1. Entre os professores, como em todas as profissões, há bons e maus profissionais
2. Em regra, os maus são os professores dos nossos filhos
3. A mesma regra se aplica, mutatis mutandis, às mulheres-a-dias. No caso, deverá ser enunciada como se segue: «Há, certamente, mulheres-a-dias que fazem um bom trabalho e mulheres-a-dias que fazem um mau trabalho. Em minha casa nunca entrou uma mulher-a-dias da primeira categoria».
4. Estas regras podem parecer triviais. Mesmo patetas. O seu alcance, porém, é assombroso: se repararem bem, elas vêm pôr completamente em causa a credibilidade e a serventia do cálculo de probabilidades...
5. Ou seja: na sua aparente simplicidade, preparam uma revolução qualquer no estádio do conhecimento humano.
segunda-feira, dezembro 25, 2006
domingo, dezembro 24, 2006
SIMPLESMENTE UM CONTO SACRÍLEGO
1.
Deus Pai Todo Poderoso tinha um gnomo, seu braço direito, que o ajudava diligentemente. A razão pela qual se não fala, hoje, desse apoio é esta: a mais simples referência a ele foi completa e sucessivamente expurgada, suprimida de todos os textos sagrados. Tomás de Aquino, chamado «O Boi», perguntava-se, a esse propósito, eloquententemente: «Por que haveria Deus, O Todo Poderoso, de carecer de um ajudante? E porquê um anão? Por que não um gigante?» [Summa Theologica, 6-3]
2.
O trabalho do gnomo de Deus era monótono e, francamente, o pobre ser ressentia-se muito disso, dessa sua tarefa que consistia em garantir, antes ainda de serem depositadas nos corpos, que determinadas almas afins haveriam, depois, de se encontrar: estavam, digamos, predestinadas umas às outras; a virem a ligar-se, mais tarde, na vida terrena, por laços de afecto diverso: estes dois iriam amar-se, aqueles outros iriam ser amigos para a vida, outros mais, mestre e aprendiz, ou professor e aluno, ou...
3.
Trabalho importante, mas tão cansativo!
O gnomo de Deus tinha pouco tempo vago ao longo da longa eternidade. Porém, devido a uma curiosidade insana, pouco cristã, semelhante à que viria a perder Adão e Eva, o pequeno espírito aproveitava as suas horas vagas para ler a obra completa de Lucifer, que lhe havia sido recomendada pela alma, ao tempo ainda descarnada, de Pacheco Pereira. A obra completa de Lucifer era tremenda, terrível, temível. Escrevia Lucifer, a dado passo: «Eu não simbolizo o Mal, mas, simplesmente, um ponto de vista diferente. Por que diabo há-de ser tão custoso a Deus admitir que haja outros pontos de vista para além do seu??? Que intolerância!» E, noutro passo: «É fundamental que se entenda que, sob o colorido do Céu, que a todos atrai, existem operários que se dedicam a um trabalho ingrato, monótono, que nunca é compensado a não ser em harmonia celeste: por outras palavras, o único salário dos trabalhadores de Deus, é que Deus não se zangue com eles. A pretexto de que são puros espíritos, não têm necessidades nem carências de ordem alguma, nada mais se lhes paga».
4.
Quanto mais o gnomo lia, nas horas vagas, aquelas páginas incendiárias, carregadas de uma fúria rebelde, mais a sua situação lhe parecia injusta, mais o seu Patrão lhe parecia gozar de um prestígio imerecido, mais lhe apetecia contrariá-lo, defraudá-lo, desobedecer-lhe, desencadear a luta de classes...
5.
Ah, mas tinha medo. Muito medo.
6.
Até que um dia, mergulhado nas suas cogitações revolucionárias, por engano, por puro engano, por mero acidente, destinou para um encontro para toda a vida terrestre duas almas incompatíveis, completamente avessas. Primeiro, ficou aflito. Quis corrigir, contudo era tarde. Prevenir Deus, porém não teve coragem. Mas, curiosamente, percebeu que o erro passava. Que nem Deus, o próprio Deus, o Grande Deus, se apercebia...
7.
Então repetiu, agora deliberadamente, imperdoavelmente, o mesmo tipo de erro. Sempre impunemente. E mais uma vez, e outra, satisfeito consigo mesmo, sentindo correr-lhe nas veias espirituais um sangue de vingança: semeava conflitos, preparava para se encontrarem e juntarem para sempre naturezas opostas, seres que nunca se compreenderiam, laços de ódio e de conflito.
8.
Desse momento em diante, era já muito tarde para reverter o que quer que fosse. Almas fabricadas para se predestinarem, nunca se encontrariam. Em contrapartida, pessoas que só por humor negro poderiam viver juntas, essas, juntavam-se sob o mesmo tecto, completamente iludidas, rapidamente desiludidas, procriando, em constante guerrilha, filhos que, depois, odiavam, que os odiavam...
9.
Algures, noutra parte, impossível de vir a ser encontrada por cada um, o seu par, o seu verdadeiro par, o seu encaixe (o professor que o entusiasmaria, o amigo que o compreenderia...) - vivia uma vida impossível, encaixado, por sua vez, em alguém que odiava e a quem odiava.
10.
Esta é a verdade. Entretanto, por quanto tempo vos parece que se poderia enganar Deus Pai Todo Poderoso? A fraude do gnomo foi descoberta. O gnomo foi lançado no inferno, onde arde juntamente com Marx, Freud, Nietzsche, Darwin e outros.
11.
Deus trabalha, hoje, sozinho. Nunca mais aceitou braços direitos. Tudo indica, porém que, quanto mais não seja por piada ou, então, porque a burocracia se instalou irreversivelmente, continue a baralhar as peças, a promover encontros falsos, impossíveis, e a semear ligações perigosas!
Deus Pai Todo Poderoso tinha um gnomo, seu braço direito, que o ajudava diligentemente. A razão pela qual se não fala, hoje, desse apoio é esta: a mais simples referência a ele foi completa e sucessivamente expurgada, suprimida de todos os textos sagrados. Tomás de Aquino, chamado «O Boi», perguntava-se, a esse propósito, eloquententemente: «Por que haveria Deus, O Todo Poderoso, de carecer de um ajudante? E porquê um anão? Por que não um gigante?» [Summa Theologica, 6-3]
2.
O trabalho do gnomo de Deus era monótono e, francamente, o pobre ser ressentia-se muito disso, dessa sua tarefa que consistia em garantir, antes ainda de serem depositadas nos corpos, que determinadas almas afins haveriam, depois, de se encontrar: estavam, digamos, predestinadas umas às outras; a virem a ligar-se, mais tarde, na vida terrena, por laços de afecto diverso: estes dois iriam amar-se, aqueles outros iriam ser amigos para a vida, outros mais, mestre e aprendiz, ou professor e aluno, ou...
3.
Trabalho importante, mas tão cansativo!
O gnomo de Deus tinha pouco tempo vago ao longo da longa eternidade. Porém, devido a uma curiosidade insana, pouco cristã, semelhante à que viria a perder Adão e Eva, o pequeno espírito aproveitava as suas horas vagas para ler a obra completa de Lucifer, que lhe havia sido recomendada pela alma, ao tempo ainda descarnada, de Pacheco Pereira. A obra completa de Lucifer era tremenda, terrível, temível. Escrevia Lucifer, a dado passo: «Eu não simbolizo o Mal, mas, simplesmente, um ponto de vista diferente. Por que diabo há-de ser tão custoso a Deus admitir que haja outros pontos de vista para além do seu??? Que intolerância!» E, noutro passo: «É fundamental que se entenda que, sob o colorido do Céu, que a todos atrai, existem operários que se dedicam a um trabalho ingrato, monótono, que nunca é compensado a não ser em harmonia celeste: por outras palavras, o único salário dos trabalhadores de Deus, é que Deus não se zangue com eles. A pretexto de que são puros espíritos, não têm necessidades nem carências de ordem alguma, nada mais se lhes paga».
4.
Quanto mais o gnomo lia, nas horas vagas, aquelas páginas incendiárias, carregadas de uma fúria rebelde, mais a sua situação lhe parecia injusta, mais o seu Patrão lhe parecia gozar de um prestígio imerecido, mais lhe apetecia contrariá-lo, defraudá-lo, desobedecer-lhe, desencadear a luta de classes...
5.
Ah, mas tinha medo. Muito medo.
6.
Até que um dia, mergulhado nas suas cogitações revolucionárias, por engano, por puro engano, por mero acidente, destinou para um encontro para toda a vida terrestre duas almas incompatíveis, completamente avessas. Primeiro, ficou aflito. Quis corrigir, contudo era tarde. Prevenir Deus, porém não teve coragem. Mas, curiosamente, percebeu que o erro passava. Que nem Deus, o próprio Deus, o Grande Deus, se apercebia...
7.
Então repetiu, agora deliberadamente, imperdoavelmente, o mesmo tipo de erro. Sempre impunemente. E mais uma vez, e outra, satisfeito consigo mesmo, sentindo correr-lhe nas veias espirituais um sangue de vingança: semeava conflitos, preparava para se encontrarem e juntarem para sempre naturezas opostas, seres que nunca se compreenderiam, laços de ódio e de conflito.
8.
Desse momento em diante, era já muito tarde para reverter o que quer que fosse. Almas fabricadas para se predestinarem, nunca se encontrariam. Em contrapartida, pessoas que só por humor negro poderiam viver juntas, essas, juntavam-se sob o mesmo tecto, completamente iludidas, rapidamente desiludidas, procriando, em constante guerrilha, filhos que, depois, odiavam, que os odiavam...
9.
Algures, noutra parte, impossível de vir a ser encontrada por cada um, o seu par, o seu verdadeiro par, o seu encaixe (o professor que o entusiasmaria, o amigo que o compreenderia...) - vivia uma vida impossível, encaixado, por sua vez, em alguém que odiava e a quem odiava.
10.
Esta é a verdade. Entretanto, por quanto tempo vos parece que se poderia enganar Deus Pai Todo Poderoso? A fraude do gnomo foi descoberta. O gnomo foi lançado no inferno, onde arde juntamente com Marx, Freud, Nietzsche, Darwin e outros.
11.
Deus trabalha, hoje, sozinho. Nunca mais aceitou braços direitos. Tudo indica, porém que, quanto mais não seja por piada ou, então, porque a burocracia se instalou irreversivelmente, continue a baralhar as peças, a promover encontros falsos, impossíveis, e a semear ligações perigosas!
sábado, dezembro 23, 2006
AS BOAS SURPRESAS SÃO SEMPRE POSSÍVEIS
Para mim, que sou um imparável leitor e um constante re-leitor de Eça de Queirós, com quem tenho querido aprender a ironia, o humor, a escrita até, foi um momento saturado de melancolia, talvez de angústia, aquele em que descobri que o esgotara. Isto é: que poderia continuar a relê-lo, que iria certamente relê-lo pela vida fora, mas, morto que estava o escritor, completada que estava a obra, não me tornaria a ser dado o prazer de abrir pela primeira vez mais algum livro da sua autoria.
E era com nostalgia que me recordava de como, há uns quantos anos, quando já pensava tê-lo esgotado (quando senti esse primeiro baque), viria a descobrir, com uma surpresa encantada, que, afinal, nunca tinha lido, vá-se lá saber porquê, um seu texto fundamental: nada mais nada menos do que o delicioso A Capital.
Lembro-me da alegria com que o comprei na fnac, a impaciência com que corri para casa com ele num saco cor-de-laranja, o leve receio da desilusão, o gosto com que me detive na capa trivial, igual a todas as capas da sua obra, a tremente curiosidade com que fui mergulhando, passando as páginas, soltando-me do nervosismo, fruindo, reencontrando o meu Eça de sempre...
Mas, para uma suspresa dessas, não há bis. Era já bem bom que me tivesse caído do céu essa breve suspensão do destino, esse admirável adiamento do fecho. Lido A Capital, agora sim, esgotara realmente o meu querido autor...
Isto, se não mencionar, claro, um outro texto seu, que nunca me interessara, que me tinham oferecido há uns Natais mas eu nunca quisera sequer iniciar: A Tragédia da Rua das Flores, de que tão mal ouvira falar. Que era um rascunho, um borrão, uma coisa menoríssima, com repetições, contradições, personagens cujo nome não se conserva ao longo das páginas, absurdos vários!
Foi só por descargo de consciência, ou em busca de um substituto, mesmo menor, para um vício arreigado, que, por estes dias, me debrucei, contudo, sobre a «Tragédia». E, caramba, não faço mais suspense - lá estava o Eça: sob as debilidades de uma obra que o autor não levara muito a sério, que deixara para trás, ao abandono, enjeitada, ali se erguia e brilhava, e se ergue!, e brilha!, tudo o que nele me entusiasma, me apura o espírito crítico, me afina o sarcasmo.
Ando, pois, a ler, repimpadíssimo, como diria o próprio Eça, A Tragédia da Rua das Flores.
Este post pode servir para uma ou duas coisas: a) aconselhá-lo vivamente a quem tenha passado pela mesma nostalgia de «haver esgotado um autor que já não volta a escrever», a quem, por coincidência, este livro passasse, também, ao lado; b) acrescentar, como nota natalícia, este optimismo moral: às vezes, por impossível que pareça, mesmo o prazer que não voltará de certeza, pode voltar... (e, até, mais do que uma vez!)
Bom Natal!
E era com nostalgia que me recordava de como, há uns quantos anos, quando já pensava tê-lo esgotado (quando senti esse primeiro baque), viria a descobrir, com uma surpresa encantada, que, afinal, nunca tinha lido, vá-se lá saber porquê, um seu texto fundamental: nada mais nada menos do que o delicioso A Capital.
Lembro-me da alegria com que o comprei na fnac, a impaciência com que corri para casa com ele num saco cor-de-laranja, o leve receio da desilusão, o gosto com que me detive na capa trivial, igual a todas as capas da sua obra, a tremente curiosidade com que fui mergulhando, passando as páginas, soltando-me do nervosismo, fruindo, reencontrando o meu Eça de sempre...
Mas, para uma suspresa dessas, não há bis. Era já bem bom que me tivesse caído do céu essa breve suspensão do destino, esse admirável adiamento do fecho. Lido A Capital, agora sim, esgotara realmente o meu querido autor...
Isto, se não mencionar, claro, um outro texto seu, que nunca me interessara, que me tinham oferecido há uns Natais mas eu nunca quisera sequer iniciar: A Tragédia da Rua das Flores, de que tão mal ouvira falar. Que era um rascunho, um borrão, uma coisa menoríssima, com repetições, contradições, personagens cujo nome não se conserva ao longo das páginas, absurdos vários!
Foi só por descargo de consciência, ou em busca de um substituto, mesmo menor, para um vício arreigado, que, por estes dias, me debrucei, contudo, sobre a «Tragédia». E, caramba, não faço mais suspense - lá estava o Eça: sob as debilidades de uma obra que o autor não levara muito a sério, que deixara para trás, ao abandono, enjeitada, ali se erguia e brilhava, e se ergue!, e brilha!, tudo o que nele me entusiasma, me apura o espírito crítico, me afina o sarcasmo.
Ando, pois, a ler, repimpadíssimo, como diria o próprio Eça, A Tragédia da Rua das Flores.
Este post pode servir para uma ou duas coisas: a) aconselhá-lo vivamente a quem tenha passado pela mesma nostalgia de «haver esgotado um autor que já não volta a escrever», a quem, por coincidência, este livro passasse, também, ao lado; b) acrescentar, como nota natalícia, este optimismo moral: às vezes, por impossível que pareça, mesmo o prazer que não voltará de certeza, pode voltar... (e, até, mais do que uma vez!)
Bom Natal!
sexta-feira, dezembro 22, 2006
UM REGULAMENTO INTERNO A PENSAR NAQUILO COM QUE SE COMPRAM OS MELÕES
A minha filha, pobre garota, anda num infantário. Para que não subsistam dúvidas, escrevo-lhe já o nome: Colégio D. João de Castro.
O Colégio D. João de Castro tem um Regulamento Interno, o que é louvável.
Do Regulamento Interno do Colégio D. João de Castro, respigo uns quantos excertos:
«A todas as crianças que permaneçam no Colégio após a hora do fecho, será cobrado o valor de 10 Euros diários, por cada fracção de quinze minutos, de prolongamento.»
«Os Passeios e Colónia têm carácter obrigatório, pelo seu acentuado valor pedagógico [nem nos passava pela cabeça que fosse por outra razão], estão integrados no Plano Anual de Actividades e serão avisados com 8 dias de atecedência, o seu pagamento terá que ser feito na respectiva sala ou secretaria. As crianças que não forem aos Passeios ou Colónia não poderão frequentar o Colégio. A colónia [repentinamente com minúscula] realiza-se na 2ª quinzena de Junho e terá um custo de 75 euros [agora com minúscula, também]»
«Os pagamentos das mensalidades devem ser efectuados na secretaria ou na sala por adiantado, entre os dias 28 e 5 de cada mês. Após o prazo estipulado será cobrada uma taxa diária de 10 euros.»
«Todos os Encarregados de Educação estão obrigados ao pagamento de 12 mensalidades, no valor de 285 euros, quer o aluno frequente ou não o Colégio [como???], com a excepção do berçário [de onde expulsaram rapidamente a minha filha, com catorze meses] que poderá optar pela mensalidade sem alimentação, no valor de 255 euros, sendo o mês de Agosto repartido pelos meses de Outubro, Novembro, Dezembro, no valor de 95 euros.»
«Só serão aceites desistências com aviso prévio de um mês, sem o que terá que pagar a próxima mensalidade. Não serão aceites desistências a partir do mês de Maio inclusivé.»
«A Inscrição/Renovação e Seguro serão pagos e não serão devolvidos em caso algum. O seguro [bruscamente, com minúscula] é pago em Setembro e a renovação em Março, às crianças que não renovam a matrícula, é cobrado oo mês de Julho fraccionado pelos meses de Abril e Maio.»
«Será cobrado trimestralmente o valor de 15 euros para desgaste de material didáctico, nos meses de Outubro, Janeiro, Abril.»
