAPÍTULO DEZOITO.

Mefisto estava ante a hercúlea tarefa de, primeiramente, convencer o senhor Bota de se encontrar dialogando com um deus, um deus cujo espírito revoltado e rebelde levara a que os homens o olhassem como sendo uma força maligna, um demónio, um diabo. Essa parte da conversa entre os dois, que não vale a pena reproduzir na íntegra, ficou, contudo, marcada por este apontamento metafísico:
- Não há deuses, meu senhor. Há Deus -, garantia Bota a Mefisto. - E Deus é perfeito; e a perfeição é única, não pode haver diversas perfeições. Lembro-me de ter estudado, enfim, me terem falado, no liceu, de um filósofo que...
- Descartes, sim -, retrucou Mefisto, muito sereno, seguro de si. - Tenho conversado ultimamente com ele. Estava enganado, é claro. Aliás, é no inferno que procuro por ele... porque Javé também não lhe apreciou nem perdoou a sua demonstração da existência de Deus, porque era uma «demonstração» e, portanto, prescindia da fé!

CAPÍTULO DEZANOVE.

Importa que, para convencer definitivamente Vicentino Bota de que não estava em delírio tremente, Mefisto passou da conversa aos actos. Conduziu o detective à janela e fê-lo observar a Besta do Apocalipse, a qual, sob a janela, fumegando calmamente, esperava que a questão se resolvesse. «Dez chifres e sete cabeças. Em cima dos chifres, dez coroas. Como uma pantera com patas de urso e boca de leão».
- Estou bêbedo, é o que é -, ainda procurava Bota, deste modo, negar as evidências. - Eu cá, quando estou bêbedo, vejo tudo; ele é monstros, ele é... mas espera!
Uma das sete cabeças elevara-se como um guindaste, penetrara pela janela aberta, colara o seu rosto fétido ao nariz de Bota. O bêbedo desmaiou.
- Caramba, 666. Assim, fazes-me perder tempo! -, admoestou Mefisto.

CAPÍTULO VINTE.

A missão de que os deuses queriam incumbir Vicentino Bota, era simples: em poucas palavras vo-la exponho.

Vulcano, durante milénios de sábia e aturada investigação, deixando de parte o tosco trabalhinho de forjar espadas ou escudos, tornando-se mais sofisticado, para agradar a sua arredia e infiel esposa, fazendo-se mais cientista do que ferreiro, conseguira, por fim, descobrir uma fórmula secreta e sagrada.

Aplicara-a de modo a produzir a única (que se saiba) substância capaz de vencer os deuses. Não de os matar, é claro: os deuses são eternos. Mas, sendo puro espírito, o seu corpo, esse, poderá/poderia, quem sabe?, sofrer alguma forma de derrota: e por muito superior que se mostre o invólucro físico que os deuses vestem, ou que os reveste - e basta olhar Afrodite para se entender a que superioridade me refiro -, o certo é que o corpo divino é vulnerável. Lançado contra um deus, a «vulcanyte», substância sagrada e secreta, a obra-prima de Vulcano (Hefestes, em grego), não o dissolve fisicamente, mas metamorfoseia-o. De que metamorfose se trata?! Bom: o deus metamorfoseia-se em Sonorfume.

CAPÍTULO VINTIUM.

Acordado pela água fria de um copo, Bota está confuso com esta história. Compreende - tal como os leitores neste momento talvez, ou tal como eu próprio... - algumas coisas de tudo isto, não compreende outras tantas e não sabe em que crer. Pergunta: «Só fumo?». Mefisto corrige: «Sonorfume», o que, de resto, é inútil porque, daqui em diante, Bota referir-se-á sempre aos Sonorfumes como «só fumos». O que, pensando bem, faz algum sentido: um sonorfume não é fumo, não, mas é um som e um cheiro, um som e um odor, um som e um perfume. Sem substância: pura energia sonora e olfactiva autoemitindo-se. (Daí que eu não possa descrevê-los como um som «com» um perfume, nem como um perfume «com» um som, porque nenhum deles é o substracto do outro, mas apenas energia realizando-se nestas duas facetas). Eis ao que a poderosa arma de Vulcano pode reduzir um deus...

sexta-feira, janeiro 18, 2008

A SEITA - III

CAPÍTULO DEZ.

Deixemos por um momento Mefistófeles e o senhor Bota, bêbedo prestes a tornar-se um herói. Regressaremos em breve. Entretanto, vejo daqui (porque também tenho os meus poderes, é claro...) que o inominado, a sós por um instante, está de novo embrenhado na escrita.

CAPÍTULO ONZE.

«A Mamã e o Papá tiveram hoje de manhã uma discussão interminável; as discussões entre a Mamã e o Papá são muito raras porque, embora o Papá seja o líder bem-amado, o profeta, o criador que tem publicado inúmeros livros de ficção científica e ninguém duvide dos seus ensinamentos, o certo é que a Mamã é muito, muito, muito grande, muito, muito, muito pesada, com uns punhos do tamanho das minhas nádegas. A Mamã não constesta, em geral, as ideias do Papá. Mas quando alguma lhe cheira mal, por qualquer razão, ou não lhe convém, o que a Mamã faz é olhá-lo fixamente e levantar um pouco o tom de voz. Ao que o Papá, que é franzino e pequeno, retruca: «Sim, minha pombinha de Deus!» - Daí que eu tenha estranhado esta discussão...»

CAPÍTULO DOZE.

«Sucedeu por causa daquela nave que parece vigiar a quinta. Não se move. Emite um zumbido agradável, que poderia passar por música. Ou não, a partir de uma determinada altura. Emite luz, uma luz de uma cor que não sei definir, que nunca antes vi e que não consigo guardar na memória quando não estou a olhar para ela».

CAPÍTULO TREZE.

«O Papá afirma que é, sob a forma secreta de um OVNI, o carro celeste do Senhor que vem buscar os seus fiéis, e gostaria de nos preparar para sermos recolhidos por essa nave e nela acolhidos. Mas como?! Teríamos de nos libertar dos nossos invólucros mortais, como diz o Papá. Ou seja, matarmo-nos. A Mamã não aprecia a ideia - e se não fosse ela, já estaríamos talvez todos mortos. A Mamã pergunta, em altos brados, se não poderá ser antes a nave dos demónios - e cita nomes malditos, reunindo-os numa hoste hostil: Lúcifer, Satã, Mefistófeles, Zeus, Afrodite, Perséfone, Ares (que prefere o seu nome romano, Marte), Apolo, Diónisos, Eros, Thanatos, Hefesto (que também escolheu ficar, para sempre, Vulcano), as Górgonas, Odin, Thor, Frigga, Thyr, Idunna, as Valquírias de Äshgaard, Ardjuna, Brahma, Krishna, Shiva, Vixnu, os Vampiros de Sombra-Negra...»

CAPÍTULO CATORZE.

«O Papá pede à Mamã que confie nele. A Mamã está irredutível. Vou guardar esta camisola no buraco. Se puder voltar ainda hoje...»

CAPÍTULO QUINZE.

«O Papá chamou-me. Eu tinha medo. Estava em pânico. Iria matar-me?
- Tu és o Eleito. Vais ter uma missão muito importante!
Iria matar-me? Colocou-me sobre uma mesa. (Um altar de sacrifício?!) Eu não parava de tremer. Mas não chorei, mas não gritei. Injectou-me, então, uma substância azul, luminosa. Seria para que eu morresse?
- Não precisas de saber mais nada por enquanto -, disse-me. - Basta-te que tenhas noção de que és, agora, o ser mais precioso da irmandade. Mais do que a Mamã. Mais do que eu próprio.
Seria por ir morrer?»

CAPÍTULO DEZASSEIS.

«O certo é que ainda aqui estou. E vivo. Mas não me sinto bem. Não me sinto lá muito bem...»

quinta-feira, janeiro 17, 2008

A SEITA - II

CAPÍTULO SEIS.

