sábado, janeiro 12, 2008

INTERRUPÇÃO NO POLICIAL PARA UMAS QUANTAS CONFISSÕES

Leio isto, no Eclesiastes: «O que aconteceu, de novo acontecerá; e o que se fez, de novo será feito: debaixo do sol não há nenhuma novidade.» [Ecl. 9-10]

E, todavia, dou por mim, já com tanto caminho percorrido (meio século de cultivo de um cepticismo permanente e de uma feroz desconfiança em relação a todas as «novidades»), a discordar desta mensagem.

Nunca tanto como nestes últimos anos fui chamado ou, talvez mais rigorosamente, «convidado» à descoberta de algumas maravilhas que me ferem o olhar, os ouvidos e o espírito, em diferentes áreas, com o seu sabor de absoluta originalidade: «originalidade» no melhor sentido da palavra, que não é o do diferente pelo diferente, só porque sim, mas do diferente que interessa e vale a pena, que introduz algo de novo debaixo do sol, e nos encanta, e faz a nossa alma rejubilar. Amen!

Nestas descobertas, nestes convites, nestes chamamentos, os amigos têm tido um papel essencial: o que me faz pensar que o encontro com o «novo» tem qualquer coisa que ver, necessária ou, pelo menos, preferencialmente, com um movimento de amizade e de partilha, de não-avareza, de se querer mostrar de imediato o que descobrimos aos que nos compreendem, de estar, por outro lado, de olhos e orelhas bem despertos para o que eles nos queiram dar a ver.

Talvez que muito do novo, do genuinamente novo, resida na capacidade de refrescar o nosso olhar, fazendo-o olhar de uma outra forma para o que aparentemente já antes existia - até para o que já esperava por nós há séculos! E, nesse sentido, Janota, no seu «Bisnaga Janota», revelou-me a magnífica imagem de Ron Hutt, que se intitula «Aphrodite arranging a romantic rendezvous with Ares on her cell» - é verdade, Aphrodite combinando um rendez-vous pelo telemóvel -, e é simplesmente a primeira de uma série de imagens onde revisita, inesperada e supreendentemente, a arte da antiguidade grega, reconstituindo-a à luz de uma modernidade irónica e estranha, improvável e belíssima.

Da mesma forma, mantendo-me ainda na pista do antigo que é reavaliado, ou do antigo que nem sequer conhecíamos e portanto, para nós, que o descobrimos agora, é, de facto, novo, gostaria de vos sussurrar algo acerca de uma outra pequena maravilha, sobre a qual o meu primo se abriu comigo em confissão, porque o tem fascinado e porque o fará um dia, quem sabe, perder a cabeça e arruinar-se: é a pintura de um senhor inglês do século XVIII, completamente rendido, por sua vez, a Nápoles; chama-se, esse senhor, Thomas Jones. Ah, se eu fosse Janota ou Angel, se tivesse a sua mestria tecnológica, o gosto com que não vos mostraria já algumas reproduções: a delicadeza das cores, das fachadas pobres e em ruínas, o ligeiro prenúncio (como me dizia meu primo, pobre louco apaixonado!) do que viria a ser o impressionismo, tanto tempo antes da emergência deste...
Mas assim, sem poder postar cores nem pinturas, posso pedir-vos que pesquisem, que procurem, repito, Thomas Jones, acrescentando, talvez, «Nápoles» porque, ao que parece, há mais, há muitos outros Thomas Jones. Não se deixem enganar nem confundir...

Angel, por sua vez, foi (e já lho disse, também), a pessoa que me chamou a descobrir Neil Gaiman: é uma dívida que nunca agradecerei nem pagarei suficientemente; Neil Gaiman é um criador múltiplo e prodigioso, tentacular, que está em todas as áreas ao mesmo tempo - no romance («Os Filhos de Ananci», «Neverwhere»...), no cinema (sim, o guião de «Bewoulf» é, em parte, da sua autoria), na banda desenhada, com diversas Graphic Novels, entre as quais Sandman (e a série «Nocturno», que encontrei não mais longe do que... na Biblioteca Municipal de Oeiras, é de nos fazer perder o ar) e «O Mundo da Marvel», onde coloca as personagens da Marvel, por uma espécie de erro espacio-temporal, no longínquo ano de 1620, em plena histeria da inquisição e de caça às bruxas...!

Vamos ainda mais longe. Descobri, por um mero acaso - e há que, neste processo de busca, dar a devida importância ao «acaso» -, uma outra personagem de BD, sobre que me não posso calar durante nem mais um minuto. Blacksad, de dois espanhóis, Díaz Canales e Guarnido, é um detective romântico e ácido, nos EUA dos anos 40; desenhado num grafismo vertiginoso, com uma cor magnífica, sombria, procurando ângulos e planos próprios de quem viu e digeriu muito cinema, com sequências onde o movimento é captado de uma forma quase impossível, Blacksad é, afinal... um gato negro, num universo onde todas as personagens são animais em convivência complexa e dolorosa: cães, porcos, cavalos, gazelas, tigres, leões, numa melancólica representação das personalidades, das virtudes e dos vícios, da ética e da imoralidade humanos.

Muito mais haveria a dizer: mas para, fechando o círculo, terminar no mesmo ponto onde iniciei este post, devo aproveitar para fazer a revelação de que nunca prestara grande atenção ao Eclesiastes.
Quem mo devolveu foi, vejam lá como isto funciona, como as descobertas nos chegam de onde menos se espera - foi Ricardo Araújo Pereira que, algures, numa entrevista, destacava o tom do Eclesiastes: o seu autor pareceria ser, na interpretação do Gato Fedorento, um mensageiro de Deus, no fundo, secreta e amargamente descrente de Deus e da sua Obra. Um Profeta descrente? Um Condutor impotente para crer no caminho? Não descansei enquanto não procurei uma Bíblia.

Surpresas e maravilhas são sem fim...

2 comentários:

lara_1012 disse...

A propósito: ontem deambulava pela fnac e ouvi sem querer uma conversa entre uma cliente e um funcionário. Ela procurava qualquer coisa de música e dizia com ar enfadonho e de muitas certezas que a música que agora se fazia era toda para "consumo imediato" e que felizmente ela tinha vivido uma altura na qual as coisas não eram assim, e mais blá blá do género. Fiquei com vontade de me meter na conversa, mas acabei por perceber que não valia a pena, pois na realidade aquela senhora já não estava lá muito viva.
Já tu és daqueles que estará sempre vivo, Gil!

Unknown disse...

Mais do que qualquer "novidade" que lhe possamos "mostar", o kaostico é uma revelação a todo o instante (não posso deixar de dizer que me orgulha a referência ao meu blog). Genuinidade, imaginação, encontramo-las aqui e no prazer que a leitura dos textos nos proporciona. Não é preciso haver imagens quando as palavras são tanto. Gil, és tu que nos dá isso tudo. Vale a pena ter amigos assim.