«As desistências dos Passeios e Colónias de férias depois de pagos não serão reemblsados em caso algum [ou seja, mais vale não pagar!]»
«O uso da farda, bibe e chapéu são obrigatórios, de uso diário e custeados pelos pais [que os deverão comprar no «Corte Inglês»]
«Todas as crianças poderão ter uma falta mensal de fardamento [obrigado, obrigado, obrigado!], quando ultrapassada essa falta, poderá a direcção do Colégio vestir a peça em falta e debitá-la no recibo do mês seguinte.»
Nunca vi um Regulamento Interno assim. Nunca nenhum documento me pareceu tão óbvio na intenção exclusiva de planear a mínima forma de fazer dinheiro. Sobretudo, não me lembro de haver lido algum outro conjunto de regras de um estabelecimento de educação de crianças, privado ou público, que assumisse, tão escandalosamente, essa exclusiva inclinação economicista.
Poderão perguntar-me: Por que mantém então o senhor, que está assim tão zangado, a sua filha neste colégio?
Como essa pergunta só poderia ser-me dirigida por parte de quem não tem crianças em infantários, nem faz a menor ideia da luta vã por uma vaga, eu escuso-me de responder. Não iriam acreditar em mim.
O Colégio D. João de Castro tem um Regulamento Interno, o que é louvável.
Do Regulamento Interno do Colégio D. João de Castro, respigo uns quantos excertos:
«A todas as crianças que permaneçam no Colégio após a hora do fecho, será cobrado o valor de 10 Euros diários, por cada fracção de quinze minutos, de prolongamento.»
«Os Passeios e Colónia têm carácter obrigatório, pelo seu acentuado valor pedagógico [nem nos passava pela cabeça que fosse por outra razão], estão integrados no Plano Anual de Actividades e serão avisados com 8 dias de atecedência, o seu pagamento terá que ser feito na respectiva sala ou secretaria. As crianças que não forem aos Passeios ou Colónia não poderão frequentar o Colégio. A colónia [repentinamente com minúscula] realiza-se na 2ª quinzena de Junho e terá um custo de 75 euros [agora com minúscula, também]»
«Os pagamentos das mensalidades devem ser efectuados na secretaria ou na sala por adiantado, entre os dias 28 e 5 de cada mês. Após o prazo estipulado será cobrada uma taxa diária de 10 euros.»
«Todos os Encarregados de Educação estão obrigados ao pagamento de 12 mensalidades, no valor de 285 euros, quer o aluno frequente ou não o Colégio [como???], com a excepção do berçário [de onde expulsaram rapidamente a minha filha, com catorze meses] que poderá optar pela mensalidade sem alimentação, no valor de 255 euros, sendo o mês de Agosto repartido pelos meses de Outubro, Novembro, Dezembro, no valor de 95 euros.»
«Só serão aceites desistências com aviso prévio de um mês, sem o que terá que pagar a próxima mensalidade. Não serão aceites desistências a partir do mês de Maio inclusivé.»
«A Inscrição/Renovação e Seguro serão pagos e não serão devolvidos em caso algum. O seguro [bruscamente, com minúscula] é pago em Setembro e a renovação em Março, às crianças que não renovam a matrícula, é cobrado oo mês de Julho fraccionado pelos meses de Abril e Maio.»
«Será cobrado trimestralmente o valor de 15 euros para desgaste de material didáctico, nos meses de Outubro, Janeiro, Abril.»
«As desistências dos Passeios e Colónias de férias depois de pagos não serão reemblsados em caso algum [ou seja, mais vale não pagar!]»
«O uso da farda, bibe e chapéu são obrigatórios, de uso diário e custeados pelos pais [que os deverão comprar no «Corte Inglês»]
«Todas as crianças poderão ter uma falta mensal de fardamento [obrigado, obrigado, obrigado!], quando ultrapassada essa falta, poderá a direcção do Colégio vestir a peça em falta e debitá-la no recibo do mês seguinte.»
Nunca vi um Regulamento Interno assim. Nunca nenhum documento me pareceu tão óbvio na intenção exclusiva de planear a mínima forma de fazer dinheiro. Sobretudo, não me lembro de haver lido algum outro conjunto de regras de um estabelecimento de educação de crianças, privado ou público, que assumisse, tão escandalosamente, essa exclusiva inclinação economicista.
Poderão perguntar-me: Por que mantém então o senhor, que está assim tão zangado, a sua filha neste colégio?
Como essa pergunta só poderia ser-me dirigida por parte de quem não tem crianças em infantários, nem faz a menor ideia da luta vã por uma vaga, eu escuso-me de responder. Não iriam acreditar em mim.
sábado, dezembro 02, 2006
A CADERNETA ESCOLAR
Existe, até ao 9º ano, uma instituição que deveria garantir a ligação entre os professores e os encarregados de educação, que é a caderneta.
A caderneta, como não poderia deixar de escrever se isto fosse uma redacção virtuosa, é muito útil; tal como a vaca nos dá o leite, a caderneta permite-nos acompanhar de perto o desempenho dos nossos filhos, de forma a que os possamos corrigir e ajudar...
Sejamos sérios: a caderneta funciona, pelo que tenho visto, como uma espécie de bode expiatório, isto é, uma forma de os professores (os mesmos que detestam sentir os pais demasiado próximos, vasculhando e vigiando), poderem, de vez em quando, atirar-lhes com as culpas da sua própria incompetência: «O Manuel não tem feito os trabalhos de casa», «O João anda muito desatento e conversador nas aulas», «O Paulo deverá estudar», ou aquela pérola, pela mão do professor de EVT do meu próprio rebento, «Fulano tem tido atitudes impropriadas nas aulas». Impropriadas, escreve-me o professor do meu filho - ao que me apetecia responder: Bolas! Mesmo tratando-se de um professor de EVT... (no que estaria sendo injusto e preconceituoso).
Sabemos que os pais podem e devem acompanhar os filhos no seu trabalho de casa, como sabemos que nem sempre isso é possível porque, desde pais que não têm habilitação para o efeito até aos que não têm tempo, a situação dos alunos nem sempre pode ser solucionada em casa. Não querem os professores preservar a sua independência? Não se queixam de que os pais não são aptos para os avaliarem? Então porque recorrem tão frequentemente a eles e, aqui é que bate o ponto, tão arrogantemente, como quem lhes diz: Já viu bem a prenda que produziu? Veja lá se consegue fazer qualquer coisa com ele porque nós, professores, aqui, só vamos é depois avaliar...!
De algum modo, a caderneta transformou-se num instrumento de registo de males, de erros e inabilidades do aluno, uma selecção de depreciações. Se pensamos em como é pedagogicamente importante o reforço positivo, espantamo-nos de que tal elemento de ligação casa-escola nunca sirva para apreciar positivamente, para registar progressos e melhorias, parabéns, incentivos.
A caderneta do meu filho é um dos meus pesadelos. Sonho que me persegue. Quando espero pelo miudo à porta da escola e o vejo, com a caderneta meio escondida atrás das costas, lágrimas no rosto, já sei que temos drama.
Por mim, abomino a caderneta.
A caderneta, como não poderia deixar de escrever se isto fosse uma redacção virtuosa, é muito útil; tal como a vaca nos dá o leite, a caderneta permite-nos acompanhar de perto o desempenho dos nossos filhos, de forma a que os possamos corrigir e ajudar...
Sejamos sérios: a caderneta funciona, pelo que tenho visto, como uma espécie de bode expiatório, isto é, uma forma de os professores (os mesmos que detestam sentir os pais demasiado próximos, vasculhando e vigiando), poderem, de vez em quando, atirar-lhes com as culpas da sua própria incompetência: «O Manuel não tem feito os trabalhos de casa», «O João anda muito desatento e conversador nas aulas», «O Paulo deverá estudar», ou aquela pérola, pela mão do professor de EVT do meu próprio rebento, «Fulano tem tido atitudes impropriadas nas aulas». Impropriadas, escreve-me o professor do meu filho - ao que me apetecia responder: Bolas! Mesmo tratando-se de um professor de EVT... (no que estaria sendo injusto e preconceituoso).
Sabemos que os pais podem e devem acompanhar os filhos no seu trabalho de casa, como sabemos que nem sempre isso é possível porque, desde pais que não têm habilitação para o efeito até aos que não têm tempo, a situação dos alunos nem sempre pode ser solucionada em casa. Não querem os professores preservar a sua independência? Não se queixam de que os pais não são aptos para os avaliarem? Então porque recorrem tão frequentemente a eles e, aqui é que bate o ponto, tão arrogantemente, como quem lhes diz: Já viu bem a prenda que produziu? Veja lá se consegue fazer qualquer coisa com ele porque nós, professores, aqui, só vamos é depois avaliar...!
De algum modo, a caderneta transformou-se num instrumento de registo de males, de erros e inabilidades do aluno, uma selecção de depreciações. Se pensamos em como é pedagogicamente importante o reforço positivo, espantamo-nos de que tal elemento de ligação casa-escola nunca sirva para apreciar positivamente, para registar progressos e melhorias, parabéns, incentivos.
A caderneta do meu filho é um dos meus pesadelos. Sonho que me persegue. Quando espero pelo miudo à porta da escola e o vejo, com a caderneta meio escondida atrás das costas, lágrimas no rosto, já sei que temos drama.
Por mim, abomino a caderneta.
sábado, novembro 25, 2006
RESPOSTA A UM COMENTÁRIO QUE JÁ CÁ NÃO ESTÁ
Eu, que não recebia comentários há vários meses e me conformei ou quase, ou que, pelo menos, me desabituei de clamar chorosamente por eles, tinha, ontem ou anteontem, umas linhas em inglês: um tal Unjava ou qualquer coisa assim - não sei, não me lembro (espero que se não tratasse do jovem e promissor escritor angolano Ondjaaki) -, exprimia, tratando-me por «Gil», o seu apreço pelos artigos do meu site, com o qual aprendia muito. Tudo aquilo - o nome, o inglês, o elogio sem mais... - me soaram tão pouco credíveis, tão a «vírus» ou a «vendas», que optei por eliminar esse primeiro comentário - ainda para mais apologético - de há vários meses. Agora, claro, arrependo-me. E choramingo um pouco. E se...?
Não deixo, contudo, de me interrogar; sobretudo porque o referido comentário me era deixado a propósito do post «Leis Kaosticas». Preocupo-me, pois: será que alguém que, em referência directa a uma explicação estúpida para as buzinadelas diante dos semáforos, diz que «aprende muito com o meu blogue», me terá levado a sério? Isto é: mais a sério do que se pretendia? Será que poderá dar-se o caso - imaginemos que é um estudante -, de ele vir a apresentar, num trabalho académico, a teoria de que a mudança do vermelho para o verde é percebida mais rapidamente pelos condutores que se encontram, na bicha, mais longe do lugar imediatamente diante do semáforo? Diacho!
Porque há duas hipóteses: ou este leitor é uma fera do sarcasmo, ou tem estado de facto a «aprender» com os meus textos. E isso faz-me pensar quão maléfico poderá ter sido, por um absurdo efeito perverso, senão por um efeito perverso absurdo, o impacto do kaostico entre leitores mais jovens e particularmente fechados à ironia: não acabarei como Sócrates ou, vá lá, para salvaguardar as distâncias devidas, um Sócrates de trazer por casa?
Ó Undjave, ou lá como te assinas: olha que, no kaostico, raramente se tenta ensinar. O meu negócio é mais o de desensinar. And a good day to you too, my friend.
Não deixo, contudo, de me interrogar; sobretudo porque o referido comentário me era deixado a propósito do post «Leis Kaosticas». Preocupo-me, pois: será que alguém que, em referência directa a uma explicação estúpida para as buzinadelas diante dos semáforos, diz que «aprende muito com o meu blogue», me terá levado a sério? Isto é: mais a sério do que se pretendia? Será que poderá dar-se o caso - imaginemos que é um estudante -, de ele vir a apresentar, num trabalho académico, a teoria de que a mudança do vermelho para o verde é percebida mais rapidamente pelos condutores que se encontram, na bicha, mais longe do lugar imediatamente diante do semáforo? Diacho!
Porque há duas hipóteses: ou este leitor é uma fera do sarcasmo, ou tem estado de facto a «aprender» com os meus textos. E isso faz-me pensar quão maléfico poderá ter sido, por um absurdo efeito perverso, senão por um efeito perverso absurdo, o impacto do kaostico entre leitores mais jovens e particularmente fechados à ironia: não acabarei como Sócrates ou, vá lá, para salvaguardar as distâncias devidas, um Sócrates de trazer por casa?
Ó Undjave, ou lá como te assinas: olha que, no kaostico, raramente se tenta ensinar. O meu negócio é mais o de desensinar. And a good day to you too, my friend.
quarta-feira, novembro 15, 2006
LEIS KAÓSTICAS
Quando se forma uma bicha diante de um semáforo vermelho e, após uma longa espera, a luz muda para verde, esta transição é sempre apercebida, pelos condutores na bicha, tanto mais rapidamente quanto mais longe se encontram do primeiro lugar, mesmo em frente do semáforo.
O primeiro da bicha é sempre o último a perceber que já pode arrancar.
O último da bicha é sempre o primeiro a perceber que o primeiro já deveria ter arrancado há vários segundos.
E assim sucessivamente, numa compreensão cuja rapidez é sempre inversamente proporcional ao lugar que se ocupa na bicha.
Daí, as buzinadelas.
O primeiro da bicha é sempre o último a perceber que já pode arrancar.
O último da bicha é sempre o primeiro a perceber que o primeiro já deveria ter arrancado há vários segundos.
E assim sucessivamente, numa compreensão cuja rapidez é sempre inversamente proporcional ao lugar que se ocupa na bicha.
Daí, as buzinadelas.
segunda-feira, novembro 13, 2006
A ESCOLA E OS MAUS ALUNOS
Sabemos, por pouco marxistas que sejamos, em que medida a «escola pública» é uma instituição de cariz ideológico, que visa formar os jovens, desde cedo, como cidadãos, isto é, de acordo com a visão e as regras que convêm ao poder instituído.
A escola democrática assenta num princípio que é, quanto a mim, o principal equívoco da democracia. A igualdade. Deixem-me dizê-lo: querendo conciliar a ideia da «igualdade» com a necessidade de avaliar e classificar, que se lhe opõe inteiramente, que resultado se obtém? Bom: obtém-se a ideia perniciosa e pateta de que todos os «objectivos» são, por igual, alcançáveis pelos alunos. Como a prática se encarrega de mostrar sistematicamente que isso não sucede, tendem a abrir-se duas hipóteses para explicar por que diabo tais objectivos, teoricamente alcançáveis, raramente são, de facto, alcançados por todos: segundo uma delas, a culpa é dos alunos. A maioria dos professores, como é evidente, prefere esta explicação. Há alunos que não querem, não se esforçam, não se aplicam, não se interessam - ou, na sua formulação mais benigna, menos chocante, politicamente correcta, alguns alunos vivem em condições socio-culturais que os colocam em má posição na corrida: não têm pais formados, ou empenhados em ajudá-los, não têm computador, ou são oriundos de uma cultura que não valoriza a leitura, por exemplo...; segundo a outra hipótese, que é a preferida pelos alunos, pelos pais, pelos sucessivos ministros da Educação, pela sociedade em geral, a culpa é dos professores. De acordo com esta ideia, só há negativas e insucesso porque há maus professores. Que não motivam. Que não usam as estratégias adequadas - qualquer turma e qualquer aluno poderá corresponder desde que tenha o professor capaz de.
Do meu ponto de vista, ambas as hipóteses estão erradas. É o princípio em que assenta a escola democrática, que não pode ser levado a sério. O mito da «igualdade» nunca fez grande sentido: as competências, as capacidades, os talentos, as inteligências até, são muito diferentes nos diversos adolescentes. Pensar sempre que um aluno com «capacidades» que não as «aproveita» o não faz porque «não quer», porque «não trabalha mais», é laborar num erro: as pessoas são formáveis e «transformáveis», sim, mas o tipo de «transformação» que a escola exige, sem levar em consideração a singularidade de cada aluno, sem tentar fazer brilhar aquilo em que cada um é excelente ao mesmo tempo que o faz conviver e familiarizar-se, sem medo nem traumas, com aquilo em que é menos bom, é um funil castrante e esmagador.
Olho para alunos cheios de «capacidades», cujos resultados são, porém, sofríveis, e penso: Ele poderia. Se «estudasse mais», se tivesse «método», se criasse «hábitos de trabalho». (são sempre estes os termos que repetimos nas actas). Raios, por que é que ele não se esforça? Está na mão dele, é esperto, escreve bem...! Mas - e se a sua ausência de método for simplesmente a presença de um outro tipo de método, invisível do ponto de vista dos critérios e dos padrões de eficácia da escola? E se a sua desadequação, a sua inaptidão, a sua, às vezes quase me apetece dizer: estupidez!, não fosse senão a expressão de talentos e aptidões com que a escola não trabalha, nunca trabalhou, não saberia trabalhar?
Podem dizer-me: Pobre homem, ficou-se na mensagem dos Pink Floyd! Que anos setenta! Eu não me importo. E não, não, não penso que a solução fosse a escola relativista, sem regras (para não traumatizar), sem classificações nem exigência. Não, não, não penso que a solução fosse o reino da pura singularidade. Mas não tenho dúvidas de que o aliciante para mim, como professor, será sempre, sem cair na relatividade e na anarquia do indivíduo, sem prescindir de critérios universais nem de uma predominância do colectivo, ter sempre presente que o colectivo não é a soma nem a média de elementos idênticos, que a forma e o talento próprios de cada um são um enriquecimento do grupo, não uma excrecência, nunca um lixo que se deva eliminar.
A ministra, sempre tão preocupada com o insucesso, não seria capaz de entender a minha linguagem. Suspeito que os Pink Floyd, no fundo, também não.
Mas, muitos séculos atrás, Aristóteles abria esta senda.