No instante preciso em que o inominado - digamos assim, enquanto não soubermos mais acerca dele - escrevia, com o próprio sangue, sobre uma camisola branca, o Bêbedo recebia, longe dali, a visita do Diabo.

CAPÍTULO SETE.

Peço desculpa por tratar alguém por «o Bêbedo». Talvez vos pareça cruel. Mas, em primeiro lugar, se disser que o seu verdadeiro nome é Vicentino Bota («Bota», não «Mota»), hão-de concordar que talvez até ele prefira que se lhe chame Bêbedo.
Em segundo lugar, não sei que outro nome poderia dar a este indivíduo, que fez um pouco de tudo, desde jogar futebol (o que lhe ofendeu um joelho), ou vender produtos lácteos, até escrever para um jornal desportivo; foi também mecânico; dedicou-se à fotografia. Não é, naturalmente, por nenhuma destas razões que se lhe chama bêbedo, mas porque a sua vida, de poiso em poiso (despoisando mais do que poisando), mercê do uísque Johnnie Walker (com cinco pedras de gelo, nem mais uma, nem uma menos), entrou muito rapidamente num plano descendente: e numa degradação tal que, aos quarenta e cinco anos de idade ensaiava o ardil ingénuo e absurdo de convencer os filhos a colocá-lo num Lar de Terceira Idade, onde seria alimentado e não teria de trabalhar. Como os filhos não estivessem para o aturar, o Bêbedo diz, hoje, que é detective particular, e vive de expedientes. Encontramo-lo aqui a dormir, cabeça tombada sobre a secretária. Dificilmente poderia ser pior! Mas não se deixem enganar porque, roncando alto, com uma garrafa meio vazia perto da mão, esta réstea de humanidade está prestes a tornar-se num dos heróis da história. E da História!

CAPÍTULO OITO.

Não errei. Foi visitado pelo demónio, que não é senão um dos deuses que se preparam para combater Deus e seus sequazes.

CAPÍTULO NOVE.

Este demónio, concretamente, é Mefistófeles. Não surgiu do nada, rodeado de enxofre, mas, de um modo perfeitamente urbano, batendo à porta. (O que, aliás, provocou a indignação do Bêbedo, ou, se preferirem, do senhor Bota que, sob a tremenda ressaca, se mostra demasiado sensível ao ruído).
Mefistófeles vem da parte dos deuses. Tem uma necessidade. E um plano para suprir tal necessidade. E, portanto, um negócio para propor ao senhor Bota. Ou não estaria ali.

A MINHA LISTA (cópia abjecta de uma ideia de Angel)

Preparando, invejosamente, a partir de uma ideia angeliana, a minha própria lista dos dez filmes de vida, terei de realçar alguns pontos que me parecem de somenos importância mas muito interessantes:

Primeiramente, que se se derem ao trabalho de comparar esta lista com a de Angel, irão deparar com mais diferenças do que coincidências. «Então não pões The Godfather»?!, perguntar-me-ia ela. Nem «Pulp Fiction»? E eu: «E a ti, pá, escapou-te The Clockworl Orange»? São diferenças que se prendem, para além da singularidade do «gosto» de cada um (que será sempre o argumento definitivo), com o facto de sermos de gerações longínquas.

Segundamente, a decisão, da minha parte, de não inscrever filmes demasiado recentes. Por mais que me tenham impressionado, será que hão-de mesmo ter deixado vestígios em mim, daqui a cinco anos? Prefiro, pois, ver assentar a poeira.

E, finalmente, que lista é exactamente esta? A dos melhores filmes, aqueles que consideramos grandes obras - ou, mais modestamente, a dos filmes que nos marcaram, porventura por razões banais? Trata-se, aparentemente, de uma distinção simples que, na prática, o não é. Só assim explico que me custe deixar de parte um filme como «Trinitá», datado, limitadíssimo e que, hoje, me não faria porventura esboçar o menor sorriso, mas, na minha adolescência, me soou como de uma frescura, de uma originalidade, de uma graça até, que jovens como a Angel não poderiam entender. (Seria um filme para o banco dos suplentes da lista de seleccionados...)

Posto isto, vamos à lista que se faz tarde:

1. What's Eating Gilbert Grape?, de Lasse Hallstrom (com Johnny Depp e introducing Leonard DiCaprio, este último, aos doze ou treze anos, na única representação magnífica que já o vi executar: por acaso, a de uma criança com deficiência mental)

2. Blade Runner, de Ridley Scott

3. Lolita, de Stanley Kubrick

4. Total Recall, de Paul Verhoeven

5. 1900, de Bernardo Bertolluci

6. O Lucky Man, de Lindsay Anderson

7. O Terceiro Homem, de Carol Reed (Joseph Cotten e Orson Welles, ah!)

8. Blue Velvet, de David Lynch

9. E la Nave Va, de Frederico Fellini

10. A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick

Mas, no banco dos suplentes:

11. 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick

12. O Charme Discreto da Burguesia, de Luis Buñuel

13. I Clown, de Frederico Fellini

14. Eduardo Mãos-de-Tesoura, de Tim Burton

15. Feios, Porcos e Maus, de Etore Scola

16. Trinitá, Cow-boy insolente, de Enzo Barboni

quarta-feira, janeiro 16, 2008

A SEITA - I

CAPÍTULO UM.

Vigiam-me. Não me dão lápis nem canetas, escrevo com uma lasca da perna da cama, embebida em sangue. No meu sangue. Muito menos papel, apenas uma camisola interior branca, que despi - e onde escrevo e escreverei sempre que possa, nesses raros segundos em que me encontre a sós, sobretudo agora que descobri onde a posso esconder: no mesmo buraco do chão (de madeira carcomida) que se abriu, ontem, sob o peso da Mamã. A Mamã assustou-se muito, acorreram todos, levaram-na, esqueceram-se do buraco que terei, talvez, de ocultar um pouco melhor, se o quiser realmente usar.

Eu não fui raptado. A culpa foi minha. Principiei por dar-me com alguns dos irmãos. Era tão bom no início: estavam sempre felizes, reuniamo-nos, líamos o Livro Sagrado, cantávamos e orávamos. Depois, convenceram-me a fugir. Fui recebido pelo Papá e pela Mamã, os líderes da comunidade. Arrancaram do meu espírito o meu nome terreno e não me atrevo a usar aqui, neste registo, o nome que me doaram. Trabalham afincadamente para que eu esqueça o mundo, a vida passada. Tenho já só algumas vagas memórias, que se confundem com sonhos e não sou capaz de precisar.
Entretanto, sob efeito do meu novo nome, do silêncio que cultivamos, da oração colectiva, do chá sagrado e da «libertação», que é como se designa o trânsito da alma fora do corpo, venho descobrindo a Verdade. E luto comigo próprio. Luto furiosamente comigo mesmo: porque às vezes sinto que devo abrir-me por inteiro à Verdade, como me exigem, mas, outras vezes, tenho repulsa por ela, abomino-a e só desejo prevenir os outros homens do que sei. Contar ao mundo. Por isso escrevo! Enquanto me é possível. Enquanto me restam raiva, repulsa e lucidez... quem sabe como estarei, como serei, o que serei eu amanhã?!

CAPÍTULO DOIS.

Eis a Verdade: não havia tempo. Havia deuses. Somente. E os deuses estavam unidos. Às vezes com ressentimentos mútuos, com desejos reprimidos, com ofensas, invejas, ciumes e malquerenças que, no entanto, não eram suficientes para os afastar uns dos outros. Os deuses viviam sem Rei, nem Pai, nem Lei que não a própria lei de cada um em consonância, tanto quanto possível, com as leis dos demais. Às vezes, lutavam em duelo. Nenhum deus se submeteria a outro deus e, portanto, o regime divino só poderia ser este: uma anarquia.

CAPÍTULO TRÊS.

