Mr. Arbuckle, que dois dias antes do salto para 1958 perfizera cem anos de idade, sentara-se pachorrentamente no sofá de orelhas, com um calicezinho de Madeira na mão, e deslizava, com vagar e prazer, para o imenso e variado mundo das suas memórias - apesar de Mrs. Arbuckle, que só tinha noventa e sete anos, lhe dizer, cada vez mais frequentemente, que não percebia que diacho de memórias o absorviam tanto, a ele que não tinha memória para se lembrar sequer do que lhe pedia para trazer da mercearia - enquanto, ao lado, os netos e a bisneta, finalmente calados, se colavam a uma série de anúncios com que a televisão conseguira atraí-los.
O Engenheiro, seu filho, sentara-se antipaticamente sob o candeeiro de pé alto, folheando um livro que lhe haviam oferecido no Natal. Incomodava sobremaneira ao sr. Engenheiro a presença de Mrs. Turtle, a «desvalida», como se lhe referia entre dentes, que se colara à dona da casa com o mesmo tipo de cola resistente que colava as crianças à TV. Ela não tinha com quem passar as festas, de modo que encontrava maneira de se imiscuir naquele grupo de que não fazia parte, com os seus bolos caseiros, os seus problemas respiratórios que já tinham estragado o jantar de Natal e, o que impressionava mais ainda o Engenheiro, o seu apetite voraz. Mas é evidente que o principal foco da sua irritação, nem era essa presença. Na verdade, era uma ausência: até ao princípio da tarde, o Engenheiro acreditara que o seu filho, Charlie, se impusesse à própria esposa, Mrs. Björk, a sueca,como lhe chamavam, e acabasse por se juntar à família na passagem de ano. Em vez disso, Charlie & Björn tinham vindo depositar a sua filha de três anos, Angel (que era tudo menos o «anjo» com que o nome enganava os incautos), a qual fazia a vida negra aos próprios gémeos, filhos mais novos do Engenheiro e, portanto, tios da miúda, quase dez anos mais velhos do que esta - e ainda terríveis, também. Charlie e a «sueca» haviam desejado um «Bom Ano» e partido, com um suspiro de alívio quase audível, em direcção a uma grande festa sueca, com muitos suecos e suecas, no Clube Sueco.
Emily, a esposa do Engenheiro, muito rosada e genuinamente feliz, servia de álcool a família que acabara de chegar: John, o primo direito, a desenfiar ainda o sobretudo acolchoado, gargalhando com as suas gargalhadas estrepitosas, repetindo as mesmas velhas graças, de que, avaramente, nunca se desfazia ao longo dos anos, dos natais, das passagens de ano, com um nariz comprido e esticado como o bico de um pássaro, onde se encavalitavam os óculos de aros finos, estranhamente finos para umas lentes tão graduadas; Lady Gloria, irmã de Mr. Arbuckle, mãe de John e de Melody, desajeitadíssima, varrendo jarros e vidros à passagem míope do seu casaco comprido e, por fim, miss Melody, a própria, conhecida por ouvir vozes e cânticos permanentes na sua cabeça e por receber mensagens sabe-se lá de que Além (embora a família se inclinasse mais para o diagnóstico de «loucura» do que para o de «misticismo»), bonita e parada, desconfiada de tudo e todos...
Estava reunido, na casa de Mr. e Mrs. Arbuckle, o grupo que ia passar,em coro, para o ano de 1958.
(CONTINUA)
quarta-feira, janeiro 02, 2008
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5 comentários:
Ah! Mais um conto, yes! YES! :)
É pá, esse foi o ano em que nasci!... E deitando-lhe as contas (que na altura os meus pais não sabiam fazer bem) se calhar foi quando fui feito, congeminado, rascunhado...
Deixa-me entrar na história! Deixa! Deixa!...
Apoio-te, zorbas. E porque não nós todos, leitores do kaostico, a passar o ano com uma família decrépita...
Parece-me uma ideia interessante. Embora esta última referência da janota me soe a uma indirecta sarcástica, altamente sarcástica, a propósito dos pouquíssmos leitores que o kaostico deve ter... Enfim...!
Pois a mim, esta última referência da janota soa-me um pouco a insulto. Decrépita?! Angel, membro de uma família decrépita?! Humpf!
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