A escola democrática assenta num princípio que é, quanto a mim, o principal equívoco da democracia. A igualdade. Deixem-me dizê-lo: querendo conciliar a ideia da «igualdade» com a necessidade de avaliar e classificar, que se lhe opõe inteiramente, que resultado se obtém? Bom: obtém-se a ideia perniciosa e pateta de que todos os «objectivos» são, por igual, alcançáveis pelos alunos. Como a prática se encarrega de mostrar sistematicamente que isso não sucede, tendem a abrir-se duas hipóteses para explicar por que diabo tais objectivos, teoricamente alcançáveis, raramente são, de facto, alcançados por todos: segundo uma delas, a culpa é dos alunos. A maioria dos professores, como é evidente, prefere esta explicação. Há alunos que não querem, não se esforçam, não se aplicam, não se interessam - ou, na sua formulação mais benigna, menos chocante, politicamente correcta, alguns alunos vivem em condições socio-culturais que os colocam em má posição na corrida: não têm pais formados, ou empenhados em ajudá-los, não têm computador, ou são oriundos de uma cultura que não valoriza a leitura, por exemplo...; segundo a outra hipótese, que é a preferida pelos alunos, pelos pais, pelos sucessivos ministros da Educação, pela sociedade em geral, a culpa é dos professores. De acordo com esta ideia, só há negativas e insucesso porque há maus professores. Que não motivam. Que não usam as estratégias adequadas - qualquer turma e qualquer aluno poderá corresponder desde que tenha o professor capaz de.
Do meu ponto de vista, ambas as hipóteses estão erradas. É o princípio em que assenta a escola democrática, que não pode ser levado a sério. O mito da «igualdade» nunca fez grande sentido: as competências, as capacidades, os talentos, as inteligências até, são muito diferentes nos diversos adolescentes. Pensar sempre que um aluno com «capacidades» que não as «aproveita» o não faz porque «não quer», porque «não trabalha mais», é laborar num erro: as pessoas são formáveis e «transformáveis», sim, mas o tipo de «transformação» que a escola exige, sem levar em consideração a singularidade de cada aluno, sem tentar fazer brilhar aquilo em que cada um é excelente ao mesmo tempo que o faz conviver e familiarizar-se, sem medo nem traumas, com aquilo em que é menos bom, é um funil castrante e esmagador.
Olho para alunos cheios de «capacidades», cujos resultados são, porém, sofríveis, e penso: Ele poderia. Se «estudasse mais», se tivesse «método», se criasse «hábitos de trabalho». (são sempre estes os termos que repetimos nas actas). Raios, por que é que ele não se esforça? Está na mão dele, é esperto, escreve bem...! Mas - e se a sua ausência de método for simplesmente a presença de um outro tipo de método, invisível do ponto de vista dos critérios e dos padrões de eficácia da escola? E se a sua desadequação, a sua inaptidão, a sua, às vezes quase me apetece dizer: estupidez!, não fosse senão a expressão de talentos e aptidões com que a escola não trabalha, nunca trabalhou, não saberia trabalhar?
Podem dizer-me: Pobre homem, ficou-se na mensagem dos Pink Floyd! Que anos setenta! Eu não me importo. E não, não, não penso que a solução fosse a escola relativista, sem regras (para não traumatizar), sem classificações nem exigência. Não, não, não penso que a solução fosse o reino da pura singularidade. Mas não tenho dúvidas de que o aliciante para mim, como professor, será sempre, sem cair na relatividade e na anarquia do indivíduo, sem prescindir de critérios universais nem de uma predominância do colectivo, ter sempre presente que o colectivo não é a soma nem a média de elementos idênticos, que a forma e o talento próprios de cada um são um enriquecimento do grupo, não uma excrecência, nunca um lixo que se deva eliminar.
A ministra, sempre tão preocupada com o insucesso, não seria capaz de entender a minha linguagem. Suspeito que os Pink Floyd, no fundo, também não.
Mas, muitos séculos atrás, Aristóteles abria esta senda.
quinta-feira, novembro 02, 2006
COMO EMENDAR CLIENTES DE QUE SE NÃO GOSTA
Não é que eu não aprecie comer um bife pouco saudável no «Portugália» - com molho de mostarda, batatas fritas, etc. Aprecio. O que, de facto, não me agrada no «Portugália», é um certo género de empregados que faz questão de mostrar que sabe mais do que o cliente - e nunca se coibe de o educar.
Um exemplo: há precisamente uma semana, estávamos eu e o meu filho sentados a uma mesa do restaurante, e fazíamos o nosso pedido a um senhor muito alto, muito hirto, demasiado sério, pouco dado a brincadeiras. O meu filho, criança irrequieta, activa, quase no limiar da hiperactividade, ia rodando, entretanto, a faca sobre a mesa. Até que o tal empregado hirto, neurótico, não podendo resistir mais, lhe arrancou a faca e a acertou no lugar devido, junto ao prato.
O miudo, espantado mas ainda com uma réstea de energia para esgotar, iniciou, então, uma rotação com o garfo sobre a mesa, rotação essa imediatamente interrompida pelo senhor. Mas como parecesse que o Duarte não se dera ainda por satisfeito, o homem teve, de repente, uma espécie de iluminação; sussurrou, na sua entoação brasileira, «Cê quer hambúrger no pão, né mesmo? Então não vai precisar disso aí»; pegou nos talheres, e levou-os para longe...
O que me irrita é este tipo de superioridade dos empregados de certos restaurantes, não só, aliás, do «Portugália» (embora, aí, pareçam ter frequentado todos uma Acção de Formação sobre como pôr os clientes na linha).
O que me faz reviver uma outra situação, de uma vez em que eu e a minha mulher almoçávamos num lugar aprazível, com uma vista soberba sobre a Baía de Cascais, e a Adelaide achou que o que lhe apetecia, naquele momento, era precisamente um menu infantil.
Ao que a empregada, uma de óculos grossos e rictus de permanente zanga com o mundo, contestou, friamente:
- Peço desculpa, mas não vejo aqui nenhuma criança.
A Adelaide ainda pensou que se tratasse de uma brincadeira. Ainda pensou, coitada, que poderia responder com uma outra brincadeira. E atirou:
- Há uma criança dentro e cada um de nós, não é verdade?
- Ah, pois é - fechou a mulher, sem a sombra de um sorriso -, mas essa criança que há dentro da senhora não tem direito a menu infantil.
Um exemplo: há precisamente uma semana, estávamos eu e o meu filho sentados a uma mesa do restaurante, e fazíamos o nosso pedido a um senhor muito alto, muito hirto, demasiado sério, pouco dado a brincadeiras. O meu filho, criança irrequieta, activa, quase no limiar da hiperactividade, ia rodando, entretanto, a faca sobre a mesa. Até que o tal empregado hirto, neurótico, não podendo resistir mais, lhe arrancou a faca e a acertou no lugar devido, junto ao prato.
O miudo, espantado mas ainda com uma réstea de energia para esgotar, iniciou, então, uma rotação com o garfo sobre a mesa, rotação essa imediatamente interrompida pelo senhor. Mas como parecesse que o Duarte não se dera ainda por satisfeito, o homem teve, de repente, uma espécie de iluminação; sussurrou, na sua entoação brasileira, «Cê quer hambúrger no pão, né mesmo? Então não vai precisar disso aí»; pegou nos talheres, e levou-os para longe...
O que me irrita é este tipo de superioridade dos empregados de certos restaurantes, não só, aliás, do «Portugália» (embora, aí, pareçam ter frequentado todos uma Acção de Formação sobre como pôr os clientes na linha).
O que me faz reviver uma outra situação, de uma vez em que eu e a minha mulher almoçávamos num lugar aprazível, com uma vista soberba sobre a Baía de Cascais, e a Adelaide achou que o que lhe apetecia, naquele momento, era precisamente um menu infantil.
Ao que a empregada, uma de óculos grossos e rictus de permanente zanga com o mundo, contestou, friamente:
- Peço desculpa, mas não vejo aqui nenhuma criança.
A Adelaide ainda pensou que se tratasse de uma brincadeira. Ainda pensou, coitada, que poderia responder com uma outra brincadeira. E atirou:
- Há uma criança dentro e cada um de nós, não é verdade?
- Ah, pois é - fechou a mulher, sem a sombra de um sorriso -, mas essa criança que há dentro da senhora não tem direito a menu infantil.
sábado, outubro 28, 2006
AINDA SOBRE AS AULAS DE SUBSTITUIÇÃO
Não deixa de me espantar que a Ministra de Educação insista tão firmemente em braços-de-ferro em relação a medidas que, ainda que fossem acertadas, nunca iriam longe deste modo, sem a compreensão e a aceitação por parte dos seus alvos.
Sucede que, para mais, a maioria das medidas é errada. O problema não é só o de os professores não gostarem delas, ou se sentirem agredidos por elas - o que não seria um pormenor despiciendo -, mas de estarmos ante graves perversões pedagógicas.
Estou a pensar, concretamente, nas «aulas de substituição» (que afinal, não o são necessariamente mas, apenas, «actividades de acompanhamento»).
A ideia de que os alunos não podem estar fora de uma sala de aula quando falta um professor, que devem ter uma «actividade» qualquer, em que serão «acompanhados» por um outro professor, não satisfaz ninguém. Não satisfaz os alunos, que não aceitam o docente-substituto de bom-grado, nem percebem a lógica dessa substituição e, portanto, o hostilizam. Não satisfaz o professor chamado a passar noventa minutos com uma turma que não conhece, num território que não é o seu, num encontro que só pode ser episódico, que dificilmente terá qualquer tipo de continuidade...
Satisfará os pais dos alunos? Algum pai irá suspirar de alívio por saber que o seu filho fica guardado, leia-se, enjaulado e convenientemente vigiado durante a ausência do professor que faltou? Talvez, talvez. Sabe-se lá.
Mas se eu quiser retornar à minha adolescência e à minha juventude, poderei lembrar que as «borlas», isto é, não haver aulas por falta de um professor, preenchiam uma indispensável função de socialização: correspondiam ao momento privilegiado em que os alunos se juntavam para explorar a escola ou o espaço próximo, jogando à bola, uns, reunindo-se num café, outros, conversando, conhecendo-se, interagindo de um modo mais completo, que os dez ou quinze minutos dos intervalos não permitiam. Havia uma liberdade essencial, tão importante para a nossa formação como os curricula das disciplinas.
Conheço as objecções: os professores faltam muito; deixar os alunos à solta durante demasiado tempo pode ser pernicioso e, sobretudo, não parece «rendível»: seria deixá--los brincar durante um tempo em que deveriam estar aprendendo. (Seria habituá-los a tirar partido do desleixo, em vez de o corrigirem).
Sejamos sérios: esta última objecção é a mais absurda de todas. A mais ridícula. Numa aula de substituição, ou numa actividade de acompanhamento, ou como lhe queiram chamar, não se trata de aprendizagem: trata-se de manter meninos ocupados - ou, quanto mais não seja, fechados. Não se trata de rigor, nem de promover a disciplina e o gosto pelo trabalho - mas de fomentar o azedume, a frustração, o mal-estar. Não se trata de prevenir os perigos da liberdade - mas de gerar os perigos da falta da liberdade, da atrofia, típicos da escola vista como uma grande fábrica. Entra-se por aqui, sai-se por ali. Não há tempos mortos. Existem sempre uma porca ou um parafuso sendo apertados. Tudo rende, tudo rende, tudo rende. Não há «borlas». Não se respira. A ida à casa de banho é cronometrada.
Sucede que, para mais, a maioria das medidas é errada. O problema não é só o de os professores não gostarem delas, ou se sentirem agredidos por elas - o que não seria um pormenor despiciendo -, mas de estarmos ante graves perversões pedagógicas.
Estou a pensar, concretamente, nas «aulas de substituição» (que afinal, não o são necessariamente mas, apenas, «actividades de acompanhamento»).
A ideia de que os alunos não podem estar fora de uma sala de aula quando falta um professor, que devem ter uma «actividade» qualquer, em que serão «acompanhados» por um outro professor, não satisfaz ninguém. Não satisfaz os alunos, que não aceitam o docente-substituto de bom-grado, nem percebem a lógica dessa substituição e, portanto, o hostilizam. Não satisfaz o professor chamado a passar noventa minutos com uma turma que não conhece, num território que não é o seu, num encontro que só pode ser episódico, que dificilmente terá qualquer tipo de continuidade...
Satisfará os pais dos alunos? Algum pai irá suspirar de alívio por saber que o seu filho fica guardado, leia-se, enjaulado e convenientemente vigiado durante a ausência do professor que faltou? Talvez, talvez. Sabe-se lá.
Mas se eu quiser retornar à minha adolescência e à minha juventude, poderei lembrar que as «borlas», isto é, não haver aulas por falta de um professor, preenchiam uma indispensável função de socialização: correspondiam ao momento privilegiado em que os alunos se juntavam para explorar a escola ou o espaço próximo, jogando à bola, uns, reunindo-se num café, outros, conversando, conhecendo-se, interagindo de um modo mais completo, que os dez ou quinze minutos dos intervalos não permitiam. Havia uma liberdade essencial, tão importante para a nossa formação como os curricula das disciplinas.
Conheço as objecções: os professores faltam muito; deixar os alunos à solta durante demasiado tempo pode ser pernicioso e, sobretudo, não parece «rendível»: seria deixá--los brincar durante um tempo em que deveriam estar aprendendo. (Seria habituá-los a tirar partido do desleixo, em vez de o corrigirem).
Sejamos sérios: esta última objecção é a mais absurda de todas. A mais ridícula. Numa aula de substituição, ou numa actividade de acompanhamento, ou como lhe queiram chamar, não se trata de aprendizagem: trata-se de manter meninos ocupados - ou, quanto mais não seja, fechados. Não se trata de rigor, nem de promover a disciplina e o gosto pelo trabalho - mas de fomentar o azedume, a frustração, o mal-estar. Não se trata de prevenir os perigos da liberdade - mas de gerar os perigos da falta da liberdade, da atrofia, típicos da escola vista como uma grande fábrica. Entra-se por aqui, sai-se por ali. Não há tempos mortos. Existem sempre uma porca ou um parafuso sendo apertados. Tudo rende, tudo rende, tudo rende. Não há «borlas». Não se respira. A ida à casa de banho é cronometrada.
segunda-feira, outubro 09, 2006
AFORISMOS OCIOSOS
A beleza nunca se cumpre. É, no melhor dos casos, uma promessa. No pior, uma ameaça.
Há problemas evitáveis: infelizmente, nunca é possível evitá-los.
A fazer alguma coisa, é sempre mais fácil destruir do que construir: eis uma lição sobre a natureza humana que me é dada pela minha filha bebé, que desmonta, sistemática e minuciosamente, as torres da «Lego» que eu vou continuando a montar...
Há problemas evitáveis: infelizmente, nunca é possível evitá-los.
A fazer alguma coisa, é sempre mais fácil destruir do que construir: eis uma lição sobre a natureza humana que me é dada pela minha filha bebé, que desmonta, sistemática e minuciosamente, as torres da «Lego» que eu vou continuando a montar...
quinta-feira, setembro 28, 2006
UMAS FÉRIAS NA PRAIA
Embora eu esteja muito, muito mas muito longe de consentir que me confundam com um fanático da praia, lembro-me de que me deixara convencer (arrastar, enfim) para uma semana de férias numa terreola de pescadores. Por causa, obviamente, da... praia!
Tinham-se unido vários grupos nessa grotesca excursão: a) eu e a minha esposa, casados de fresco e que insistíamos, vá-se lá perceber porquê, em fazer daquela semana uma segunda lua-de-mel; b) os Fonsecas, pais e filha - uma daquelas meninas irritantes, demasiado sérias e sábias, que, quando discutem com os adultos, o fazem esgrimindo argumentos imbatíveis, e que escrevem poesia - e, c) os Guimarães, um pai e uma mãe mais duas crianças - um menino gordo que era uma fonte permanente de agitação e ruído e um menino enfezado e triste, como se o primeiro se alimentasse da energia do outro...
Estvámos todos na mesma pensão, a «Pensão Alegria», repartidos por três quartos. Por que me deixara eu convencer (ou arrastar, enfim) para uma férias desta natureza surrealista, já não recordo (ou fiz por esquecer, para não me odiar). Devia estar apaixonado: tão apaixonado que, se calhar, nem ouvira bem o projecto quando a minha fresca esposa mo expusera. Aceitara sem perceber todos os pormenores ou todas as implicações!
O primeiro dia de praia, começou por ser um dia de chuva imensa. Imparável. Africana.
Tínhamos acordado cedíssimo (porventura para escapar aos Fonseca e aos Guimarães) e arrancado animadamente, ou quase animadamente, em direcção à praia - eu carregando guarda-sol, toalhas, cestos, chapéus e uma espécie de frigorífico portátil, de que, aliás, sempre troçara como o cúmulo da saloíce, quando o via à responsabilidade de outras pessoas... - mas, a meio caminho, a chuvada desabara, inclemente, pérfida, implacável. Africana.
Regressámos precipitadamente à pensão, evitando fazer barulho para não atrairmos a atenção dos Fonseca e dos Guimarães - apesar de os meus chinelos de praia, encharcadíssimos, emitirem um enervante «fuenc, fuenc» -, pousámos a tralha no quarto e preparámo-nos para o almoço, como uma espécie de compensação que nos oferecíamos, apesar de nem ainda onze horas serem...
Na pensão, porém, nesse dia o almoço resumia-se a um prato único: cozido!
Eu não sei se a minha leitora (ou as minhas duas leitoras, ao que parece!) nutrem pelo chamado cozido à portuguesa o mesmo asco que eu. Sim, na altura eu estaria completamente apaixonado - ou não iria passar uma semana na praia numa pensão com a família Fonseca e a família Guimarães em quartos próximos - mas, se podemos dizer que até as mais desenfreadas paixões têm um limite, o meu limite era o cozido à portuguesa.
Fomos, pois, enfrentando mais um pedaço de chuva, até ao restaurante manhoso ali da frente.
Mas ali à frente não era bem tão «ali à frente» como eu julgara. E, sobretudo à chuva, ainda de chinelos e de camiseta florida, o «ali à frente» tornara-se num caminho horrendo, imenso, desabrigado...
Para o restaurante, entrava-se, por um portão verde, para uma espécie de quintal com um alpendre confortável. Era engraçado! Romântico. Delicioso.