Um dia, um deus começou a desprezar todos os outros. Não queria ser Rei. Queria pior: queria ser o Único Deus! Perseguiu e esmagou impiedosamente os outros, desbaratou-os, lançando num não-lugar, a que chamou inferno, os que se rebelavam, os que se lhe opunham, os que quebravam correntes, os que gargalhavam. E então, como Deus, criou um outro plano, o universo, ponto por ponto, com coisas boas e coisas más - a luz, a noite, a água, o fogo, buracos negros e pÓ; mas, tendo escorraçado ou sido abandonado por todos os outros, sentiu-se só. E decidiu criar, então, uma espécie de seres que seriam seus servos. E chamou-lhes homens. E não repousou enquanto não lhe mostrou a sua lei. Mas...

CAPÍTULO QUATRO.

Muitos dos deuses expulsos, conseguindo revestir-se de forma humana, refugiaram-se entre os homens. Com poderes descomunais, como super-heróis, todavia mantendo-se discretos no dia-a-dia, com identidades secretas, estão desde o começo dos tempos entre nós: talvez o nosso vizinho, talvez a vossa mulher-a-dias, o vosso subalterno, o senhor da mercearia, sejam deuses. Talvez não. Nunca os identificarão. (A não ser que...!)

CAPÍTULO CINCO.

Mas como os «Anjos do Senhor» foram imediatamente enviados em busca dos deuses, perseguindo-os onde quer que se escondessem, onde se acoitassem, reconhecendo-os sob as suas identidades secretas, sucedeu que a guerra, a sublime guerra divina teve lugar, e que se prepara a batalha final. Entre nós. Pois o terreno da batalha não há-de ser outro senão o mundo dos homens. E os homens, aliás, desde há muito, sem o saberem, são já, com as suas diversas guerras em todas as partes do mundo, joguetes da imensa e tentacular batalha subterrânea.

terça-feira, janeiro 15, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (XII)

- É uma blasfémia! Não, não é isso que quero dizer, não é uma blasfémia, é uma, uma, uma... aaah... difamação! Não pense que se safa assim, senhora dona tartaruga. Ao contrário do que diz, eu sou muito rico, e prometo-lhe que não descansarei enquanto não a vir, a vir, aaah... E o Engenheiro? Hein?! E o Engenheiro?! Deixe-me adivinhar. Matei-o, não foi? Vinha eu a raspar-me com o gato debaixo do braço, o Engenheiro atravessou-se-me no caminho...
- Devo dizer que cheguei a achar isso. Foi a minha primeira teoria. Era mais económica, e eu sempre disse que as teorias mais simples são as mais bonitas. De resto, agradava-me que fosse antes o senhor... mas não seria sério, na verdade houve ali um período de tempo curtíssimo, em que não lhe seria possível raptar e matar. Mas por um triz o senhor e o assassino não tropeçaram um no outro. Não deixa de ser interessante a ideia de que, às escuras, e deve ter sido o senhor que cortou a corrente, mas, portanto, às escuras, sem saberem um do outro, quase chocaram...
- Porque a senhora também sabe quem é o assassino? - perguntou o inspector, mordiscando o próprio bigode. Estava verdadeiramente surpreendido com a agilidade mental de Mrs. Turtle.
Até Zorbas Castorpopoulos se interrompeu, num misto de curiosidade pela inculpação seguinte e de alívio por não ser ele o criminoso.
Mrs. Turtle fez render o peixe.
- O assassino. The murderer. Que pena que o nosso inglês seja tão ambíguo. Se falasse francês, não poderia antes dizer... Não seria o assassino uma mulher? Que me diz, Lady Gloria?
Voltou-se para a velha dama.

Emily e John, irreflectidamente, abraçaram-se.

Lady Gloria perguntou, num grito, à beira das lágrimas:
- Eu?!

Nova pausa.


- Não, Lady Gloria, não a senhora. Mas alguém que a senhora devia ter vigiado mais atentamente, alguém que a senhora sabe o que fez e que quer encobrir...
John perguntou:
- Refere-se a... a...?
- Sim, John, a Melody. Melody, que ansiava por casar com Charles, por quem se apaixonara, e a quem Charles fizera crer (deduzo eu) que poderia separar-se de Björk para vir a casar-se com ela. Melody, a quem Charles marcara um encontro amoroso durante a noite da passagem de ano... Mas vejam, quem é que se opunha com toda a força e toda a energia a este plano? Sem contar, é claro, com Björk. E admitindo que Charles queria alguma coisa mais do que divertir-se com uma rapariga mentalmente perturbada, que se apaixonara por ele...?
Melody estava estranhamente silenciosa. Os seus olhos pareciam perdidos no interior do seu inferno pessoal. Brincava com algo que ora ocultava ora mostrava entre as mãos.
Mrs. Turtle continuou:
- O Engenheiro, é claro. O Engenheiro, que chegou a tentar pôr cobro a este disparate, e da forma mais rude: ou és santa, ou és louca. Não foi, Melody? Num ou noutro caso, deixa-te de sonhar. O Engenheiro odiava Björk, mas nunca teria consentido nisto. Levei algum tempo a perceber que era ao Engenheiro que Melody se referia. Alguém que lhe teria dito: «Ou és Santa ou és louca, se fores santa, fica virgem, se fores louca, não penses trazer a infelicidade...»
- O meu pai não poderia impedir-me, se eu quisesse -, interpôs-se Charles, com a expressão mais séria possível. Uma onda de piedade começava a invadi-lo.
- Quem sabe, Charles, quem sabe? Melody foi molestada por ti. Estava perdida, desorientada, entre o amor que te tinha e a interdição do Engenheiro. O mal que tudo isto lge deve ter feito! Se não fosse... assim como é... poderia não lhe ter pesado tudo tanto! Fugiu-te, Charles. E cá em baixo, quando nos disse que eras tu, que tu lhe tinhas feito mal, procurando perdoar-se do que pensou que fosse um pecado, foi severamente admoestada pelo Engenheiro. Lembra-se do que ela lhe disse há algum tempo, inspector?
- Qualquer coisa como... não sei bem... espíritos maus... a casa ter de ser purificada... o corpo do Engenheiro ter de ser queimado...
- ...Para que ela se livrasse do pecado, do crime da culpa, para que os seus demónios a deixassem... Melody... nós não queremos que... Melody, que fazes? Lady Gloria, o que é que...?
- Filha!!!
- Tire-lhe isso da mão, mãe. É uma faca de cozinha -, advertiu John, branco.
- Esteja quieta, rapariga. Dê cá isso. Dê cá isso... Não faça isso, ninguém a vai prender, só queremos... - exclamava o inspector, receoso de que qualquer gesto brusco da sua parte deitasse tudo a perder.

Mas...

Muito tarde. Muito tarde. Muito tarde.

Tarde de mais.


FIM

segunda-feira, janeiro 14, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (XI)

- Quem fez o gato desaparecer foi o próprio senhor Castorpopoulos.
Um protesto imediato, indignado. Constrangimento. Fúria do grego. O inspector levantou uma mão, impondo silêncio, para que a mulher pudesse continuar.
Mrs. Turtle esperou que a calma se restabelecesse. Estava certa do que ia dizer.
- Mr. Castorpopoulos tinha aliciado Charles. Lembrem-se de que o senhor Zorbas, quando aqui apareceu pela primeira vez mais o seu gato, disse, entre outras coisas estranhas, que nos conhecia muito bem a todos, que nunca improvisava, que tinha feito bem o seu trabalho de casa. Ora, quem nos poderia ter-lhe descrito tão pormenorizadamente a todos nós? Charles, é claro...
Charles protestou:
- Eu, ou Mrs. Turtle, ou John, ou Lady Gloria, ou... qualquer um de nós...
- É verdade, até eu, Charlie, até eu. Mas não fui eu que estive, no dia anterior ou na tarde do próprio dia, em casa do senhor Castorpopoulos, o tal «vizinho» onde teria perdido a chave. Sejamos sérios, Charlie. Que outro vizinho poderia ser? Que vizinhos temos nós, para além do casal de velhotes, ao lado da Torre? Eu não me lembro de mais ninguém. Não te estou a acusar de conheceres o plano do senhor Castorpopoulos, filho...
- Isto é um disparate! -, regougou o grego.
- Penso até que não sabias. Penso mais: penso que, ao princípio, não havia plano algum. O que terá dado ao senhor Castorpopulos a ideia do rapto foi, provavelmente, ver aparecer-lhe simplesmente essa possibilidade diante dos olhos, sob a forma de uma providencial chave de que Charles, o seu informador, se teria esquecido em sua casa. Daí a ter congeminado um rapto que seria a solução para o seu problema, deve ter sido um passo...
- Problema? Mas que problema?! Esta mulher é doida, inspector. Exijo que me deixe sair imediatamente. Não fico nesta casa nem mais um minuto...!
- Ah, o problema. O seu problema? O problema é ter legado ao gato uma fortuna que não existe. Ainda no outro dia John me contava que o senhor joga, é perseguido por credores... Como é que o rapto o beneficiaria? O «herdeiro» está no Seguro?! Será isso? Ou...?
- Mas então não tem provas? Diz o que quer, minha senhora, insulta-me, e pronto? Não tem de demonstrar nada? Limita-se a abrir a boca e a... a...?
- Eu observei logo, por exemplo, que a gaiola estava simplesmente aberta. Não foi forçada. Porquê, não pensou nisso? Acha que a Companhia de Seguros não detectaria tal falha? Ou tratava-se de uma gaiola demasiado cara para ser estragada? E quem mais possuiria a chave da gaiola de um herdeiro tão precioso? Uma vez mais, meu senhor, o senhor é traído por uma chave. Primeiro, pela chave que usou para entrar aqui, em segundo lugar, pela chave que usou para libertar o seu gato. Libertar, realmente?! Que lhe fez, escondeu-o? Matou-o? Será que o matou???

(CONTINUA)

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (X)

Na verdade, tanto quanto se consiga adivinhar o que se passa no espírito de cada um, não me parece que o inspector tivesse a mínima intenção de inculpar Mrs. Turtle do crime; achava-a perspicaz, gostava de a ouvir, até porque se sentia totalmente desnorteado em relação àquele caso: haviam chegado, entretanto, outros polícias; o corpo não poderia ficar eternamente naquele lugar, de modo que, concluído o trabalho dos fotógrafos e de um indivíduo extremamente baixo, cuja especialidade se resumia a desenhar, no chão, a giz, a posição de cadáveres, transportaram os, se me é permitido exprimir-me assim, restos mortais da vítima para a morgue.

Mas Mrs. Turtle não entendia aquela insistência do inspector junto da sua pessoa, e não lhe agradava que este tentasse definir qual era realmente o sentido da presença dela no seio da família. De forma que, por volta do meio dia, quando o viu aproximar-se pela décima primeira vez, tomou uma decisão e principiou a falar. Primeiro a medo, pondo e tirando uns óculos de aros fininhos, mordiscando uma das hastes, depois mais confiantemente, à medida que via que - e como - as suas palavras magnetizavam a pequena assembleia.
Tinha uma teoria sobre tudo o que se passara, disse. E acrescentou que o culpado fora Charles Arbuckle. Assim mesmo, sem mais. Houve pequenos gritos, formou-se um círculo, arrastaram-se cadeiras. Charles estava estarrecido...
- ... Ele é culpado -, prosseguiu a velha senhora - de um amor proibido e censurado, não sei se censurável, mas censurado por todos quantos sabiam. Não tenho a menor dúvida de que Charles esteve cá naquela noite.
- Alto lá, alto lá! - redarguiu o acusado.
- Não tenho dúvidas nenhumas. Em primeiro lugar, é verdade que Charlie tinha perdido a chave, mas já vimos que isso não constituía qualquer problema. Usou a de Bjork. Que haveria de mais simples? Em segundo lugar, não vejo razão para desconfiar do que Melody nos contou. Tinham certamente combinado encontrar-se os dois, aqui em casa, antes da meia noite, o que explica por que razão Charles não fez nada para não ir à festa sueca onde, obviamente, não tinha sombra de interesse em estar. Foi simplesmente um pretexto para se separar de Bjork: levou-a lá, bebeu um ou dois copos, zangou-se, fez alarido, voltou. Finalmente, também é visível que houve uma grande confusão lá para cima, no primeiro andar. Fui investigar com muita atenção. Parece que houve uma batalha campal! Charles e Melody encontraram-se, mas deviam ter ideias muito diferentes sobre o que iriam fazer. Ele deve ter tentado beijá-la, ou despi-la, sei lá!, e ela não queria, ou não achava que fosse o momento, ou os espíritos que a acompanham sempre se indignaram e assanharam. Peço desculpa da minha crueza, Melody. Desculpe-me, Lady Gloria, bem vejo que a choco. Há traços de luta, há vestígios, a seguir, das fugas - de uma e de outro, cada um para seu lado...
Fez-se um silêncio. Todos tinham os olhos lançados sobre Charles.
Mrs. Turtle percebeu que começara bem. O inspector queria perguntar-lhe algo, mas desistiu. Calou-se. Esperou pela continuação, que não se fez tardar.
- Mas é preciso não nos esquecermos de que se deram três acontecimentos diferentes nessa noite. Melody teve um encontro que se tornou num desencontro; o gato desapareceu; o Engenheiro morreu. Foi assassinado.
Lady Gloria soltou uma exclamação abafada.
- Foi Charles que fez tudo isto? Não creio. O gato é outra história. O gato foi raptado por...
Estavam em suspenso.
Mr. Castorpopulos não cabia em si de curiosidade.

(CONTINUA)

sábado, janeiro 12, 2008

CRIME NA PASSAGEM DO ANO (XIX)

Aqui apresentamos em primeira mão, fragmentária e enigmática como um texto de Heraclito, a terceira e última página escrita do caderno de Mrs. Turtle.
Infelizmente, não cremos que esta página faça uma luz definitiva sobre o caso.
Haverá, pois, um próximo episódio desta trágica narrativa.

OS APONTAMENTOS DE VIRGINIA TURTLE.
OBSERVAÇÕES E PERGUNTAS. pÁG. 3

«Fiz uma primeira investigação, que se impunha, ao andar superior.
Por estranho que pareça, o estúpido do inspector não se lembrou disso. Trabalha às três pancadas.
Bom. Tal como eu suspeitava, é possível que algum intruso tivesse andado pelos quartos. Mesas tombadas, jarras partidas, como se alguém, no escuro, caminhasse aos encontrões... ou como se tivesse havido um combate...

«As crianças estão todas acordadas, por fim. Tivemos de fazer um perímetro em torno do corpo do Eng, e tapá-lo com um lençol, enquanto se não dá a investigação por concluída.

«O janota grego propôs sair com os garotos; levá-los a passear; libertá-los deste ambiente angustiante. Espertalhão. Mas o inspector não foi na esparrela. Os meninos, alternativamente ao passeio censurado, deixaram-se estar presos pela cola da televisão.

«Mr. Arbuckle teve um ataque cardíaco. O médico regressou à pressa. O velho está melhor, mas ainda muito prostrado...

«Penso que Charles tem tentado telefonar a Björk, sem conseguir encontrá-la em parte alguma.

«Fiz uma segunda investigação, muito simples.
Pus uma questão muito simples à doida. Sem palavras a mais, nem a menos. Andei a treiná-la. Quando Charlie, que parece agora fugir-lhe constantemente (não, se calhar é impressão minha... sou tão mazinha, ele tem de estar atento a Angel, coitado...) quando Charlie não estava por ali, perguntei a Melody:
«Que mal te fez ele?»
Ao que me respondeu:
«Disse-me que eu ou era santa, ou era maluca».
«Como?!»
«Santa ou louca. E que as santas devem permanecer virgens. E que as loucas não poderão ser felizes, porque tornam os outros infelizes...»