Ali estávamos, portanto, já no quintal, protegidos sob o abençoado alpendre, quando, que susto!, reparámos numa figurinha que transpunha, por sua vez, o portão da entrada.
Era a menina Fonseca. A sábia-junior. Lá vinha a chatinha, carregando duas enciclopédias, já muito molhadas, com o cartão das capas a desfazer-se. Vinha compenetrada, sem esboçar um sorriso de cumprimento como, aliás, nunca fazia.
- Os meus pais viram-vos vir em direcção ao restaurante. Querem que eu almoce convosco porque têm de fazer não sei quê...
Eu sei o que os Fonseca queriam fazer - no quarto, num dia de chuva, a sós, sem a menina sábia e chata a atrapalhar.
Conformava-me. Fiz-lhe até uma espécie de vaga e breve carícia nos cabelos molhados.
Nessa altura, do outro lado do portão, a senhora Guimarães, sem chegar a abri-lo, passava o menino gordo por cima e dava-lhe instruções no sentido de se dirigir a nós. O enfezadinho vinha depois.
- Mas quem é que esta gente pensa que nós somos? - sussurrei eu à minha mulher. - Os baby-sitters? Uma agência de dar almoços à criançada?
A Guimarães gritava-nos de lá qualquer coisa que não entendíamos. E ia-se embora.
- Estou pior que estragado! - vociferei.
- Deixa lá - sossegou-me a minha mulher. - O Paulinho e o Frederico (o gordo e o enfezado) já almoçaram, com certeza, comem sempre muito cedo. Vêm só para brincar com a Mariana. Ficam aqui a brincar enquanto nós vamos lá para dentro, não fiques assim...
- Não, não - intrometeu-se rapidamente o Paulinho gordo -, nós não almoçámos não, eu tou cheio de fome...!
Tinham-se unido vários grupos nessa grotesca excursão: a) eu e a minha esposa, casados de fresco e que insistíamos, vá-se lá perceber porquê, em fazer daquela semana uma segunda lua-de-mel; b) os Fonsecas, pais e filha - uma daquelas meninas irritantes, demasiado sérias e sábias, que, quando discutem com os adultos, o fazem esgrimindo argumentos imbatíveis, e que escrevem poesia - e, c) os Guimarães, um pai e uma mãe mais duas crianças - um menino gordo que era uma fonte permanente de agitação e ruído e um menino enfezado e triste, como se o primeiro se alimentasse da energia do outro...
Estvámos todos na mesma pensão, a «Pensão Alegria», repartidos por três quartos. Por que me deixara eu convencer (ou arrastar, enfim) para uma férias desta natureza surrealista, já não recordo (ou fiz por esquecer, para não me odiar). Devia estar apaixonado: tão apaixonado que, se calhar, nem ouvira bem o projecto quando a minha fresca esposa mo expusera. Aceitara sem perceber todos os pormenores ou todas as implicações!
O primeiro dia de praia, começou por ser um dia de chuva imensa. Imparável. Africana.
Tínhamos acordado cedíssimo (porventura para escapar aos Fonseca e aos Guimarães) e arrancado animadamente, ou quase animadamente, em direcção à praia - eu carregando guarda-sol, toalhas, cestos, chapéus e uma espécie de frigorífico portátil, de que, aliás, sempre troçara como o cúmulo da saloíce, quando o via à responsabilidade de outras pessoas... - mas, a meio caminho, a chuvada desabara, inclemente, pérfida, implacável. Africana.
Regressámos precipitadamente à pensão, evitando fazer barulho para não atrairmos a atenção dos Fonseca e dos Guimarães - apesar de os meus chinelos de praia, encharcadíssimos, emitirem um enervante «fuenc, fuenc» -, pousámos a tralha no quarto e preparámo-nos para o almoço, como uma espécie de compensação que nos oferecíamos, apesar de nem ainda onze horas serem...
Na pensão, porém, nesse dia o almoço resumia-se a um prato único: cozido!
Eu não sei se a minha leitora (ou as minhas duas leitoras, ao que parece!) nutrem pelo chamado cozido à portuguesa o mesmo asco que eu. Sim, na altura eu estaria completamente apaixonado - ou não iria passar uma semana na praia numa pensão com a família Fonseca e a família Guimarães em quartos próximos - mas, se podemos dizer que até as mais desenfreadas paixões têm um limite, o meu limite era o cozido à portuguesa.
Fomos, pois, enfrentando mais um pedaço de chuva, até ao restaurante manhoso ali da frente.
Mas ali à frente não era bem tão «ali à frente» como eu julgara. E, sobretudo à chuva, ainda de chinelos e de camiseta florida, o «ali à frente» tornara-se num caminho horrendo, imenso, desabrigado...
Para o restaurante, entrava-se, por um portão verde, para uma espécie de quintal com um alpendre confortável. Era engraçado! Romântico. Delicioso.
Ali estávamos, portanto, já no quintal, protegidos sob o abençoado alpendre, quando, que susto!, reparámos numa figurinha que transpunha, por sua vez, o portão da entrada.
Era a menina Fonseca. A sábia-junior. Lá vinha a chatinha, carregando duas enciclopédias, já muito molhadas, com o cartão das capas a desfazer-se. Vinha compenetrada, sem esboçar um sorriso de cumprimento como, aliás, nunca fazia.
- Os meus pais viram-vos vir em direcção ao restaurante. Querem que eu almoce convosco porque têm de fazer não sei quê...
Eu sei o que os Fonseca queriam fazer - no quarto, num dia de chuva, a sós, sem a menina sábia e chata a atrapalhar.
Conformava-me. Fiz-lhe até uma espécie de vaga e breve carícia nos cabelos molhados.
Nessa altura, do outro lado do portão, a senhora Guimarães, sem chegar a abri-lo, passava o menino gordo por cima e dava-lhe instruções no sentido de se dirigir a nós. O enfezadinho vinha depois.
- Mas quem é que esta gente pensa que nós somos? - sussurrei eu à minha mulher. - Os baby-sitters? Uma agência de dar almoços à criançada?
A Guimarães gritava-nos de lá qualquer coisa que não entendíamos. E ia-se embora.
- Estou pior que estragado! - vociferei.
- Deixa lá - sossegou-me a minha mulher. - O Paulinho e o Frederico (o gordo e o enfezado) já almoçaram, com certeza, comem sempre muito cedo. Vêm só para brincar com a Mariana. Ficam aqui a brincar enquanto nós vamos lá para dentro, não fiques assim...
- Não, não - intrometeu-se rapidamente o Paulinho gordo -, nós não almoçámos não, eu tou cheio de fome...!
sexta-feira, setembro 01, 2006
ANJO GORDO
Azael sentia-se infeliz - o que é um sentimento humano.
E com um princípio de ressentimento azul, que tenderia a provocar chispas de raiva avermelhada e, mais tarde, poderia abrir janelas a um ódio púrpura - tudo sentimentos humanos que, quando penentram em almas angélicas, as alimentam de uma força que nem os homens terão alguma vez experimentado.
Azael, o anjo, não podia compreender por que Deus o teria concebido como um «anjo gordo». Os anjos são puro espírito. Não têm carne. Os seus corpos espirituais, etéreos, são de uma elegância perfeita, luminosa, leve, no limiar da translucidez. Que sentido faz um anjo gordo!? Um anjo gordo para quê??? Que diabo pensava Deus - passe a expressão -, que tinha Deus na sua mente omnisciente quando o concebera e criara assim?
Por um estranho e perverso efeito, apesar de ser todo espírito, como os demais, essa sua espiritualidade gorda assumia algumas das características da gordura física: lentidão, cansaço, vergonha de si.
Sentou-se sobre uma pedra.
Gostaria de ver Deus. Não de o enfrentar - não teria coragem para se rebelar, bastava a trágica história de Lúcifer para o dissuadir. Mas perguntar-lhe. Porquê, Meu Deus? Que querias tu provar? Para que te sirvo assim?
Viu passar um menino gordo. E, por um instante, pareceu-lhe que compreendia a sua missão, a sua qualquer coisa. Não? Por um instante pensou que talvez se tratasse de o aproximar de um certo grupo de seres humanos - complexados, doentes, tristes - e de lhes mostrar que até entre os anjos pode haver gordos, que o aspecto não tem qualquer importância, que...
Em suma, talvez Deus o tivesse criado por uma intenção «politicamente correcta».
E pôs-se de pé. Diante do menino atónito. Em toda a extensão das suas asas e da sua gordura descomunal.
E sorriu ao menino. Luminosamente.
E a tristeza passava-lhe, agora que se imbuía da sua missão.
Afinal.
Até que o menino, o próprio menino, ele próprio gordo, exclamou, de dedo humilhantemente apontado:
- Ena pá! Um gordo com asas!
E, então, a irremediável tristeza de Azael regressou por inteiro.
E o anjo gordo sentou-se de novo sobre a pedra.
E suspirou.
E com um princípio de ressentimento azul, que tenderia a provocar chispas de raiva avermelhada e, mais tarde, poderia abrir janelas a um ódio púrpura - tudo sentimentos humanos que, quando penentram em almas angélicas, as alimentam de uma força que nem os homens terão alguma vez experimentado.
Azael, o anjo, não podia compreender por que Deus o teria concebido como um «anjo gordo». Os anjos são puro espírito. Não têm carne. Os seus corpos espirituais, etéreos, são de uma elegância perfeita, luminosa, leve, no limiar da translucidez. Que sentido faz um anjo gordo!? Um anjo gordo para quê??? Que diabo pensava Deus - passe a expressão -, que tinha Deus na sua mente omnisciente quando o concebera e criara assim?
Por um estranho e perverso efeito, apesar de ser todo espírito, como os demais, essa sua espiritualidade gorda assumia algumas das características da gordura física: lentidão, cansaço, vergonha de si.
Sentou-se sobre uma pedra.
Gostaria de ver Deus. Não de o enfrentar - não teria coragem para se rebelar, bastava a trágica história de Lúcifer para o dissuadir. Mas perguntar-lhe. Porquê, Meu Deus? Que querias tu provar? Para que te sirvo assim?
Viu passar um menino gordo. E, por um instante, pareceu-lhe que compreendia a sua missão, a sua qualquer coisa. Não? Por um instante pensou que talvez se tratasse de o aproximar de um certo grupo de seres humanos - complexados, doentes, tristes - e de lhes mostrar que até entre os anjos pode haver gordos, que o aspecto não tem qualquer importância, que...
Em suma, talvez Deus o tivesse criado por uma intenção «politicamente correcta».
E pôs-se de pé. Diante do menino atónito. Em toda a extensão das suas asas e da sua gordura descomunal.
E sorriu ao menino. Luminosamente.
E a tristeza passava-lhe, agora que se imbuía da sua missão.
Afinal.
Até que o menino, o próprio menino, ele próprio gordo, exclamou, de dedo humilhantemente apontado:
- Ena pá! Um gordo com asas!
E, então, a irremediável tristeza de Azael regressou por inteiro.
E o anjo gordo sentou-se de novo sobre a pedra.
E suspirou.
quarta-feira, agosto 30, 2006
HISTÓRIA BREVE DOS VÍCIOS DE SIMÕES
O Simões, coitado, era, aos trinta anos de idade, o que se chama um virgem: mas virgem de corpo e alma, e virgem em relação a praticamente tudo o que prenuncie prazer. O Simões não tinha vícios: não fumava, não bebia, não praticava sexo; não tomava café, porque temia as palpitações e as insónias; não sabia conduzir nem sabia nadar; nunca andara de bicileta; de moto, muito menos; não amava, nunca se apaixonara; é certo que trabalhava muito: o trabalho equivalia, no Simões, a quase um vício. Era, talvez, o que disso mais se aproximava.
O ponto é que nem aos trinta, nem aos quarenta, talvez em idade nenhuma se tem a vida completamente fechada, inteiramente imune a surpresas.
E, como a prová-lo, um dia, o Simões apaixonou-se.
Ou seja: dera-lhe uma espécie de explosão epilética em face de uma mulher de cinquenta e três anos mas com aspecto de menina, aspecto esse mantido, aliás, pelo aparelho «teen-ager» que usava nos dentes e pelas camisolinhas que lhe revelavam um belo umbigo num estômago que ela se esforçava por encolher.
A mulher, Alda Bobone, tinha rugas no rosto - que o Simões, de resto, adorava: eram as rugas mais belas que ele já vira, em todos os pontos certos, num subtil jogo de ramificações, numa maravilhosa teia que lhe fazia lembrar relâmpagos riscando o céu numa noite de trovoada.
Como o Simões nunca estivera antes apaixonado, tornou-se demasiado óbvio: suspirava, revirava os olhos, palidejava quando a via. Punha um ar de sofrimento, como se estivesse com os sapatos apertados ou dor de dentes. Não dormia. O rosto ia-se-lhe escavando até se fixar nos contornos dramáticos da caveira. Não comia. As calças principiavam a cair-lhe, apertava o cinto, tornava-se de uma magreza neo-Gótica.
Alda Bobone percebeu rapidamente que aquele jovem com ar vagamente de poeta começara a desfazer-se por causa dela. E comportou-se como se lhe tivesse saído a taluda, e com razão: aos cinquenta e três anos, ainda despertava paixões...!
Nunca os seus requebros foram tão ostensivos, os seus decotes tão profundos, o aparelho nos dentes tão faiscante, nunca o seu modo de se sentar, cruzando a perna, destapando a coxa, fora tão sensual.
Ao fim de umas curtas semanas durante as quais ensaiou todos os passos da sua dança de sedução, e não querendo prolongar essa fase, não fosse o jovem, cada dia mais aflito, agonizar de vez, dona Alda passou ao ataque. Num só dia apanhou-o a sós, beijou-o como se lhe sugasse a alma, desencadeando-lhe um dos seus piores ataques de asma, e levou-o dali para a cama, ainda com a respiração descontrolada.
Nesse único dia, Simões somou, ao tenebroso vício da paixão, dois novos vícios: em primeiro lugar, o sexo. Não precisou de se esforçar, porque dona Alda fazia tudo praticamente sozinha: ela tratou dos preliminares, pôs-se-lhe debaixo, pôs-se-lhe por cima, comprimindo-o na sua celulite, gemeu, arfou, gritou. Ora bem. Em segundo lugar, o tabaco. Porque, inexperiente como era, virgem como fora sempre, não tendo do sexo senão as imagens e os clichês dos filmes, Simões julgava que fazia parte do próprio acto concluí-lo com umas passas num cigarro, o corpo nu enrolado num lençol, enquanto lançava, para o ar, sopros de fumo e algumas reflexões vagamente filosóficas.
Dona Alda era incansável. Queria mais, queria sempre, todos os dias, se não a todas as horas. E o Simões, que no início da paixão parecera rejubilar, ganhar novas cores e uma nova vitalidade, depressa retomou a marcha para a decadência física, para a magreza, para o ar tenebroso e neo-Gótico.
E, principalmente, fumava muito. Fumava de todas as vezes que fazia sexo. Entretanto, descobriu que dona Alda era casada com um certo engenheiro Bobone, que o procurava agora por todo o lado e lhe fazia esperas, com uma machadinha escondida no bolso. Simões deu, pois, em fugir. E em fumar cada vez mais. Fugia do marido dela, obviamente, mas também da mulher do marido. Já não fumava meramente como um ritual pós-coito, fumava, agora, para relembrar o sexo de que fugia, mas também para tentar esquecê-lo, ou simplesmente para se acalmar, ou fosse pelo que fosse.
A sua asma não melhorou. Pelo contrário. Quando não estava com um cigarro nos lábios, estava com uma bomba enfiada na boca, aspirando com um estertor moribundo.
Com trinta e dois anos, Simões morreu de complicações que eu, que não sou médico, não saberia descrever.
Várias hipóteses de moral seriam retiráveis deste conto, algumas talhadas para as campanhas anti-tabagistas.
A única que me apetece extrair, com a dor e a melancolia de quem tem de extrair um dente, é esta: Mais vale uma vida breve por causa de um vício, do que uma vida demorada sem vício nenhum.
O ponto é que nem aos trinta, nem aos quarenta, talvez em idade nenhuma se tem a vida completamente fechada, inteiramente imune a surpresas.
E, como a prová-lo, um dia, o Simões apaixonou-se.
Ou seja: dera-lhe uma espécie de explosão epilética em face de uma mulher de cinquenta e três anos mas com aspecto de menina, aspecto esse mantido, aliás, pelo aparelho «teen-ager» que usava nos dentes e pelas camisolinhas que lhe revelavam um belo umbigo num estômago que ela se esforçava por encolher.
A mulher, Alda Bobone, tinha rugas no rosto - que o Simões, de resto, adorava: eram as rugas mais belas que ele já vira, em todos os pontos certos, num subtil jogo de ramificações, numa maravilhosa teia que lhe fazia lembrar relâmpagos riscando o céu numa noite de trovoada.
Como o Simões nunca estivera antes apaixonado, tornou-se demasiado óbvio: suspirava, revirava os olhos, palidejava quando a via. Punha um ar de sofrimento, como se estivesse com os sapatos apertados ou dor de dentes. Não dormia. O rosto ia-se-lhe escavando até se fixar nos contornos dramáticos da caveira. Não comia. As calças principiavam a cair-lhe, apertava o cinto, tornava-se de uma magreza neo-Gótica.
Alda Bobone percebeu rapidamente que aquele jovem com ar vagamente de poeta começara a desfazer-se por causa dela. E comportou-se como se lhe tivesse saído a taluda, e com razão: aos cinquenta e três anos, ainda despertava paixões...!
Nunca os seus requebros foram tão ostensivos, os seus decotes tão profundos, o aparelho nos dentes tão faiscante, nunca o seu modo de se sentar, cruzando a perna, destapando a coxa, fora tão sensual.
Ao fim de umas curtas semanas durante as quais ensaiou todos os passos da sua dança de sedução, e não querendo prolongar essa fase, não fosse o jovem, cada dia mais aflito, agonizar de vez, dona Alda passou ao ataque. Num só dia apanhou-o a sós, beijou-o como se lhe sugasse a alma, desencadeando-lhe um dos seus piores ataques de asma, e levou-o dali para a cama, ainda com a respiração descontrolada.