«Tenho dado voltas à cabeça. Isto não faz sentido. A minha pergunta referia-se a Charlie, evidentemente. Mas a resposta dela não se coaduna com a história de alguém que teria tentado molestá-la. Teria sido mesmo Charlie a dizer-lhe isto...? Quando...? Ou será que não era Charlie...?

«Ou será que...?

«Não pude continuar a falar, porque o maldito inspector nos interrompeu: queria falar comigo (pela décima vez), saber por que insistia eu em «infiltrar-me» nesta família onde não era bem-vinda pelo Eng...

«Espera... espera... mas eu começo a perceber... eu sei o que se passou nessa noite...estou a ver estou a ver estou a ver calma calma para não perder a ideia de vista não-deixar-fugir nãodeixarfugirnãodeixarfugir estaideiaestaideia ES TA I DEI A»

O resto da página é irreproduzível: setas, círculos, cálculos estranhos em torno de horas...

(CONTINUA)

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (VIII)

OS APONTAMENTOS DE VIRGINIA TURTLE

OBSERVAÇÕES E PERGUNTAS. PÁGINA 2

«Tempo somente para garatujar umas [ilegível].
Porcaria do Inspector não me larga. Desconfia de mim. [Uma palavra, porventura uma obscenidade, muito riscada].

«Mr. Castorpopoulos [riscado; por cima, escreveu antes: O Janota] quis ir a sua casa. Apesar de ser perto (na verdade o Janota é o nosso único vizinho, com excepção dos velhos [nome ilegível] que não saem há anos) o [palavrão] do inspector não o deixou ir. «Mas eu também? Eu nem sequer estava cá!» Discute Janota. Agora aquietou-se. Deitou-se numa cadeira, com uma manta. Ressona. Ou finge.
John diz que ele não é tão rico como se supõe. Que joga! Que perde fortunas!

«Ouvi a conversa do inspector com Miss Melody. De morrer a rir. O inspector tratava-a como a uma rapariga normal. Deve ter ficado sem pinga de sangue, ouvindo-a dizer enormidades sobre os espíritos bons e os espíritos maus, sobre as vozes que a mandam purificar a casa queimando o cadáver do tio porque...

«Lá vem o inspector.

«Que seca! Que perseguição! Retomo os rabiscos. O culpado poderia ser...

«Não. Demasiado horrível.

«Seis horas da manhã. Angel acordou. Berra. O pai foi buscá-la, não vá ela acordar os outros.

«Oiço-a gritar para o pai: «Não. Tu não. Mãe. Qué' a mãe!» E o pai enervadíssimo a [palavra riscada]

«Mrs. Emily fala com John. Já não está tão desmaiada, parece! (Mazinha, mazinha, mazinha, Virginia)

«Entretanto, algo começa a clarificar-se na minha mente. Tenho de me apressar. Antes que o palhaço do inspector decida que a culpada sou eu!»

(CONTINUA)

INTERRUPÇÃO NO POLICIAL PARA UMAS QUANTAS CONFISSÕES

Leio isto, no Eclesiastes: «O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novo será feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade.» [Ecl. 9-10]

E, todavia, dou por mim, já com tanto caminho percorrido (meio século de cultivo de um cepticismo permanente e de uma feroz desconfiança em relação a todas as «novidades»), a discordar desta mensagem.

Nunca tanto como nestes últimos anos fui chamado ou, talvez mais rigorosamente, «convidado» à descoberta de algumas maravilhas que me ferem o olhar, os ouvidos e o espírito, em diferentes áreas, com o seu sabor de absoluta originalidade: «originalidade» no melhor sentido da palavra, que não é o do diferente pelo diferente, só porque sim, mas do diferente que interessa e vale a pena, que introduz algo de novo debaixo do sol, e nos encanta, e faz a nossa alma rejubilar. Amen!

Nestas descobertas, nestes convites, nestes chamamentos, os amigos têm tido um papel essencial: o que me faz pensar que o encontro com o «novo» tem qualquer coisa que ver, necessária ou, pelo menos, preferencialmente, com um movimento de amizade e de partilha, de não-avareza, de se querer mostrar de imediato o que descobrimos aos que nos compreendem, de estar, por outro lado, de olhos e orelhas bem despertos para o que eles nos queiram dar a ver.

Talvez que muito do novo, do genuinamente novo, resida na capacidade de refrescar o nosso olhar, fazendo-o olhar de uma outra forma para o que aparentemente já antes existia - até para o que já esperava por nós há séculos! E, nesse sentido, Janota, no seu «Bisnaga Janota», revelou-me a magnífica imagem de Ron Hutt, que se intitula «Aphrodite arranging a romantic rendezvous with Ares on her cell» - é verdade, Aphrodite combinando um rendez-vous pelo telemóvel -, e é simplesmente a primeira de uma série de imagens onde revisita, inesperada e supreendentemente, a arte da antiguidade grega, reconstituindo-a à luz de uma modernidade irónica e estranha, improvável e belíssima.

Da mesma forma, mantendo-me ainda na pista do antigo que é reavaliado, ou do antigo que nem sequer conhecíamos e portanto, para nós, que o descobrimos agora, é, de facto, novo, gostaria de vos sussurrar algo acerca de uma outra pequena maravilha, sobre a qual o meu primo se abriu comigo em confissão, porque o tem fascinado e porque o fará um dia, quem sabe, perder a cabeça e arruinar-se: é a pintura de um senhor inglês do século XVIII, completamente rendido, por sua vez, a Nápoles; chama-se, esse senhor, Thomas Jones. Ah, se eu fosse Janota ou Angel, se tivesse a sua mestria tecnológica, o gosto com que não vos mostraria já algumas reproduções: a delicadeza das cores, das fachadas pobres e em ruínas, o ligeiro prenúncio (como me dizia meu primo, pobre louco apaixonado!) do que viria a ser o impressionismo, tanto tempo antes da emergência deste...
Mas assim, sem poder postar cores nem pinturas, posso pedir-vos que pesquisem, que procurem, repito, Thomas Jones, acrescentando, talvez, «Nápoles» porque, ao que parece, há mais, há muitos outros Thomas Jones. Não se deixem enganar nem confundir...

Angel, por sua vez, foi (e já lho disse, também), a pessoa que me chamou a descobrir Neil Gaiman: é uma dívida que nunca agradecerei nem pagarei suficientemente; Neil Gaiman é um criador múltiplo e prodigioso, tentacular, que está em todas as áreas ao mesmo tempo - no romance («Os Filhos de Ananci», «Neverwhere»...), no cinema (sim, o guião de «Bewoulf» é, em parte, da sua autoria), na banda desenhada, com diversas Graphic Novels, entre as quais Sandman (e a série «Nocturno», que encontrei não mais longe do que... na Biblioteca Municipal de Oeiras, é de nos fazer perder o ar) e «O Mundo da Marvel», onde coloca as personagens da Marvel, por uma espécie de erro espacio-temporal, no longínquo ano de 1620, em plena histeria da inquisição e de caça às bruxas...!

Vamos ainda mais longe. Descobri, por um mero acaso - e há que, neste processo de busca, dar a devida importância ao «acaso» -, uma outra personagem de BD, sobre que me não posso calar durante nem mais um minuto. Blacksad, de dois espanhóis, Díaz Canales e Guarnido, é um detective romântico e ácido, nos EUA dos anos 40; desenhado num grafismo vertiginoso, com uma cor magnífica, sombria, procurando ângulos e planos próprios de quem viu e digeriu muito cinema, com sequências onde o movimento é captado de uma forma quase impossível, Blacksad é, afinal... um gato negro, num universo onde todas as personagens são animais em convivência complexa e dolorosa: cães, porcos, cavalos, gazelas, tigres, leões, numa melancólica representação das personalidades, das virtudes e dos vícios, da ética e da imoralidade humanos.