Nesse único dia, Simões somou, ao tenebroso vício da paixão, dois novos vícios: em primeiro lugar, o sexo. Não precisou de se esforçar, porque dona Alda fazia tudo praticamente sozinha: ela tratou dos preliminares, pôs-se-lhe debaixo, pôs-se-lhe por cima, comprimindo-o na sua celulite, gemeu, arfou, gritou. Ora bem. Em segundo lugar, o tabaco. Porque, inexperiente como era, virgem como fora sempre, não tendo do sexo senão as imagens e os clichês dos filmes, Simões julgava que fazia parte do próprio acto concluí-lo com umas passas num cigarro, o corpo nu enrolado num lençol, enquanto lançava, para o ar, sopros de fumo e algumas reflexões vagamente filosóficas.
Dona Alda era incansável. Queria mais, queria sempre, todos os dias, se não a todas as horas. E o Simões, que no início da paixão parecera rejubilar, ganhar novas cores e uma nova vitalidade, depressa retomou a marcha para a decadência física, para a magreza, para o ar tenebroso e neo-Gótico.
E, principalmente, fumava muito. Fumava de todas as vezes que fazia sexo. Entretanto, descobriu que dona Alda era casada com um certo engenheiro Bobone, que o procurava agora por todo o lado e lhe fazia esperas, com uma machadinha escondida no bolso. Simões deu, pois, em fugir. E em fumar cada vez mais. Fugia do marido dela, obviamente, mas também da mulher do marido. Já não fumava meramente como um ritual pós-coito, fumava, agora, para relembrar o sexo de que fugia, mas também para tentar esquecê-lo, ou simplesmente para se acalmar, ou fosse pelo que fosse.
A sua asma não melhorou. Pelo contrário. Quando não estava com um cigarro nos lábios, estava com uma bomba enfiada na boca, aspirando com um estertor moribundo.
Com trinta e dois anos, Simões morreu de complicações que eu, que não sou médico, não saberia descrever.
Várias hipóteses de moral seriam retiráveis deste conto, algumas talhadas para as campanhas anti-tabagistas.
A única que me apetece extrair, com a dor e a melancolia de quem tem de extrair um dente, é esta: Mais vale uma vida breve por causa de um vício, do que uma vida demorada sem vício nenhum.
terça-feira, agosto 22, 2006
O MITO DO OBSERVADOR INVISÍVEL
Nós, que nos ufanamos de ser do género «observador», gente perspicaz a quem nada falha, meticulosos sugadoiros do mundo em todos os seus aspectos, temos um pouco a noção (ou a mania) de que nunca somos observados: estamos do outro lado, como se fossemos de cristal; a nossa condição de pessoas que tudo vêem torna-nos, de certo modo, invisíveis.
Gosto de observar. Como aspirante a romancista (eterno e eternamente impublicado aspirante a romancista) tomo nota mental dos gestos e dos actos dos outros, sento-me numa mesa de café, meio encoberto por um jornal, oiço as conversas que me não dizem respeito, atento nas discussões, imagino histórias com que visto as pessoas que me passam ao lado, tornando-as personagens de futuros romances.
Observo, no comboio, os meninos prepotentes que fazem o que querem dos avós impotentes e indefesos: «Quero ir à janela! Com a janela aberta!», «Não, Quinzinho, não, não, é muito perigoso, olha lá, e se passa um comboio em sentido contrário...?», «Mas eu quero, eu quero, eu quero!!!», «Pronto, vá lá, só um bocadinho...»
Sei histórias dos carteiros, da porteira, da mulher-a-dias, do senhor que vende jornais no quiosque, dos vizinhos, dos bombeiros. De tentativas de suicídio ou de murros imprevistos, de cenas de ciúme e ódio; assisti por um triz à zanga da Elsa Raposo, à sua saída da casa do ex-namorado, cheia de malas, provocando um ajuntamento.
Tenho, na minha varanda, um posto privilegiado. Ao mínimo ruído de altercação, à noite, ao mínimo sinal de briga entre bêbedos, ao travar de uma ambulância que vem buscar alguém ao prédio da frente, assomo logo ao meu posto, seguro da minha invisibilidade, a coberto da escuridão.
Uma destas noites, precisamente, assomei atraído pelos gritos de uma velha prostituta que batia desapiedadamente num velho; partiu-lhe os óculos, partia-o todo, aos gritos de «Posso ser puta, mas pelo menos não sou tua mãe, que era pior!»
Na manhã seguinte, quando, por acaso, me cruzei com a mulher - eu a entrar para um café de onde ela saía -, rosnou-me, com uma agressividade que nunca lhe vira.
E já ela ia a dobrar a esquina, ainda lhe ouvi, obviamente para mim:
«E tu vais espreitar a tua prima lá da tua varanda, ó cabrão!»
Nunca me tinha falado antes. Fala-me, agora, sempre: e sempre com os mesmos modos desabridos, de quem me odeia, de quem me não perdoa o que eu vi nessa noite. Ela é que não perdoa o que eu vi, percebem? Porque ela sabe que a vi. Ela viu que eu vira tudo...
Foi, também, o fim de um mito: o do homem de cristal - o do observador invisível.
Gosto de observar. Como aspirante a romancista (eterno e eternamente impublicado aspirante a romancista) tomo nota mental dos gestos e dos actos dos outros, sento-me numa mesa de café, meio encoberto por um jornal, oiço as conversas que me não dizem respeito, atento nas discussões, imagino histórias com que visto as pessoas que me passam ao lado, tornando-as personagens de futuros romances.
Observo, no comboio, os meninos prepotentes que fazem o que querem dos avós impotentes e indefesos: «Quero ir à janela! Com a janela aberta!», «Não, Quinzinho, não, não, é muito perigoso, olha lá, e se passa um comboio em sentido contrário...?», «Mas eu quero, eu quero, eu quero!!!», «Pronto, vá lá, só um bocadinho...»
Sei histórias dos carteiros, da porteira, da mulher-a-dias, do senhor que vende jornais no quiosque, dos vizinhos, dos bombeiros. De tentativas de suicídio ou de murros imprevistos, de cenas de ciúme e ódio; assisti por um triz à zanga da Elsa Raposo, à sua saída da casa do ex-namorado, cheia de malas, provocando um ajuntamento.
Tenho, na minha varanda, um posto privilegiado. Ao mínimo ruído de altercação, à noite, ao mínimo sinal de briga entre bêbedos, ao travar de uma ambulância que vem buscar alguém ao prédio da frente, assomo logo ao meu posto, seguro da minha invisibilidade, a coberto da escuridão.
Uma destas noites, precisamente, assomei atraído pelos gritos de uma velha prostituta que batia desapiedadamente num velho; partiu-lhe os óculos, partia-o todo, aos gritos de «Posso ser puta, mas pelo menos não sou tua mãe, que era pior!»
Na manhã seguinte, quando, por acaso, me cruzei com a mulher - eu a entrar para um café de onde ela saía -, rosnou-me, com uma agressividade que nunca lhe vira.
E já ela ia a dobrar a esquina, ainda lhe ouvi, obviamente para mim:
«E tu vais espreitar a tua prima lá da tua varanda, ó cabrão!»
Nunca me tinha falado antes. Fala-me, agora, sempre: e sempre com os mesmos modos desabridos, de quem me odeia, de quem me não perdoa o que eu vi nessa noite. Ela é que não perdoa o que eu vi, percebem? Porque ela sabe que a vi. Ela viu que eu vira tudo...
Foi, também, o fim de um mito: o do homem de cristal - o do observador invisível.
domingo, agosto 20, 2006
LITERATURA E MARKETING
Não me digam que a literatura não está tão sujeita ao marketing como todos os outros objectos compráveis. E não me digam que, no caso da literatura, não é isso que conta, não é isso o que mais importa...
E é realmente de literatura que falo, não simplesmente de livros, nem de escrita pimba, nem de escrita pop, nem de escrita light.
Se, por exemplo, não tivesse começado a ler «Em Busca do Tempo Perdido» já completamente rendido ao efeito mítico dessa obra imensa, escrita por um homossexual histérico e asmático (pode parecer insultuoso mas, se relerem, vão perceber que nenhum dos termos empregues tem necessariamente uma carga pejorativa), tocada por um halo que me impregnara antecipadamente, isto é, antes de o ter principiado a ler, se não me tivessem já criado essa espécie de fantasia em torno do autor, da personagem, da obra, da memória e do papel da memória, se o meu avô não me tivesse já descrito, abundante e deliciosamente, o célebre episódio da «madalena», eu teria ido ao encontro da obra, tê-la-ia deixado vir ao meu encontro, tê-la-ia deixado tornar-se, paulatinamente (e já tarde) a obra da minha vida?
Faço estas considerações a propósito de um conto longo (uma novela, no fundo) que Vasco Graça Moura escreveu propositadamente para ser comprado em conjunto com um certo número da revista «Visão» (por mais três euros e tal).
Pensam que se não se tratasse de Vasco Graça Moura, para já, esse intelectual encartado do nosso país, esse tradutor reconhecido e premiado, esse poeta cantado e recantado (e requintado... e, já agora, requentado...!), de quem apreciei anteriores escritos, o livro me teria sorrido?
Pensam que se não fosse aquela capa - em que, numa fotografia, Vasco Graça Moura, com um polo Lacoste azul celeste, nos sorri, diante da sua magnífica biblioteca, repousando o cotovelo sobre o degrau superior de um escadote para alcançar os livros das prateleiras superiores - eu me teria detido sobre o objecto? Pensam que uma fotografia do Vasco Graça Moura a lamber um sorvete, ou a acenar-nos, ou a passear um cão, ou a correr para um autocarro, teriam surtido o mesmo efeito, esse efeito quase sagrado da proximidade dos livros, do seu escritório (que imaginamos mais do que realmente vemos), do seu trabalho intelectual (que invejamos mais do que realmente admiramos)?
Finalmente, pensam que se o título não fosse «Duas mulheres em Novembro», evocando de imediato um romance do narrador com duas senhoras, em pleno Inverno, um pouco à maneira de David Mourão-Ferreira, eu teria tido tanta pressa de o comprar?
Mas o marketing é sempre ilusório.
Para que conste, não há qualquer triângulo amoroso: as «duas mulheres» do título são, simplesmente, duas mulheres que se encontram (em Novembro, obviamente) no consultório de um médico que não há modo de as atender, e conversam ao longo das páginas mais chatas que já li em dias de minha vida.
O Graça Moura é uma seca. É um pim pam pum.
E a biblioteca da fotografia, se calhar, é um logro. Como este livro. Pft!
E é realmente de literatura que falo, não simplesmente de livros, nem de escrita pimba, nem de escrita pop, nem de escrita light.
Se, por exemplo, não tivesse começado a ler «Em Busca do Tempo Perdido» já completamente rendido ao efeito mítico dessa obra imensa, escrita por um homossexual histérico e asmático (pode parecer insultuoso mas, se relerem, vão perceber que nenhum dos termos empregues tem necessariamente uma carga pejorativa), tocada por um halo que me impregnara antecipadamente, isto é, antes de o ter principiado a ler, se não me tivessem já criado essa espécie de fantasia em torno do autor, da personagem, da obra, da memória e do papel da memória, se o meu avô não me tivesse já descrito, abundante e deliciosamente, o célebre episódio da «madalena», eu teria ido ao encontro da obra, tê-la-ia deixado vir ao meu encontro, tê-la-ia deixado tornar-se, paulatinamente (e já tarde) a obra da minha vida?
Faço estas considerações a propósito de um conto longo (uma novela, no fundo) que Vasco Graça Moura escreveu propositadamente para ser comprado em conjunto com um certo número da revista «Visão» (por mais três euros e tal).
Pensam que se não se tratasse de Vasco Graça Moura, para já, esse intelectual encartado do nosso país, esse tradutor reconhecido e premiado, esse poeta cantado e recantado (e requintado... e, já agora, requentado...!), de quem apreciei anteriores escritos, o livro me teria sorrido?
Pensam que se não fosse aquela capa - em que, numa fotografia, Vasco Graça Moura, com um polo Lacoste azul celeste, nos sorri, diante da sua magnífica biblioteca, repousando o cotovelo sobre o degrau superior de um escadote para alcançar os livros das prateleiras superiores - eu me teria detido sobre o objecto? Pensam que uma fotografia do Vasco Graça Moura a lamber um sorvete, ou a acenar-nos, ou a passear um cão, ou a correr para um autocarro, teriam surtido o mesmo efeito, esse efeito quase sagrado da proximidade dos livros, do seu escritório (que imaginamos mais do que realmente vemos), do seu trabalho intelectual (que invejamos mais do que realmente admiramos)?
Finalmente, pensam que se o título não fosse «Duas mulheres em Novembro», evocando de imediato um romance do narrador com duas senhoras, em pleno Inverno, um pouco à maneira de David Mourão-Ferreira, eu teria tido tanta pressa de o comprar?
Mas o marketing é sempre ilusório.
Para que conste, não há qualquer triângulo amoroso: as «duas mulheres» do título são, simplesmente, duas mulheres que se encontram (em Novembro, obviamente) no consultório de um médico que não há modo de as atender, e conversam ao longo das páginas mais chatas que já li em dias de minha vida.
O Graça Moura é uma seca. É um pim pam pum.
E a biblioteca da fotografia, se calhar, é um logro. Como este livro. Pft!
sábado, agosto 19, 2006
DIÁLOGOS IMPRESSIONANTES
MINHA MÃE - Estás maluco? Já estou arrependida de te ter contado esta história.
EU (amuado) - E porquê?
MINHA MÃE - Porque dizes que vais pôr isso no teu blogue! Com nomes e tudo!
EU (digníssimo) - E vou! E vou mesmo! O meu blogue é um lugar de denúncia das falsas virtudes, etc. etc. Ninguém me cala...
MINHA MÃE - Pelo amor de Deus, não faças isso, ao menos generaliza, diz que «há pessoas que fazem isto e fazem aquilo...» Não digas que «Fulano faz»...
EU (cada vez mais emocionado com o poder do meu blogue) - Ná, ná, ná! Não estou à venda. Vai tudo escarrapachado para lá. E é já. O meu blogue é um lugar livre e independente... (Depois de uma hesitação)... até porque ninguém o lê...!
EU (amuado) - E porquê?
MINHA MÃE - Porque dizes que vais pôr isso no teu blogue! Com nomes e tudo!
EU (digníssimo) - E vou! E vou mesmo! O meu blogue é um lugar de denúncia das falsas virtudes, etc. etc. Ninguém me cala...
MINHA MÃE - Pelo amor de Deus, não faças isso, ao menos generaliza, diz que «há pessoas que fazem isto e fazem aquilo...» Não digas que «Fulano faz»...
EU (cada vez mais emocionado com o poder do meu blogue) - Ná, ná, ná! Não estou à venda. Vai tudo escarrapachado para lá. E é já. O meu blogue é um lugar livre e independente... (Depois de uma hesitação)... até porque ninguém o lê...!
sexta-feira, agosto 11, 2006
PAIS, FILHOS & PSICÓLOGOS
Educar uma criança é difícil, mas mais fácil do que parece.
A primeira coisa a fazer, é não ligar aos psicólogos. Sobretudo, em Portugal, a pessoas como o Daniel Sampaio ou o Eduardo Sá. Ou o Pedro Strecht - em suma, aqueles que pontificam um pouco por toda a parte. Não é que nos enganem, coitados: eles não enganam ninguém. Basta ouvi-los durante cinco pacientes minutos para se perceber de imediato que não percebem nada destas coisas, que estão para ali a alinhar os mesmos chavões em que se revelam os perigos de uma teoria sem prática.
O que a prática me tem revelado, a mim que não sou psicólogo, é que não existem pais nem famílias que não sejam neuróticos; mais: que, na maior parte dos casos, quanto mais «politicamente correctos», quanto mais «consciencializados», quanto mais atentos e preocupados em agir by the book, isto é, de acordo com os manuais que ensinam os pais a ser pais, mais neuróticos são. (É preciso ser-se valentemente neurótico para se achar, por exemplo, que é possível viver a paternidade segundo os conselhos do senhor Daniel Sampaio).
Não quero que pensem que tenho a mania, ou que julgo saber do assunto mais do quem quer que seja; não quero que pensem que não cometo erros, nem sequer que penso que os não cometo. Cometo inúmeros. Alguns, incorrigíveis: estão-me na massa, na estrutura, no ADN, no que quiserem. Não tenho teorias, ou melhor, vou tentando compreender o que faço, tirando as minhas lições, procurando melhorar. É possível que esteja deformando e estragando o meu filho, que o esteja traumatizando, que lhe vá criando complexos e vícios vários. (Mas também não me preocupo mais do que a minha análise me convide a fazê-lo, porque verifiquei que a maioria dos «complexos» e dos «vícios» são uma invenção que tem rendido a uma certa psicologia...)
A minha aposta consiste simplesmente em confiar que tenho algumas coisas boas, que identifico e tento transmitir, tentando multiplicar as situações que o permitam; em reconhecer que tenho diversos e graves defeitos, cujo impacto menorizo quando posso; e, sobretudo, em esperar que a nossa relação viva e cresça, com bens e males, capaz de cuidar de si mesma, de constituir um rumo e um ritmo próprios, de acreditar em si. Isto não é uma receita. Não creio em receitas. É uma maneira de dizer que os filhos são resistentes: na maior parte dos casos, aprendem a superar o mal que lhes possamos fazer. Não é que isto me de-responsabilize. Nos de-responsabilize. É que se não acreditar nisto, mais vale não ter filhos - ou, então, pedir ao senhor Daniel Sampaio que os eduque por mim.
A primeira coisa a fazer, é não ligar aos psicólogos. Sobretudo, em Portugal, a pessoas como o Daniel Sampaio ou o Eduardo Sá. Ou o Pedro Strecht - em suma, aqueles que pontificam um pouco por toda a parte. Não é que nos enganem, coitados: eles não enganam ninguém. Basta ouvi-los durante cinco pacientes minutos para se perceber de imediato que não percebem nada destas coisas, que estão para ali a alinhar os mesmos chavões em que se revelam os perigos de uma teoria sem prática.