Muito mais haveria a dizer: mas para, fechando o círculo, terminar no mesmo ponto onde iniciei este post, devo aproveitar para fazer a revelação de que nunca prestara grande atenção ao Eclesiastes.
Quem mo devolveu foi, vejam lá como isto funciona, como as descobertas nos chegam de onde menos se espera - foi Ricardo Araújo Pereira que, algures, numa entrevista, destacava o tom do Eclesiastes: o seu autor pareceria ser, na interpretação do Gato Fedorento, um mensageiro de Deus, no fundo, secreta e amargamente descrente de Deus e da sua Obra. Um Profeta descrente? Um Condutor impotente para crer no caminho? Não descansei enquanto não procurei uma Bíblia.

Surpresas e maravilhas são sem fim...

sexta-feira, janeiro 11, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (VII)

OS APONTAMENTOS DE VIRGINIA TURTLE

«OBSERVAÇÕES & INTERROGAÇÕES»

«Charlie entrou com uma chave. Lady Gloria abraçou-se a ele e pô-lo a par dos acontecimentos. Charlie, como se esperaria, quis ver o corpo do pai. Debruçou-se sobre o cadáver e fez adequadamente o seu teatro. Estarei a ser mazinha?

«Melody parecia tola. No primeiro momento tinha-se levantado, como se assustada, e chegara a esconder-se atrás de uma cadeira. Mas, depois, veio consolar Charlie, o choroso Charlie, afagando-lhe ternamente o cabelo. É doida, é claro, mas isso explica tudo? Afinal, o que aconteceu lá em cima? Tenho tantas perguntas. Será que sou capaz de fazer as perguntas certas, sem dizer de mais, sem dizer de menos? Sem espantar a caça? Hum!

«Inquirido por mim (omo quem não quer a coisa) sobre se, então, sempre tornara a encontrar a chave que se queixara de ter perdido, e sobre por que voltara tão cedo, e sem a mulher, Charlie explicou-nos, não sei se convincentemente, que:

«a) Não tinha realmente chave da casa dos pais. Perdera-a na véspera do dia do ano novo, de visita a casa de um vizinho. Que vizinho? Há poucos vizinhos por aqui. (A chave que trazia, segundo me disse, era de Björk. Mas por que raio haveria a sueca de ter uma chave da casa dos sogros? Bem, suponho que isso poderá ser confirmado...)
b) Veio mais cedo da festa sueca, porque não conhecia praticamente ninguém e... só se falava em sueco. Está bem visto. Cansou-se, teve, em bom inglês, uma monumental discussão com a esposa, que se recusou a sair, e deixou-a, aliás, ao que parece, muito divertida e meio bêbeda.

«No fundo, pensando bem, Charlie é francamente suspeito, mas não é o único.
Devo dizer que a mais suspeita de todos, de resto, sou eu. Tenho quase pena de me ter desperdiçado como presumível culpada. Eu sei que não fui eu.
Também sei que não foi Mr. Arbuckle. Coitado! Posso eliminá-lo descansadamente. Eliminá-lo?! Cala-te boca, que palavra horrorosa, nesta situação. (Também posso «eliminar» Mrs. Arbuckle. Uma mãe é uma mãe. Conheço-a bem. Embora...!)

«Mr. Castorpopoulos chegou, antes da polícia, às duas horas da manhã. Janota, sem um vinco fora do lugar, os sapatos brilhando muito, como se não tivesse estado a divertir-se, e a beber, e a soprar gaitinhas...! Cristo! Não se imagina o estado em que ficou quando confrontado com o desaparecimento do gato. Dir-se-ia que o sumiço do bichano o perturbou muito mais do que a morte do Engenheiro. O homem é mesmo grego! Que intuição para a tragédia! Que talento! As mãos abertas, como se se preparasse para voar...! A voz rouca...! Estou a ser mazinha, não consigo controlar este meu ódio contra um homem que deixa toda a sua fortuna ao gato!

«Charlie e John iniciaram, mais tarde, uma discussão sem tréguas. Ambos pareciam culpar-se de qualquer coisa. John estava muito nervoso, pensa que Charlie lhe violou a irmã, fez desaparecer o gato, matou o pai. Não o diz, mas insinua! E John? Que sei eu dele, a não ser que era amicíssimo do Engenheiro? Mas não havia um rumor de ambos terem estado apaixonados por Mrs. Emily? E de não terem falado durante anos, logo após o casamento do Engenheiro com a esposa...?
Melody interpõe-se. Não compreendo esta rapariga. Ela e Charlie estão, agora, a olhar-se de olhos nos olhos, muito intensamente, como se... como se... não gosto disto, não gosto disto!

«A polícia chegou quase às três da manhã, com um médico calvo e macilento que anunciou, com o ar de quem descobria a pólvora: «Está morto!»

«O detective, um senhor de bigode ruivo e chapéu de coco, desconfia de mim. Percebe-se imediatamente! Desvaloriza o pormenor da chave de Charlie. Desvaloriza outros pormenores para que eu lhe chamei discreta e delicadamente a atenção.

«E Emily dava-se bem com o esposo? Não, não dava. Ainda estaria apaixonada por John? Quem sabe?! Mas seria capaz de assassinar o Eng.? Mandar alguém, em desespero... não digo que não. (Estou a ser mazinha?). O Engenheiro era intragável. Tenho de ser sincera. (Virginia, Virginia, és tão mazinha!)

«Eu tenho uma teoria. Mas precisava de fazer as perguntas certas. Sem afugentar a presa. Serei capaz?

«Olha, olha, olha, olha! Charlie e Melody não estão cá. Lá em cima?!

«Hum...!»

(CONTINUA)

quarta-feira, janeiro 09, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (VI)

Virginia Turtle que, para além de excelente cozinheira, era uma devoradora de livros policiais, num gosto cultivado pelos solitários e prolongados dias que os pulmões fracos a forçavam a passar na cama, tomou, repentinamente, a direcção do pequeno grupo. Nunca pensara viver, em vida real, um romance em tudo tão semelhante aos que povoavam as suas horas de respiração penosa e fatigante.
Por outro lado, naquele momento, ninguém mais estava, ali, em condições de tomar a mínima decisão. Mrs. Arbuckle e Emily haviam desmaiado em uníssono. Mr. Arbuckle, doido de dor, sentara-se no seu sofá predilecto, meio paralisado, como se afectado por uma estranha indiferença que não era mais do que a tentativa desesperada de regressar ao país das memórias, de onde se arrependia já de ter saído; Lady Gloria, chorando, procurava acordar as mulheres desmaiadas e, ao mesmo tempo, esconder a Melody o cadáver que esta já tivera ocasião de ver. Entretanto, John, o «primo» John, como o Engenheiro costumava chamar-lhe, arrastava as crianças dali para fora, tão triste como se sentisse a faca no próprio coração. Iria, seguidamente, fazer telefonemas - mas que polícia, ou que médico, o atenderiam no início de um novo ano?

Mrs. Virginia Turtle examinou atentamente o corpo, sem lhe tocar, e examinou a gaiola. Disse, para si: «Não a arrobaram. Trabalho bem feito...»; serviu uma bebida forte às únicas que permaneciam completamente acordadas, ajudou-as a sentar, deu umas palmadinhas no ombro de Melody e perguntou-lhe:
- Querida, está melhor? Oiça, preciso que me diga uma coisa. Mas pense bem, pense muito bem antes de responder. Quanto a Charlie: viu-o, realmente? Era ele? Foi de certeza ele que a... hum... incomodou?!
- Charlie! Sim, sim...- retorquiu a rapariga, assustadíssima, com os olhos muito abertos. Depois principiou a murmurar incongruências, numa obcecada reza aos demónios do seu espírito inquieto.
- Não podia ser Charlie - exclamou Lady Gloria. - Charlie tinha saído para a festa do Clube Sueco.
- Bem - pensava Virginia Turtle em voz alta -, saiu, é certo, mas podia ter tornado a entrar, discretamente, durante um momento de confusão, não é verdade? E houve tantos! A verdade é que ele e o pai se davam mal. Oh, e ultimamente, então, andavam furiosos, positivamente furiosos um com o outro, sobretudo por causa de Mrs. Björk. Devo aliás dizer que a cena a que eu assisti hoje à tarde... ui! A raiva com que o senhor Engenheiro insultou o filho diante da nora, e a raiva com que este lhe respondeu...
- Não - teimou Lady Gloria. - Charlie não poderia ter entrado, porque não tinha chave. Lembro-me de a minha cunhada me ter dito precisamente que o seu neto tinha perdido a chave hoje, quando foi fazer uma visita qualquer não se sabe a quem...