O que a prática me tem revelado, a mim que não sou psicólogo, é que não existem pais nem famílias que não sejam neuróticos; mais: que, na maior parte dos casos, quanto mais «politicamente correctos», quanto mais «consciencializados», quanto mais atentos e preocupados em agir by the book, isto é, de acordo com os manuais que ensinam os pais a ser pais, mais neuróticos são. (É preciso ser-se valentemente neurótico para se achar, por exemplo, que é possível viver a paternidade segundo os conselhos do senhor Daniel Sampaio).
Não quero que pensem que tenho a mania, ou que julgo saber do assunto mais do quem quer que seja; não quero que pensem que não cometo erros, nem sequer que penso que os não cometo. Cometo inúmeros. Alguns, incorrigíveis: estão-me na massa, na estrutura, no ADN, no que quiserem. Não tenho teorias, ou melhor, vou tentando compreender o que faço, tirando as minhas lições, procurando melhorar. É possível que esteja deformando e estragando o meu filho, que o esteja traumatizando, que lhe vá criando complexos e vícios vários. (Mas também não me preocupo mais do que a minha análise me convide a fazê-lo, porque verifiquei que a maioria dos «complexos» e dos «vícios» são uma invenção que tem rendido a uma certa psicologia...)
A minha aposta consiste simplesmente em confiar que tenho algumas coisas boas, que identifico e tento transmitir, tentando multiplicar as situações que o permitam; em reconhecer que tenho diversos e graves defeitos, cujo impacto menorizo quando posso; e, sobretudo, em esperar que a nossa relação viva e cresça, com bens e males, capaz de cuidar de si mesma, de constituir um rumo e um ritmo próprios, de acreditar em si. Isto não é uma receita. Não creio em receitas. É uma maneira de dizer que os filhos são resistentes: na maior parte dos casos, aprendem a superar o mal que lhes possamos fazer. Não é que isto me de-responsabilize. Nos de-responsabilize. É que se não acreditar nisto, mais vale não ter filhos - ou, então, pedir ao senhor Daniel Sampaio que os eduque por mim.
segunda-feira, agosto 07, 2006
FALAS DE AZUL
Devo ter induzido pessoas em erro com um velho «post» em que elogiava o hip-hop que se fazia em Portugal: pus uns quantos leitores (não muitos, mas isso porque não tenho muitos leitores) a pensar que eu seria um grande apreciador do género. Na verdade, não sou: tenho o hip-hop por uma música preguiçosa, mais cantada do que falada, e falada, ainda por cima, sempre quase da mesma forma (embora não com o mesmo conteúdo), com tiques e vícios de estilo por todo o lado. No entanto, surpreendiam-me algumas letras - algumas das tais «falas». Pelo arrojo, pelo português seguro que as sustentava, por uma capacidade admirável de tornar poético um quotidiano suburbano, pela, pasmem!, criatividade!
Mesmo em grupos desconhecidos parecia-me detectar essa estranha criatividade, esse inesperado domínio das palavras, essa expressiva familiaridade com o surrealismo.
Havia, por exemplo, nos «Morangos com Açúcar», uma música cujo nome desconheço, cantada ou falada por um desses grupos, que me obrigava a deter-me diante destas palavras:
«Falas de azul/ Esquece azul... etc, etc.»
Era bonito. Não sabíamos bem o que significava, nem o meu filho nem eu, mas gostávamos da estranha magia daquele «azul», e procurávamos interpretá-lo. Para o meu filho, tratava-se de alguém que «falava (vestida) de azul»: «Falas de azul». E, acrescentava ele, «alguém» que esquecia (o quê, que esquecia ela? - qualquer coisa), mas esquecia-se ainda e sempre vestida de azul: «Esqueces (de) azul»... (Admito que esta segunda parte me parece menos plausível, sobretudo porque eu não ouvia «esqueces» mas «esquece», no imperativo. Mas paciência: o meu filho tem onze anos).
Para mim, era antes com a metáfora que havia que se jogar. Alguém falava acerca de azul, porventura de um ideal, ou de amor, ou de um mundo perfeito, ou seja, de tudo aquilo a que aspiramos e que podemos representar sob essa cor que evoca o céu, o mar....! E, ironicamente, o cantor respondia-lhe, «Esquece azul», como quem diz, deixa-te disso, não vale a pena, não te incomodes, eu já não acredito nos teus sonhos nem nas tuas palavras...
As discussões que esta letra desencadeou, o que ela exigiu do nosso poder de argumentação, do nosso espírito, a dialéctica hermenêutica a que nos obrigou.
Tornámos a ouvir a música, numa destas noites, no rádio do carro; ouvimo-la com uma esforçadíssima atenção. Pois bem: não há ali azul nenhum. Nenhum. O que se diz é simplesmente «Falas disso» (soando como: «Falas dissú!»), «Esquece isso!» («Esquece issú!»).
O meu filho e eu rimo-nos do nosso equívoco. Mas pouco. Era um riso levemente amargo.
Ora bolas!
Mesmo em grupos desconhecidos parecia-me detectar essa estranha criatividade, esse inesperado domínio das palavras, essa expressiva familiaridade com o surrealismo.
Havia, por exemplo, nos «Morangos com Açúcar», uma música cujo nome desconheço, cantada ou falada por um desses grupos, que me obrigava a deter-me diante destas palavras:
«Falas de azul/ Esquece azul... etc, etc.»
Era bonito. Não sabíamos bem o que significava, nem o meu filho nem eu, mas gostávamos da estranha magia daquele «azul», e procurávamos interpretá-lo. Para o meu filho, tratava-se de alguém que «falava (vestida) de azul»: «Falas de azul». E, acrescentava ele, «alguém» que esquecia (o quê, que esquecia ela? - qualquer coisa), mas esquecia-se ainda e sempre vestida de azul: «Esqueces (de) azul»... (Admito que esta segunda parte me parece menos plausível, sobretudo porque eu não ouvia «esqueces» mas «esquece», no imperativo. Mas paciência: o meu filho tem onze anos).
Para mim, era antes com a metáfora que havia que se jogar. Alguém falava acerca de azul, porventura de um ideal, ou de amor, ou de um mundo perfeito, ou seja, de tudo aquilo a que aspiramos e que podemos representar sob essa cor que evoca o céu, o mar....! E, ironicamente, o cantor respondia-lhe, «Esquece azul», como quem diz, deixa-te disso, não vale a pena, não te incomodes, eu já não acredito nos teus sonhos nem nas tuas palavras...
As discussões que esta letra desencadeou, o que ela exigiu do nosso poder de argumentação, do nosso espírito, a dialéctica hermenêutica a que nos obrigou.
Tornámos a ouvir a música, numa destas noites, no rádio do carro; ouvimo-la com uma esforçadíssima atenção. Pois bem: não há ali azul nenhum. Nenhum. O que se diz é simplesmente «Falas disso» (soando como: «Falas dissú!»), «Esquece isso!» («Esquece issú!»).
O meu filho e eu rimo-nos do nosso equívoco. Mas pouco. Era um riso levemente amargo.
Ora bolas!
sábado, julho 29, 2006
TUDO O QUE É MAU FAZ BEM
Num livro que tem sido apresentado como «revolucionário», um autor norte-americano - penso eu, mas talvez erre; será, porventura, um preconceito, mas estas «revoluções» parecem-me tipicamente americanas - sustenta que tudo aquilo praticamente que sempre se pensou ser prejudicial aos adolescentes é, afinal, benéfico para o seu desenvolvimento. O excesso de televisão. Os videogames. Os telemóveis. You name it. Nós, até agora, preocupados com os nossos filhos, evitando parvamente que eles se alienassem com os jogos de computador e outros vícios da cultura de massas e, pelo contrário, os jogos e os vícios a despertar-lhes as mentes, rasgando-lhes fronteiras à inteligência, adestrando-os e aperfeiçoando-os...! O tempo que desperdiçámos a mandá-los estudar aos invés de os deixarmos colados ao ecrã, movendo ruidosamente os polegares sobre os botões da consola para disparar rajadas contra as naves invasoras.
Sei que não há, nesse livro, nada de científico. O registo é o da argumentação. E desconfio muito dessa retórica de que se tecem teorias cómodas. Fujo delas como o diabo da cruz: sofro de um leve enjoo quando oiço um psicólogo pedir «tempo de qualidade» por oposição à «quantidade», querendo convencer-me de que os pais geralmente muito ocupados podem ser melhores do que os outros se forem capazes de fazer do quarto de hora em que estão com os filhos um quarto de hora a sério, de «qualidade», cheio de histórias e brincadeira.
Haverá sempre um psicólogo para entoar loas às virtudes do macDonald's, da coca-cola, das pipocas no cinema. Há-de haver um psicólogo pronto a justificar - pior, a tomar como exemplo salutar - o comportamento desses pais negligentes que atafulham as crianças, as mimam em excesso, lhes não negam nada, lhes oferecem jogos em vez de atenção.
Compensa-se a irresponsabilidade dessas teorias com o tom revolucionário e provocatório que elas ostentam, o irresistível cunho de novidade e, sobretudo, o efeito de desculpabilização para consciências atormentadas de alguns pais.
Para muitos, é um óptimo negócio.
Sei que não há, nesse livro, nada de científico. O registo é o da argumentação. E desconfio muito dessa retórica de que se tecem teorias cómodas. Fujo delas como o diabo da cruz: sofro de um leve enjoo quando oiço um psicólogo pedir «tempo de qualidade» por oposição à «quantidade», querendo convencer-me de que os pais geralmente muito ocupados podem ser melhores do que os outros se forem capazes de fazer do quarto de hora em que estão com os filhos um quarto de hora a sério, de «qualidade», cheio de histórias e brincadeira.
Haverá sempre um psicólogo para entoar loas às virtudes do macDonald's, da coca-cola, das pipocas no cinema. Há-de haver um psicólogo pronto a justificar - pior, a tomar como exemplo salutar - o comportamento desses pais negligentes que atafulham as crianças, as mimam em excesso, lhes não negam nada, lhes oferecem jogos em vez de atenção.
Compensa-se a irresponsabilidade dessas teorias com o tom revolucionário e provocatório que elas ostentam, o irresistível cunho de novidade e, sobretudo, o efeito de desculpabilização para consciências atormentadas de alguns pais.
Para muitos, é um óptimo negócio.
sábado, julho 08, 2006
A HISTERIA
Quando perguntei a uma amiga se tinha sofrido muito com o jogo em que, na noite anterior, a França destruira as lusas ilusões, ela respondeu-me: «Na verdade, fiquei aliviada. Temia que viesse aí uma nova vaga de histeria!»
Eu compreendo que este patriotismo de trazer por casa pareça tão mal, se não chocante, a alguns intelectuais. E não emprego o termo depreciativamente: é, obviamente, entre os intelectuais, como o Barroso, o Pulido Valente ou o Pacheco Pereira, que esta onda de bandeiras invandindo varandas e automóveis soa pindérico, estúpido, misturando valores respeitáveis com ludismos de pacotilha.
Do meu ponto de vista, porém, a questão que aqui se põe não é a do patriotismo foleiro, a do patriotismo fácil, a do patriotismo histérico. Não é, de todo, a questão do patriotismo.
Tenho dificuldade em aceitar que, no interior de um país que se despreza há muitos séculos, que talvez tenha nascido já de um desprezo por si mesmo - com a incompreensível interrupção dos Descobrimentos -, no interior de um país que se viu sempre diminuído em face do resto da Europa, a começar pela enorme e potente Espanha com a qual faz fronteira, no interior de um país que foi vivendo, em grande parte, de emigração, lançando pelo mundo porteiras, trabalhadores das obras e varredores, famílias chutadas para bairros degradados, olhadas de cima, desintegradas, sempre a braços com uma língua que não dominavam, que no interior deste país haja quem não entenda a adesão à selecção nacional, a euforia futebolística, como uma espécie de vingança pequenina contra a nossa condição de portugueses e contra um destino rasca que nos cabe. Que não se veja aqui, que diabo, uma questão de - odiosa palavra, perdoem-ma - «auto-estima».
Resolvemos os nossos problemas? Não. Teríamos solucionado algo do nosso fado, mesmo que o Zinedine Zidane não tivesse jogado ou o árbitro não mandasse marcar a porcaria do penalty? Não. Teria alguma coisa essencial mudado se, no fim, vencêssemos a Itália e fossemos os campeões do mundo?
Não. Andaríamos nas nuvens umas semanas, um mês, uns meses e, depois, tudo voltaria fatalmente ao ramerrão português.
Mas, caramba, que mal faz uma interrupção da tristeza? Um breve período de intensidade e comunhão? Um carnaval em que nos unimos, por uma vez positivamente, neste drama de sermos portugueses?
Histeria? Sem dúvida. Mas eu sempre achei que havia qualquer coisa de profundamente saudável na histeria. Doentes, doentes, eram os psiquiatras e os psicólogos que se debruçavam sobre ela.
Eu compreendo que este patriotismo de trazer por casa pareça tão mal, se não chocante, a alguns intelectuais. E não emprego o termo depreciativamente: é, obviamente, entre os intelectuais, como o Barroso, o Pulido Valente ou o Pacheco Pereira, que esta onda de bandeiras invandindo varandas e automóveis soa pindérico, estúpido, misturando valores respeitáveis com ludismos de pacotilha.
Do meu ponto de vista, porém, a questão que aqui se põe não é a do patriotismo foleiro, a do patriotismo fácil, a do patriotismo histérico. Não é, de todo, a questão do patriotismo.
Tenho dificuldade em aceitar que, no interior de um país que se despreza há muitos séculos, que talvez tenha nascido já de um desprezo por si mesmo - com a incompreensível interrupção dos Descobrimentos -, no interior de um país que se viu sempre diminuído em face do resto da Europa, a começar pela enorme e potente Espanha com a qual faz fronteira, no interior de um país que foi vivendo, em grande parte, de emigração, lançando pelo mundo porteiras, trabalhadores das obras e varredores, famílias chutadas para bairros degradados, olhadas de cima, desintegradas, sempre a braços com uma língua que não dominavam, que no interior deste país haja quem não entenda a adesão à selecção nacional, a euforia futebolística, como uma espécie de vingança pequenina contra a nossa condição de portugueses e contra um destino rasca que nos cabe. Que não se veja aqui, que diabo, uma questão de - odiosa palavra, perdoem-ma - «auto-estima».
Resolvemos os nossos problemas? Não. Teríamos solucionado algo do nosso fado, mesmo que o Zinedine Zidane não tivesse jogado ou o árbitro não mandasse marcar a porcaria do penalty? Não. Teria alguma coisa essencial mudado se, no fim, vencêssemos a Itália e fossemos os campeões do mundo?
Não. Andaríamos nas nuvens umas semanas, um mês, uns meses e, depois, tudo voltaria fatalmente ao ramerrão português.
Mas, caramba, que mal faz uma interrupção da tristeza? Um breve período de intensidade e comunhão? Um carnaval em que nos unimos, por uma vez positivamente, neste drama de sermos portugueses?
Histeria? Sem dúvida. Mas eu sempre achei que havia qualquer coisa de profundamente saudável na histeria. Doentes, doentes, eram os psiquiatras e os psicólogos que se debruçavam sobre ela.
quinta-feira, julho 06, 2006
A FRUSTRAÇÃO DOS D'ZRT
Os D'zrt não são propriamente uns garotos. Embora finjam um pouco que sim: por exemplo, um deles, já quase nos seus gastos trinta anos, fazia, nos MORANGOS COM AÇÚCAR, o papel desadequado de um jovem adolescente apaixonado pela professora de Inglês; o outro, o inefável Zé Milho dos mesmos MORANGOS, também deve ter-se atrasado alguns anos na sua qualidade de miúdo, qualidade que não foi capaz de largar a tempo. E portanto, crescidotes como são, suspeito que, ao formarem uma banda, o sonho deles era serem uns tipos irreverentes, parasitando o hip-hop, com um público de jovens um pouco embriagados fazendo gestos obscenos e sacudindo-se a compasso nos seus concertos.
Observo, na televisão, o verdadeiro público dos D'Zrt: meninas de trancinhas e aparelho nos dentes, às cavalitas dos pais, bebés adormecidos no carrinho ou ao colo da mãe, miúdos de chucha, sardentos, alguns rapazolas com albuns de cromos debaixo do braço. E, aí, atenção: nem todos os rapazes! O meu filho olha com alguma indignação para o CD dos D'zrt que lhe ofereceram nos anos. Detesta-os. Tenho nisso algum orgulho, mas pouca influência. Os meninos que, em quase tudo o mais evoluem mais lentamente do que as meninas, nisto, parecem muito mais lúcidos. Os colegas do Duarte deformam-lhes as letras das músicas, ridicularizando-as divertida e gostosamente. Chego a ter pena do Topé e do Zé Milho!
Não acredito que o sonho dos D'zrt fosse esta multidão de crianças a pedirem-lhes autógrafos, com a caneta numa mão e a Barbie na outra.
Observo, na televisão, o verdadeiro público dos D'Zrt: meninas de trancinhas e aparelho nos dentes, às cavalitas dos pais, bebés adormecidos no carrinho ou ao colo da mãe, miúdos de chucha, sardentos, alguns rapazolas com albuns de cromos debaixo do braço. E, aí, atenção: nem todos os rapazes! O meu filho olha com alguma indignação para o CD dos D'zrt que lhe ofereceram nos anos. Detesta-os. Tenho nisso algum orgulho, mas pouca influência. Os meninos que, em quase tudo o mais evoluem mais lentamente do que as meninas, nisto, parecem muito mais lúcidos. Os colegas do Duarte deformam-lhes as letras das músicas, ridicularizando-as divertida e gostosamente. Chego a ter pena do Topé e do Zé Milho!
Não acredito que o sonho dos D'zrt fosse esta multidão de crianças a pedirem-lhes autógrafos, com a caneta numa mão e a Barbie na outra.
terça-feira, junho 13, 2006
A SAÍDA
Hans não conseguia deixar de olhar pela janela.
Passara os últimos dias olhando fixamente, cheio de fé, de uma fé irrealista que o tornava inapto para as tarefas da casa.
Os outros irritavam-se. Ada, sobretudo, enervava-se muito com a sua atitude:
- Tu não podes esperar que sejamos nós a fazer tudo. É injusto. Estamos juntos nesta situação, precisamos uns dos outros, precisamos de todos.
Clark, que, tacitamente, era visto pelo grupo como o líder, procurava acalmá-la:
- Ele está mal, Ada. Dá-lhe tempo. Deixa-o recompor-se. Foi o que sofreu mais de todos nós. Perdeu os pais, os filhos...
Ada chorava. Não de pena, mas de raiva, de uma raiva mesquinha contra Hans, e do orgulho ferido por Clark, que ela continuava amando secretamente.
- Quanto tempo lhe queres dar, Clark?
- Dá-lhe tempo, Ada, dá-lhe algum tempo. É só do que ele precisa...
Hans via claramente que, no exterior, tudo se recompunha. Não o dizia a ninguém. Mantinha segredo. Os outros ainda lhe agradeceriam, quando ele anunciasse: «Podemos sair, o mundo renasceu lá fora!»
Hans percebia perfeitamente que o cinzento começara a dar lentamente lugar a cores, que algumas flores brotavam do chão; pensava, comovido: «Há flores prontas a regressar à menor oportunidade, mesmo num mundo estragado. E que força! A força com que rompem o alcatrão, com que fendem as estradas...»
Um dia, Hans gritou.
Os outros aproximaram-se, a medo.
Mas o jovem ria-se. Apontava com o dedo pela janela. O mundo regenerara. Por completo. Estava pronto a recebê-los, reanimado, animado da sua eterna pujança.
- Que achas? -, perguntou Lake.
- Acho que ele enlouqueceu -, respondeu Ada.
- Também acho, infelizmente -, confirmou Clark. - A sua fé criou uma espécie de alucinação que, sob efeito das recordações, o faz ver o mundo lá fora como era antes.
- Ele quer sair. Podemos prendê-lo? -, interrogava-se Eva.
- Temos de o convencer -, experimentava Clark.
- Convencê-lo? -, troçava Ada. - Como se convence um louco?
- Temos de admitir outra hipótese -, arriscou Lap. Corou muito perante o silêncio atento que se fez em torno das suas palavras. Depois, nervosamente, com excesso de gestos, prosseguiu. - Temos de admitir a hipótese de que ele tenha razão. De que ele esteja a ver as coisas como elas de facto são, e nós não.
- Todos nós enganados? Loucos? E ele a percepcionar adequadamente? Mas porquê?
- Bem, o facto de ele ter passado tanto tempo à janela pode tê-lo tornado mais sensível para pequenas variações que nos escapam. Estamos demasiado habituados a esta falsa luz, que não sabemos até que ponto altera a nossa visão.
- Lap tem razão.
- Vais deixá-lo sair? A porta terá de se fechar imediatamente. E uma vez fechada, não a conseguiremos abrir senão ao fim de uma hora. E se nada mudou, como resistirá ele lá fora, sob a nuvem tóxica, durante uma hora? Queres usá-lo como cobaia, é isso?
Discutiram durante muito tempo. Com Hans e sem Hans. Para este, não havia dúvidas. Espantava-se de que não vissem tão claramente como ele o mundo renascido, mas o certo é que esse mundo o esperava. Não havia hesitação. Da sua parte, não havia a menor hesitação. E parecia lúcido: argumentava inteligentemente, um pouco excitado mas sem qualquer vestígio de delírio.
Estava à porta. Olhou para os seus companheiros um por um.
Tinha a certeza. Estava seguro. Sabia o que eles pensavam, lia-o nos rostos tensos, dramáticos. «E se o Hans não volta? E se o Hans morre?»
Uma vez saindo, não havia volta. A porta teria de ser imediatamente fechada nas suas costas, e não poderiam abri-la senão ao fim de uma hora. Se não tivesse razão, ao fim de uma hora iriam recolher o seu cadáver.
Tremeu. Não chegou a ser hesitação. Nem frio. Fora uma tremura nervosa.
A porta abriu-se. Hans saiu. A porta fechou-se nas suas costas.
Passara os últimos dias olhando fixamente, cheio de fé, de uma fé irrealista que o tornava inapto para as tarefas da casa.
Os outros irritavam-se. Ada, sobretudo, enervava-se muito com a sua atitude:
- Tu não podes esperar que sejamos nós a fazer tudo. É injusto. Estamos juntos nesta situação, precisamos uns dos outros, precisamos de todos.
Clark, que, tacitamente, era visto pelo grupo como o líder, procurava acalmá-la:
- Ele está mal, Ada. Dá-lhe tempo. Deixa-o recompor-se. Foi o que sofreu mais de todos nós. Perdeu os pais, os filhos...
Ada chorava. Não de pena, mas de raiva, de uma raiva mesquinha contra Hans, e do orgulho ferido por Clark, que ela continuava amando secretamente.
- Quanto tempo lhe queres dar, Clark?
- Dá-lhe tempo, Ada, dá-lhe algum tempo. É só do que ele precisa...
Hans via claramente que, no exterior, tudo se recompunha. Não o dizia a ninguém. Mantinha segredo. Os outros ainda lhe agradeceriam, quando ele anunciasse: «Podemos sair, o mundo renasceu lá fora!»
Hans percebia perfeitamente que o cinzento começara a dar lentamente lugar a cores, que algumas flores brotavam do chão; pensava, comovido: «Há flores prontas a regressar à menor oportunidade, mesmo num mundo estragado. E que força! A força com que rompem o alcatrão, com que fendem as estradas...»
Um dia, Hans gritou.
Os outros aproximaram-se, a medo.
Mas o jovem ria-se. Apontava com o dedo pela janela. O mundo regenerara. Por completo. Estava pronto a recebê-los, reanimado, animado da sua eterna pujança.
- Que achas? -, perguntou Lake.
- Acho que ele enlouqueceu -, respondeu Ada.
- Também acho, infelizmente -, confirmou Clark. - A sua fé criou uma espécie de alucinação que, sob efeito das recordações, o faz ver o mundo lá fora como era antes.
- Ele quer sair. Podemos prendê-lo? -, interrogava-se Eva.
- Temos de o convencer -, experimentava Clark.
- Convencê-lo? -, troçava Ada. - Como se convence um louco?
- Temos de admitir outra hipótese -, arriscou Lap. Corou muito perante o silêncio atento que se fez em torno das suas palavras. Depois, nervosamente, com excesso de gestos, prosseguiu. - Temos de admitir a hipótese de que ele tenha razão. De que ele esteja a ver as coisas como elas de facto são, e nós não.
- Todos nós enganados? Loucos? E ele a percepcionar adequadamente? Mas porquê?
- Bem, o facto de ele ter passado tanto tempo à janela pode tê-lo tornado mais sensível para pequenas variações que nos escapam. Estamos demasiado habituados a esta falsa luz, que não sabemos até que ponto altera a nossa visão.
- Lap tem razão.
- Vais deixá-lo sair? A porta terá de se fechar imediatamente. E uma vez fechada, não a conseguiremos abrir senão ao fim de uma hora. E se nada mudou, como resistirá ele lá fora, sob a nuvem tóxica, durante uma hora? Queres usá-lo como cobaia, é isso?
Discutiram durante muito tempo. Com Hans e sem Hans. Para este, não havia dúvidas. Espantava-se de que não vissem tão claramente como ele o mundo renascido, mas o certo é que esse mundo o esperava. Não havia hesitação. Da sua parte, não havia a menor hesitação. E parecia lúcido: argumentava inteligentemente, um pouco excitado mas sem qualquer vestígio de delírio.
Estava à porta. Olhou para os seus companheiros um por um.
Tinha a certeza. Estava seguro. Sabia o que eles pensavam, lia-o nos rostos tensos, dramáticos. «E se o Hans não volta? E se o Hans morre?»
Uma vez saindo, não havia volta. A porta teria de ser imediatamente fechada nas suas costas, e não poderiam abri-la senão ao fim de uma hora. Se não tivesse razão, ao fim de uma hora iriam recolher o seu cadáver.
Tremeu. Não chegou a ser hesitação. Nem frio. Fora uma tremura nervosa.
A porta abriu-se. Hans saiu. A porta fechou-se nas suas costas.
terça-feira, junho 06, 2006
INCONSCIENTE E MÁ-FÉ
Sartre nunca gostou muito de Freud. À ideia de «inconsciente», respondia com a noção de uma consciência sem zonas obscuras. Não, argumentava ele, o sujeito é pura consciência, uma consciência total e completa, sem estrutura nem qualquer mecanismo ou forma «a priori»; é, afinal, um nada - aquele nada no sentido sartreano (néant), que a língua portuguesa nunca conseguiu traduzir satisfatoriamente.
Mas - perguntava-se-lhe -, se o sujeito é consciência, como pode ignorar tanto de si, dos seus impulsos mais recônditos, como pode haver actos que não é capaz de explicar, cujas razões desconhece ou deturpa?
Ah!, dizia ele, isso é por causa da má-fé.
A má-fé ganhou, com Sartre, foros de conceito filosófico. Tratava-se de pensar uma espécie de truque da consciência, uma capacidade de se enganar a si própria, sem realmente se enganar uma vez que, em última análise, não podia deixar de perceber o jogo com que se mascarava de si para si.
O sujeito conhece os seus impulsos, as suas intenções, as suas motivações: nada lhe é verdadeiramente inconsciente. Mas, eis o segredo, pode actuar como se não soubesse, ou como se não tivesse a certeza, ou como se aceitasse outra explicação ou outra hipótese, levando esse «como se», por vezes, ao extremo ponto de, não acreditando, quase acreditar ou, por momentos, acreditar de facto na sua ignorância.
O exemplo mais conhecido desta atitude da consciência, é-nos oferecido pelo próprio Sartre: a jovem que conversa, à mesa de um café ou de um restaurante, com alguém que intenta seduzi-la. O homem, num determinado momento, pousa a sua mão sobre a mão dela. E ela, que poderia retirar imediatamente a sua, chocada, ou recuar de algum modo, pelo contrário deixa-a estar abandonada sob o suave toque, o peso daqueles dedos, continuando porém a falar acerca de filosofia, ou de religião, ou de temas excelsos, como se não tivesse notado, ou como se não tivesse compreendido, ou não desse nenhuma significação especial ao gesto, ou como se acreditasse na inocência deste...! Como se o tema e a conversa o impregnassem de leveza, de inocência, o esvaziassem de toda a intenção amorosa e de toda a sensualidade.
Há muitos anos, um amigo meu, casado e bom rapaz, tinha sido convidado por uma colega, com quem, obviamente se dava muito bem, para jantar em casa dela. A sós. O pretexto era que se tratava de uma casa nova, para onde ela mudara recentemente e que lhe queria mostrar.
Quando hoje ele se lembra desta situação, tenta sempre acreditar que aceitou inocentemente, sem ler nada nas entrelinhas e achando normal que uma colega, uma quase-amiga, com quem se dava muito bem, o convidasse para jantar em casa dela. Tenta acreditar que era possível, e lhe foi possível, não achar estranho, nem ler no convite para jantar nenhum segundo convite.
Respondemos-lhe: «Não é possível tamanha inocência!»
Do ponto de vista de Sartre, toda a inocência é uma forma de má-fé.
Não garanto que isto supere Freud, que explique os actos mais ou melhor do que o inconsciente explicaria.
Não sei se, aliás, o «inconsciente» e a «má-fé» são contraditórios e, como tal, se excluem mutuamente.
Ambos me parecem fazer todo o sentido.
Mas - perguntava-se-lhe -, se o sujeito é consciência, como pode ignorar tanto de si, dos seus impulsos mais recônditos, como pode haver actos que não é capaz de explicar, cujas razões desconhece ou deturpa?
Ah!, dizia ele, isso é por causa da má-fé.
A má-fé ganhou, com Sartre, foros de conceito filosófico. Tratava-se de pensar uma espécie de truque da consciência, uma capacidade de se enganar a si própria, sem realmente se enganar uma vez que, em última análise, não podia deixar de perceber o jogo com que se mascarava de si para si.
O sujeito conhece os seus impulsos, as suas intenções, as suas motivações: nada lhe é verdadeiramente inconsciente. Mas, eis o segredo, pode actuar como se não soubesse, ou como se não tivesse a certeza, ou como se aceitasse outra explicação ou outra hipótese, levando esse «como se», por vezes, ao extremo ponto de, não acreditando, quase acreditar ou, por momentos, acreditar de facto na sua ignorância.
O exemplo mais conhecido desta atitude da consciência, é-nos oferecido pelo próprio Sartre: a jovem que conversa, à mesa de um café ou de um restaurante, com alguém que intenta seduzi-la. O homem, num determinado momento, pousa a sua mão sobre a mão dela. E ela, que poderia retirar imediatamente a sua, chocada, ou recuar de algum modo, pelo contrário deixa-a estar abandonada sob o suave toque, o peso daqueles dedos, continuando porém a falar acerca de filosofia, ou de religião, ou de temas excelsos, como se não tivesse notado, ou como se não tivesse compreendido, ou não desse nenhuma significação especial ao gesto, ou como se acreditasse na inocência deste...! Como se o tema e a conversa o impregnassem de leveza, de inocência, o esvaziassem de toda a intenção amorosa e de toda a sensualidade.
Há muitos anos, um amigo meu, casado e bom rapaz, tinha sido convidado por uma colega, com quem, obviamente se dava muito bem, para jantar em casa dela. A sós. O pretexto era que se tratava de uma casa nova, para onde ela mudara recentemente e que lhe queria mostrar.
Quando hoje ele se lembra desta situação, tenta sempre acreditar que aceitou inocentemente, sem ler nada nas entrelinhas e achando normal que uma colega, uma quase-amiga, com quem se dava muito bem, o convidasse para jantar em casa dela. Tenta acreditar que era possível, e lhe foi possível, não achar estranho, nem ler no convite para jantar nenhum segundo convite.
Respondemos-lhe: «Não é possível tamanha inocência!»
Do ponto de vista de Sartre, toda a inocência é uma forma de má-fé.
Não garanto que isto supere Freud, que explique os actos mais ou melhor do que o inconsciente explicaria.
Não sei se, aliás, o «inconsciente» e a «má-fé» são contraditórios e, como tal, se excluem mutuamente.
Ambos me parecem fazer todo o sentido.
quarta-feira, maio 31, 2006
A EDUCAÇÃO DA MINISTRA
Por alguma inescrutável razão, associada, certamente, a uma persistente candura da minha parte, tudo isto ainda me espanta. Não deveria: a maturidade tem que ver com um conhecimento tão profundo dos seres humanos, que se não deixe surpreender com o que eles possam fazer. Mas espanto-me.
Que a educação pública (Pulido Valente propunha que se lhe chamasse «instrução», nunca mais do que isso) esteja, em Portugal, nas mãos de uma equipa chefiada - e simbolizada - por uma mulher que não gosta dos professores, os considera privilegiados e preguiçosos, irresponsáveis e desleixados; que entende que há uma reforma a fazer e que essa reforma se esgota em ensinar os professores a ensinar, em discipliná-los e em acusá-los dos males; que o insucesso deve ser abolido - o qual não existe, na sua perspectiva, senão porque os professores o provocam, sendo a solução, portanto... forçá-los a não atribuir negativas, ou penalizá-los quando o fazem; que, finalmente, como se o achincalhamento não fosse já suficiente, como se a quebra sistemática da autoridade, da última réstia de autoridade perante os meninos, não fosse grave e carregada de consequências, se deixe agora adivinhar a possibilidade de que os pais dos alunos avaliem os professores - é tudo de uma tamanha perversão ética e pedagógica, exprime uma tal inversão de valores, uma tão grande capacidade de errar no geral e no particular, uma tão grande capacidade de se enganar nos princípios e no concreto, que se torna praticamente insultuoso.
Não interessa perguntar quais as razões psicológicas - que as haverá - desta política suicida. O que alimenta um tal ódio e uma visão tão desfocada, tão, poderíamos dizer, poderosa e sublime no disparate, é-nos aqui indiferente.
Interessa reconhecer que os professores estão frustrados, que se sentem desprezados e desvalorizados; que este seu desvalor, que era já a parte principal da imagem que a sociedade fabricara da «escola» e dos «docentes», se agrava, nas mãos de uma ministra limitada e teimosa, até ao impossível; que não há alternativas - ou que os professores não têm alternativas que não sejam as sindicais, sendo que os sindicatos, por outro lado, primam pelo envelhecimento, pela falta de imaginação, pela incapacidade de analisar e pensar séria e profundamente.
Interessa perceber que os docentes não estão abatidos (no sentido de deprimidos ou cabisbaixos): abateram-nos (no sentido que a palavra adquire nos matadouros). Os professores foram sistematicamente abatidos.
Tão cedo, a cultura não se recomporá deste ataque.
O que está por detrás da seriedade e da inflexibilidade da ministra é, curiosamente, uma cultura do desleixo e da permissividade. Uma cultura de quebra de exigência no ensino. Porque a essa exigência, onde e quando existe, a ministra chama «produção de insucesso».
Hoje, os meninos agradecem.
Os pais dos meninos, obviamente, também.
Amanhã, ver-se-á!
Que a educação pública (Pulido Valente propunha que se lhe chamasse «instrução», nunca mais do que isso) esteja, em Portugal, nas mãos de uma equipa chefiada - e simbolizada - por uma mulher que não gosta dos professores, os considera privilegiados e preguiçosos, irresponsáveis e desleixados; que entende que há uma reforma a fazer e que essa reforma se esgota em ensinar os professores a ensinar, em discipliná-los e em acusá-los dos males; que o insucesso deve ser abolido - o qual não existe, na sua perspectiva, senão porque os professores o provocam, sendo a solução, portanto... forçá-los a não atribuir negativas, ou penalizá-los quando o fazem; que, finalmente, como se o achincalhamento não fosse já suficiente, como se a quebra sistemática da autoridade, da última réstia de autoridade perante os meninos, não fosse grave e carregada de consequências, se deixe agora adivinhar a possibilidade de que os pais dos alunos avaliem os professores - é tudo de uma tamanha perversão ética e pedagógica, exprime uma tal inversão de valores, uma tão grande capacidade de errar no geral e no particular, uma tão grande capacidade de se enganar nos princípios e no concreto, que se torna praticamente insultuoso.