Lady Gloria parecia, de facto, tão empenhada em defender Charles Arbuckle, em recusar que ele pudesse ter molestado a sua filha, quanto mais assassinado o próprio pai (e feito sumir o gato, já agora...) que, mais do que espanto, foi quase com frustração que viu desfazer-se o argumento da chave. Era Charlie que estava justamente a entrar em casa, pela porta da rua, com uma chave que mantinha ainda entre dois dedos...
- Charlie!
Vinha só, com o fato em desalinho, o cabelo despenteado.
Melody levantou-se, num acto de pânico.

(CONTINUA)

domingo, janeiro 06, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (V)

Melody entrou lavada em lágrimas, com a pintura do rosto esborratada, a camisa rasgada nos ombros e no decote, a saia enxovalhada, praticamente arrancada, e somente com um dos seus sapatos de salto curto calçado; chorava como que num desespero atroz.
As crianças tinham vindo assistir ao trágico, ou cómico, ou tragicómico espectáculo de Melody, uma rapariga crescida, estranha, sim, mas crescida, em trajes menores, ou quase, chorando e repetindo frases sem nexo:
- Foi ele! Foi ele! -, soluçava.
- Que modos são esses, rapariga? - perguntava o Engenheiro. - «Ele», quem?! - inquiria ainda, como se temesse que Melody o acusasse a si.
- Charlie! Foi Charlie!
- Que disparate, menina! Recomponha-se. E componha-se, pelo amor de Deus! Charlie não está cá.
- Foi ele, foi ele! Ali em cima, no quarto... - e apontava, tremente.

Mal tinham tido tempo para a calar, para a amparar, para a agasalhar, para digerir a sua afirmação peremptória de que Charlie estava em casa, e lhe fizera algo que a deixara em tal estado, quando Mr. Arbuckle, arrancado às suas memórias, ao seu doce devaneio, caído numa irascibilidade perfeitamente senil, armava o terceiro escândalo, berrando que os não queria ali, que os punha fora de casa, a todos!, empurrando o Engenheiro, dirigindo a sua própria esposa - por engano ou deliberadamente - em direcção à porta da rua...

Só as badaladas da meia noite puseram fim à confusão geral.

Entretanto, um corte de energia fazia cessar os gritos no interior da casa, ao mesmo tempo que, no exterior, se faziam ouvir outros gritos, animadíssimos, se elevavam foguetes e festivas rolhas de champanhe, que saudavam, com renovadas esperanças e muitas expectatitas, o aparentemente bem-vindo 1958.

Quando a luz voltou, à meia noite e um, precisamente à meia noite e um minuto, ouviu-se um grito no interior da casa.
À meia noite e sessenta e sete segundos, ouviu-se um novo grito. (Outra voz, outra pessoa, também no interior da casa...)

O primeiro, soltado por Mrs. Turtle, na sala, dava conta do seu espanto por deparar com a gaiola aberta, e vazia...! Zorba não estava ali. Como Cristo, também parecera ter ressuscitado do seu túmulo.

O segundo, mais angustiado, lançado por Melody, manifestava o horror dela diante do corpo do Engenheiro, estendido no chão, de bruços, com o cabo de uma faca sobressaindo: a faca estava completamente enterrada num poço de sangue, escavado, se assim me posso exprimir, nas suas costas, por sobre o lado do coração.

(CONTINUARÁ... DEPOIS DE UM DESCANSO QUE OS MEUS LEITORES MERECEM)

sexta-feira, janeiro 04, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (IV)

Era Mrs. Turtle, que se refugiara na cozinha assim que vira e ouvira falar acerca do gato, mas agora, ciente de que Zorbas Castorpopoulos se tinha ido embora, desatava a gritar enormidades, alimentando-se da sua indignação, sentindo-se cada vez mais furiosa por efeito das suas próprias palavras, ou melhor, dos seus gritos:
- Não há direito! Gente com fome! Gente à míngua! E o biltre mais rico, se calhar do mundo, deixa tudo ao gato! Ao gato! Maldito gato! Gato do inferno! Espírito das trevas! Que eu nem o veja à frente! Estou capaz de o comer! Danação! Aaaaaah!
Lady Gloria, partindo cristais pelo caminho, apressara-se a dirigir-se-lhe com o fito de a acalmar, mas todas as tentativas pareciam vãs.
O Engenheiro, aproveitando a oportunidade de carregar, contra ela, a sua antipatia e a sua secura, repreendia-a com toda a severidade (e, vá lá, alguma má educação):
- Que diabo, mulher! Tenha juízo! Tenha modos! Isto não é um barraco! Comporte-se!
Mrs. Turtle, ou não ouvia (por não se ouvir senão a si mesma), ou fingia não escutar, ou estava mesmo para além da possibilidade de se controlar. Num reacção de pura cólera, lançou o seu punho fechado contra o nariz de Lady Gloria, que, além de ser uma mulher frágil, não esperava o ataque, de modo que tombou para trás, batendo com as nádegas no chão.
Foi, contudo, remédio eficaz, tão eficaz como um par de bofetadas para solucionar uma crise de histeria: imediatamente arrependida, Mrs. Turtle calou-se; levou as mãos à boca. Ela mesmo acorreu em primeiro lugar em socorro de Lady Gloria, chorando, pedindo perdão.
O Engenheiro estava furioso, provavelmente furioso consigo por não ter aproveitado o excelente pretexto da crise histérica para esbofetear a, pensava ele, «horrorosa mulherzinha». Fora, de facto, uma chance perdida. Agora, já não seria, talvez, possível bater-lhe, porque o ponto é que, entretanto, Mrs. Turtle iniciara um autêntico espectáculo de tosse e de falta de ar...
Que, pobre senhora, nem teve tempo para desenvolver devidamente.
Eram vinte e três horas e cinquenta e um minutos, quando o segundo escândalo da noite teve lugar.
E que escândalo: desta feita, era a prima. Melody, a santa. Bem! Melody, com efeito, ali, naquele momento, não parecia nenhuma santa. Garanto-vos.

(CONTINUA)

quinta-feira, janeiro 03, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (III)

Por desejo do improvável visitante, conduziram-no à sala de jantar (ou, mais rigorosamente, «a uma divisão», conforme ele pedira, que tivesse «uma mesa grande», e que acabou por coincidir, de facto, com a sala de jantar).
Aí chegados, fazendo, com a ajuda de Mrs. Arbuckle, espaço entre copos e pratos, o grego depositou o impressionante embrulho sobre aquela mesa longa (que, quando havia muitos convidados, se tornava ainda mais longa, mercê de umas providenciais orelhas que ora se ocultavam, ora a estendiam).
Com uma lentidão deliberada, principiou a rasgar o papel do que quer que fosse, no embrulho.
Enquanto assim procedia, contudo, não parava de falar: sim, tinha vindo absolutamente sozinho, confessou. Ele próprio, contra os seus hábitos e a sua comodidade, conduzira o Bentley até ali, prescindindo do motorista. (As crianças seguiam, atentas, aquelas mãos que, em câmara lenta, continuavam a tirar pedacinhos do papel de embrulho).
A questão - revelava Zorbas Castorpopoulos - é que à meia noite, deveria imperiosamente estar numa festa, num local onde a sua ausência seria tomada como um imperdoável gesto de hostilidade.
Obviamente, não poderia fazer-se acompanhar «daquilo». (E, com o queixo, impondo-se uma pausa na manobra de desembrulhar, apontava para o misterioso objecto, ainda envolvido em papel colorido).
Todavia, por outro lado, não poderia deixar «aquilo» em sua casa, porque não confiava em ninguém. Em nenhuma das pessoas que o rodeavam habitualmente. Mesmo que tivesse dado folga ao mordomo, ao motorista, à governanta, à cozinheira, ao copeiro, aos criados e criadas, aos moços de estrebaria, ao treinador dos cavalos, ao tratador dos cães, aos jardineiros e por aí fora, bastava-lhe ... (voltara ao «desembrulhanço»; via-se já a parte superior de qualquer coisa metálica; uma espécie de capacete?)... bastava-lhe a simples ideia de que eles conheciam os cantos à mansão, de que possuíam chaves, possibilidades quase infinitas de entrada e circulação, para que não pudesse serenar.
Com três últimos gestos, desfez, por fim, o embrulho, deixando ver que aquela espécie de capacete não era senão o tecto, digamos assim, de uma gaiola.
No seu interior, fitava-os agudamente, com uns olhos verdes, faiscantes, em tudo semelhantes aos do seu proprietário, um gato.
- Meus senhores, este é Zorba, o gato! É o meu único herdeiro. Tudo o que vos peço é que mo vigiem durante esta noite. Só esta noite. Oh, serão principescamente recompensados. Não tenho qualquer outra solução.
- Mas o senhor não nos conhece...
- Oh, mas conheço, Lady Gloria, conheço todos e cada um dos presentes. Eu faço sempre o meu trabalho de casa. Nunca improviso. - Com estas palavras, olhou para o relógio preso de uma corrente no bolso. Deu um estalido com a língua, como se quisesse dizer «já estou a demorar muito...»; desejou boas-noites e, sem esperar por nenhum assentimento, retirou-se.
Zorba, o gato, fez «pffffff» com alguma agressividade.

Nesse preciso momento, eram vinte e três horas e quarenta e sete minutos (já Mr. Castorpopoulos entrara no seu Bentley e se sumira na noite, ainda a maioria dos convivas não regressara inteiramente a si), ouviu-se, da cozinha, uma tremenda gritaria.
Começava assim, desta forma absurda, com gritos histéricos, o primeiro dos três escândalos dessa noite.

(CONTINUA)

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (II)

Observação: a pedido de várias famílias - está bem!, não várias porque este blogue não tem tantos leitores quanto isso... -, o folhetim vai sofrer alguns inesperados desvios. Não se espantem!

Por volta das vinte e três e quinze, a campaínha retiniu longamente.
Como na casa dos Arbuckle não havia propriamente mordomos, apenas uma cozinheira que, tendo deixado a ceia preparada, fora dispensada pela dona de casa para passar essa noite com a família, foi a própria esposa do Engenheiro quem se dirigiu à porta.
Porém, o toque, que, francamente, ninguém esperava, teve o condão de causar uma certa agitação entre os convivas. Mr. Arbuckle, himself, pareceu despertar do fundo de cem anos de recordações; Angel e os gémeos, Rick e Ruth, descolaram-se por um instante da televisão.
Mas foi o Engenheiro, sobretudo, que passou por uma série de metamorfoses. Aborrecimento, primeiro, porque algo o arrancava ao sumptuoso livro que o prendera; perplexidade, logo a seguir, «Ora bolas! A esta hora, quem diacho poderá ser...?», como se um sistema de engrenagens começasse a trabalhar, no seu cérebro, para solucionar um enigma particularmente difícil; por fim, uma chamazinha de felicidade incrédula perante a resposta que encontrara: Charlie! Só podia ser Charlie, seu filho! Ou se haviam arrependido, ou o rapaz tivera uma discussão com a sueca e se separara dela - esta hipótese, a verificar-se, seria ainda melhor -, ou... Em suma: Charlie viera juntar-se à família. O filho pródigo! O filho pródigo!
Algures, Lady Gloria, na confusão, partia qualquer coisa, desta vez para os lados da cozinha.

À entrada, porém, estava um homem baixo,que ninguém conseguia ainda ver para além de Mrs. Emily, que vinha de lhe abrir a porta: de fraque, com o cabelo luzidiamente negro e uns olhos verdes faiscantes, era Zorbas Castorpopoulos em pessoa!
O homem mais rico das redondezas, se não de toda a Grã-Bretanha, porventura da Europa, dignara-se parar-lhes à entrada, fosse lá pelo que fosse, com um incrível embrulho nas mãos. Não enviara um dos seus criados, não: ali estava em pessoa. A menos que fosse um sósia.
- Boa noite. Eu não queria incomodar, mas gostaria de fazer uma proposta aos donos da casa...

(CONTINUA)

quarta-feira, janeiro 02, 2008

CRIME NA PASSAGEM DE ANO (I)

Mr. Arbuckle, que dois dias antes do salto para 1958 perfizera cem anos de idade, sentara-se pachorrentamente no sofá de orelhas, com um calicezinho de Madeira na mão, e deslizava, com vagar e prazer, para o imenso e variado mundo das suas memórias - apesar de Mrs. Arbuckle, que só tinha noventa e sete anos, lhe dizer, cada vez mais frequentemente, que não percebia que diacho de memórias o absorviam tanto, a ele que não tinha memória para se lembrar sequer do que lhe pedia para trazer da mercearia - enquanto, ao lado, os netos e a bisneta, finalmente calados, se colavam a uma série de anúncios com que a televisão conseguira atraí-los.
O Engenheiro, seu filho, sentara-se antipaticamente sob o candeeiro de pé alto, folheando um livro que lhe haviam oferecido no Natal. Incomodava sobremaneira ao sr. Engenheiro a presença de Mrs. Turtle, a «desvalida», como se lhe referia entre dentes, que se colara à dona da casa com o mesmo tipo de cola resistente que colava as crianças à TV. Ela não tinha com quem passar as festas, de modo que encontrava maneira de se imiscuir naquele grupo de que não fazia parte, com os seus bolos caseiros, os seus problemas respiratórios que já tinham estragado o jantar de Natal e, o que impressionava mais ainda o Engenheiro, o seu apetite voraz. Mas é evidente que o principal foco da sua irritação, nem era essa presença. Na verdade, era uma ausência: até ao princípio da tarde, o Engenheiro acreditara que o seu filho, Charlie, se impusesse à própria esposa, Mrs. Björk, a sueca,como lhe chamavam, e acabasse por se juntar à família na passagem de ano. Em vez disso, Charlie & Björn tinham vindo depositar a sua filha de três anos, Angel (que era tudo menos o «anjo» com que o nome enganava os incautos), a qual fazia a vida negra aos próprios gémeos, filhos mais novos do Engenheiro e, portanto, tios da miúda, quase dez anos mais velhos do que esta - e ainda terríveis, também. Charlie e a «sueca» haviam desejado um «Bom Ano» e partido, com um suspiro de alívio quase audível, em direcção a uma grande festa sueca, com muitos suecos e suecas, no Clube Sueco.
Emily, a esposa do Engenheiro, muito rosada e genuinamente feliz, servia de álcool a família que acabara de chegar: John, o primo direito, a desenfiar ainda o sobretudo acolchoado, gargalhando com as suas gargalhadas estrepitosas, repetindo as mesmas velhas graças, de que, avaramente, nunca se desfazia ao longo dos anos, dos natais, das passagens de ano, com um nariz comprido e esticado como o bico de um pássaro, onde se encavalitavam os óculos de aros finos, estranhamente finos para umas lentes tão graduadas; Lady Gloria, irmã de Mr. Arbuckle, mãe de John e de Melody, desajeitadíssima, varrendo jarros e vidros à passagem míope do seu casaco comprido e, por fim, miss Melody, a própria, conhecida por ouvir vozes e cânticos permanentes na sua cabeça e por receber mensagens sabe-se lá de que Além (embora a família se inclinasse mais para o diagnóstico de «loucura» do que para o de «misticismo»), bonita e parada, desconfiada de tudo e todos...

Estava reunido, na casa de Mr. e Mrs. Arbuckle, o grupo que ia passar,em coro, para o ano de 1958.

(CONTINUA)