Não interessa perguntar quais as razões psicológicas - que as haverá - desta política suicida. O que alimenta um tal ódio e uma visão tão desfocada, tão, poderíamos dizer, poderosa e sublime no disparate, é-nos aqui indiferente.
Interessa reconhecer que os professores estão frustrados, que se sentem desprezados e desvalorizados; que este seu desvalor, que era já a parte principal da imagem que a sociedade fabricara da «escola» e dos «docentes», se agrava, nas mãos de uma ministra limitada e teimosa, até ao impossível; que não há alternativas - ou que os professores não têm alternativas que não sejam as sindicais, sendo que os sindicatos, por outro lado, primam pelo envelhecimento, pela falta de imaginação, pela incapacidade de analisar e pensar séria e profundamente.
Interessa perceber que os docentes não estão abatidos (no sentido de deprimidos ou cabisbaixos): abateram-nos (no sentido que a palavra adquire nos matadouros). Os professores foram sistematicamente abatidos.
Tão cedo, a cultura não se recomporá deste ataque.
O que está por detrás da seriedade e da inflexibilidade da ministra é, curiosamente, uma cultura do desleixo e da permissividade. Uma cultura de quebra de exigência no ensino. Porque a essa exigência, onde e quando existe, a ministra chama «produção de insucesso».
Hoje, os meninos agradecem.
Os pais dos meninos, obviamente, também.
Amanhã, ver-se-á!
domingo, maio 28, 2006
EM CERTOS MOMENTOS, É MELHOR SER O RATO DA CIDADE
A vida pode ser vivida serena e tranquilamente. Dispensamos a filosofia, essa espécie de doença obsessiva pela pergunta, esse trabalho paciente e vão de desfazer respostas para refazer novas e constantes questões, mergulhamos num túnel com as dimensões do nosso quotidiano, vamos percorrendo passo a passo esse caminho, não tendo como objectivo senão uma melhoria das condições de vida no interior do túnel e, um dia, percebemos que há um grupo fungando em redor e que esse grupo é constituido, afinal, pelos amigos que vieram chorar a nossa própria morte.
Não digo que a outra forma de vida seja a de estar sempre na corda bamba, sempre num frenesí, numa espécie de pára-quedismo, uma perpétua adolescência, um perpétuo desporto radical.
Não digo que a coragem de preferir outra via se deva exercer sistematicamente, nem que tenha de ser o corte sistemático com todas as amarras tecidas ao longo do túnel, tornando-nos em vagabundos do espaço, viajantes intergalácticos.
Digo, somente, que a vida se encarrega, ela própria, de nos enviar surpresas e nos propor riscos.
Às vezes, riscos que respiram perfeição e luz.
Que nem todos os riscos são aceitáveis, é-me evidente.
Que alguns são imperdíveis, que merecem muito, muito, muito de nós - ou que nos merecem mesmo por inteiro, também me parece claro.
Um risco é, de certa forma, o mundo que vem ao nosso encontro.
Por mim, não quero deixar, de vez em quando - se a a possibilidade me merecer, digo-o sem qualquer vaidade ou arrogância -, de ir ao encontro do mundo.
Não digo que a outra forma de vida seja a de estar sempre na corda bamba, sempre num frenesí, numa espécie de pára-quedismo, uma perpétua adolescência, um perpétuo desporto radical.
Não digo que a coragem de preferir outra via se deva exercer sistematicamente, nem que tenha de ser o corte sistemático com todas as amarras tecidas ao longo do túnel, tornando-nos em vagabundos do espaço, viajantes intergalácticos.
Digo, somente, que a vida se encarrega, ela própria, de nos enviar surpresas e nos propor riscos.
Às vezes, riscos que respiram perfeição e luz.
Que nem todos os riscos são aceitáveis, é-me evidente.
Que alguns são imperdíveis, que merecem muito, muito, muito de nós - ou que nos merecem mesmo por inteiro, também me parece claro.
Um risco é, de certa forma, o mundo que vem ao nosso encontro.
Por mim, não quero deixar, de vez em quando - se a a possibilidade me merecer, digo-o sem qualquer vaidade ou arrogância -, de ir ao encontro do mundo.
domingo, maio 21, 2006
RELEMBRANDO KARL PROTZKA
Karl Protzka é, com certeza absoluta, o escritor mais obscuro do mundo inteiro. Cidadão do Império Austro-Húngaro e de Viena de onde nunca saiu senão por poucos meses, viveu o auge e a decadência imperiais: é aquele mesmo a quem Musil se refere, nos «Diários», como o seu «amigo bizarro».
Eu próprio, que aqui dele falo, conheço-o pelo mero acaso de o meu avô ter sido o tradutor para português, penso que nos anos cinquenta, do único livro a que se resume a sua obra.
Chama-se «O Órgão Invisível». Tentei ler várias vezes o exemplar já velho e meio-carcomido que me veio parar às mãos, depois de ter passado orgulhosamente por várias estantes de familiares. Devo ter querido lê-lo com quinze ou dezasseis anos - que loucura! - e desistido ao fim da terceira ou quarta páginas; retomei-o aos vinte e não avancei muito mais; a seguir talvez aos vinte e tal, por fim aos trinta. Não sei com que idade mergulhei efectivamente naquele estranhíssimo romance que é o contrário de um romance (o meu avô fascinava-me repetindo amiúde estes pormenores, razão principal de todas as minhas tentativas de leitura), ou que é um não-romance se não um anti-romance: Protzka sonhava escrevê-lo mas, aparentemente, buscava, para o iniciar, uma série de condições ideais, desde a cadeira e a secretária ao papel, passando pela luz, pela caneta ou pelo estado de espírito perfeitos; em vez disso, nunca os reunindo, protelava, protelava sempre, mas ia enchendo caixas com apontamentos acerca do mundo que borbulhava em torno de si e do adiado romance: acerca do que os outros pensavam dele próprio e ele dos outros, acerca do que lhe perguntavam sobre o seu romance e de tudo quanto inventava: que estava a escrevê-lo (o que era falso), que o ia publicar, que concluíra o décimo quarto capítulo...!
Já depois de morto, os seus filhos reuniram esta gigantesca massa de apontamentos, organizando-a numa espécie de pararomance sobre o que seria o seu romance e, sobretudo, sobre a estranheza das relações humanas que se moviam à volta de um romance prometido, desejado, idealizado mas incapaz de vir à tona.
Das duas primeiras páginas, cito estas palavras:
«Uma relação - falo de toda e qualquer relação entre duas pessoas, filial ou fraterna, de amizade ou inimizade, erótica ou irónica - é um corpo que mergulha as suas pernas, por vezes até à cintura, por vezes até ao pescoço, no silêncio e no invisível: pois que o corpo de uma relação entre dois sujeitos é composto não principalmente pelo que os dois dizem um ao outro, e sim pelo que, sobretudo, não dizem um ao outro.[...] desse não-dizer transparecem sempre sintomas: mas transparecem mal, incompreendidos, falseados, deturpados. [...] Como essas indicações, que talvez nem o sejam, nunca se dizem, como nunca se esclarecem por palavras, como, na maioria dos casos, são meras ausências, adensam-se, a pouco e pouco, numa atmosfera de equívocos em que respiram todas as relações. Já imaginaram alguém que compreenda os desejos, ou as intenções de outrem, a partir, quase só, desse espelho invisível e deformante? O ter-lhe certa pessoa falado em último lugar numa reunião de amigos, ou o ter passado na rua como se o não visse, ou, pelo contrário, ter-lhe vindo imediatamente ao encontro, ou, durante a conversa, nunca o ter olhado nos olhos? [...] Ou um certo tom de voz (conhecem algo mais indefinível do que um «tom»?)! [...] O meu romance versará, no fundo (e a expressão «no fundo» é bem escolhida) essa trágica impotência: o paradoxo de um incomunicável resíduo de toda a comunicação ser, talvez, a parte mais importante de toda a comunicação.»
Nunca encontrei qualquer exemplar à venda. Em lado nenhum. Que eu saiba, não voltou a ser traduzido. O que releio frequentemente está muito gasto, muito velho. Gostaria de o mandar encadernar. Não tenho ideia de um outro autor tão profundo e tão extraordinário que seja tão profunda e tão extraordinariamente invisível.
Eu próprio, que aqui dele falo, conheço-o pelo mero acaso de o meu avô ter sido o tradutor para português, penso que nos anos cinquenta, do único livro a que se resume a sua obra.
Chama-se «O Órgão Invisível». Tentei ler várias vezes o exemplar já velho e meio-carcomido que me veio parar às mãos, depois de ter passado orgulhosamente por várias estantes de familiares. Devo ter querido lê-lo com quinze ou dezasseis anos - que loucura! - e desistido ao fim da terceira ou quarta páginas; retomei-o aos vinte e não avancei muito mais; a seguir talvez aos vinte e tal, por fim aos trinta. Não sei com que idade mergulhei efectivamente naquele estranhíssimo romance que é o contrário de um romance (o meu avô fascinava-me repetindo amiúde estes pormenores, razão principal de todas as minhas tentativas de leitura), ou que é um não-romance se não um anti-romance: Protzka sonhava escrevê-lo mas, aparentemente, buscava, para o iniciar, uma série de condições ideais, desde a cadeira e a secretária ao papel, passando pela luz, pela caneta ou pelo estado de espírito perfeitos; em vez disso, nunca os reunindo, protelava, protelava sempre, mas ia enchendo caixas com apontamentos acerca do mundo que borbulhava em torno de si e do adiado romance: acerca do que os outros pensavam dele próprio e ele dos outros, acerca do que lhe perguntavam sobre o seu romance e de tudo quanto inventava: que estava a escrevê-lo (o que era falso), que o ia publicar, que concluíra o décimo quarto capítulo...!
Já depois de morto, os seus filhos reuniram esta gigantesca massa de apontamentos, organizando-a numa espécie de pararomance sobre o que seria o seu romance e, sobretudo, sobre a estranheza das relações humanas que se moviam à volta de um romance prometido, desejado, idealizado mas incapaz de vir à tona.
Das duas primeiras páginas, cito estas palavras:
«Uma relação - falo de toda e qualquer relação entre duas pessoas, filial ou fraterna, de amizade ou inimizade, erótica ou irónica - é um corpo que mergulha as suas pernas, por vezes até à cintura, por vezes até ao pescoço, no silêncio e no invisível: pois que o corpo de uma relação entre dois sujeitos é composto não principalmente pelo que os dois dizem um ao outro, e sim pelo que, sobretudo, não dizem um ao outro.[...] desse não-dizer transparecem sempre sintomas: mas transparecem mal, incompreendidos, falseados, deturpados. [...] Como essas indicações, que talvez nem o sejam, nunca se dizem, como nunca se esclarecem por palavras, como, na maioria dos casos, são meras ausências, adensam-se, a pouco e pouco, numa atmosfera de equívocos em que respiram todas as relações. Já imaginaram alguém que compreenda os desejos, ou as intenções de outrem, a partir, quase só, desse espelho invisível e deformante? O ter-lhe certa pessoa falado em último lugar numa reunião de amigos, ou o ter passado na rua como se o não visse, ou, pelo contrário, ter-lhe vindo imediatamente ao encontro, ou, durante a conversa, nunca o ter olhado nos olhos? [...] Ou um certo tom de voz (conhecem algo mais indefinível do que um «tom»?)! [...] O meu romance versará, no fundo (e a expressão «no fundo» é bem escolhida) essa trágica impotência: o paradoxo de um incomunicável resíduo de toda a comunicação ser, talvez, a parte mais importante de toda a comunicação.»
Nunca encontrei qualquer exemplar à venda. Em lado nenhum. Que eu saiba, não voltou a ser traduzido. O que releio frequentemente está muito gasto, muito velho. Gostaria de o mandar encadernar. Não tenho ideia de um outro autor tão profundo e tão extraordinário que seja tão profunda e tão extraordinariamente invisível.
quarta-feira, maio 17, 2006
GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (II)
Sempre ouvi dizer que não se escolhe a família. Errado: tenho-a escolhido de tal maneira, que há familiares que vou deixando de frequentar e outros que fazem, cada vez mais, parte quase do meu dia-a-dia.
O que não podemos realmente escolher (senão em teoria) é a vizinhança.
Tenho um vizinho que inventou para si o título pomposo mas vazio de «Administrador da Rua». Na função que se concedeu, manda-me que não estacione o automóvel em determinados sítios ou que não ponha o caixote de lixo demasiado longe do meu portão - tudo isto «porque», quando chegámos «o bairro era já uma "piquena" aldeia, com as suas regras», que não estão escritas em lado nenhum, mas deveríamos acatar «em prol da harmonia da rua».
Este vizinho, de resto, é uma espécie de disléxico em matéria de cores de baldes do lixo previstas para os diferentes dias da semana. Falo do sistema da empresa «Tratolixo»: balde amarelo, para plásticos e metais, recolhido à segunda-feira por exemplo, balde azul, para papel e cartão, noutro dia. Eu e o meu filho inventámos um jogo: damos palpites ao acaso sobre a cor que o vizinho escolherá para cada dia. A única certeza é a de que nunca é a que deveria ser...
Ao lado de nós, partilhando um mesmo muro - um muro baixo, diga-se - está um casal de maus-fígados: um senhor careca e de bigode e uma senhora que oiço sempre aos gritos.
Uma vez, do seu alpendre, via-a vituperando contra um bando de meninas que saíam da escola. Não sei que lhe teriam feito. Mas a mulher dirigia-se, principalmente, à mais alta, garantindo-lhe:
- ... porque tu tens cara para apanhar um par de estalos, percebes!?
Ao que a menina, meio-paralisada, respondia:
- Está bem.
Foi este último casal que arranjou um mini-cão, um bicho pequeno, que se tornará um dia enorme a avaliar pelo tamanho da patorra, mas, entretanto, não passa de uma bolinha peluda.
O Dunga, meu cão de quem vos tenho falado, sentiu-lhe o cheiro no ar, tomou-se de amores, saltou o muro comum - o que nunca antes fizera - e passou a ensaiar surtidas, cada vez mais prolongadas, àquele apetecível quintal.
Estarrecidos, nós gritávamos:
- Dunga! AQUI! JÁ AQUI, DUNGA!!!
Mesmo que o Dunga quisesse, não poderia regressar pelos seus meios: o muro, baixo e fácil de transpor do nosso quintal para o quintal dos vizinhos, é, contudo, absurdamente alto no sentido inverso. Mas o pior é que o Dunga não quer: sexualmente inebriado, tremendo de excitação, tem como ideia única e fixa montar o cachorrinho.
É um espectáculo horroroso.
Lá pedíamos a um dos filhos do casal, assim que o apanhávamos a espreitar o que seria tanta gritaria, que fizesse o favor de pegar no nosso cão e no-lo devolver.
A menina, prestativa, tentava agarrar no Dunga - Dunga esse que, furioso pela interrupção, se tornava ameaçador e ladrava.
O meu filho pedia que o deixassem entrar. Mas o Dunga rosnava-lhe. Foi por isso que o Duarte, um dia, se saiu com esta espécie de poema espontâneo:
- Tenho medo do Dunga. Medo e raiva. Um dia fico tão furioso, que até o meu medo fica com medo de mim...
Quando o Duarte corajosamente o trazia apesar de tudo, prendíamos o cão em casa. E então víamo-lo, inconsolável, pendurado de uma janelinha com vista para o quintal do vizinho, ganindo baixinho, completamente apaixonado.
Quando nos esquecíamos e abríamos a porta, zás, o Dunga que, esse, não se esquecia, passava por nós em voo e mergulhava no quintal dos outros.
O drama repete-se. Ciclicamente. O Duarte chora de nervos. A minha mulher recomeçou a pedir uma caçadeira.
Quando me vê aproximar-me, pela rua, de Dunga pela coleira, a senhora vizinha adverte-me, numa mal contida agressividade:
- Não venha para aqui com essa enguia...
Nem lhe respondo, dignamente ofendido.
O Dunga tem murchado.
Isto é, transposto para o mundo canino, a tragédia de Romeu & Julieta.
Ou melhor, de Romeu & Romeu.
O que não podemos realmente escolher (senão em teoria) é a vizinhança.
Tenho um vizinho que inventou para si o título pomposo mas vazio de «Administrador da Rua». Na função que se concedeu, manda-me que não estacione o automóvel em determinados sítios ou que não ponha o caixote de lixo demasiado longe do meu portão - tudo isto «porque», quando chegámos «o bairro era já uma "piquena" aldeia, com as suas regras», que não estão escritas em lado nenhum, mas deveríamos acatar «em prol da harmonia da rua».
Este vizinho, de resto, é uma espécie de disléxico em matéria de cores de baldes do lixo previstas para os diferentes dias da semana. Falo do sistema da empresa «Tratolixo»: balde amarelo, para plásticos e metais, recolhido à segunda-feira por exemplo, balde azul, para papel e cartão, noutro dia. Eu e o meu filho inventámos um jogo: damos palpites ao acaso sobre a cor que o vizinho escolherá para cada dia. A única certeza é a de que nunca é a que deveria ser...
Ao lado de nós, partilhando um mesmo muro - um muro baixo, diga-se - está um casal de maus-fígados: um senhor careca e de bigode e uma senhora que oiço sempre aos gritos.
Uma vez, do seu alpendre, via-a vituperando contra um bando de meninas que saíam da escola. Não sei que lhe teriam feito. Mas a mulher dirigia-se, principalmente, à mais alta, garantindo-lhe:
- ... porque tu tens cara para apanhar um par de estalos, percebes!?
Ao que a menina, meio-paralisada, respondia:
- Está bem.
Foi este último casal que arranjou um mini-cão, um bicho pequeno, que se tornará um dia enorme a avaliar pelo tamanho da patorra, mas, entretanto, não passa de uma bolinha peluda.
O Dunga, meu cão de quem vos tenho falado, sentiu-lhe o cheiro no ar, tomou-se de amores, saltou o muro comum - o que nunca antes fizera - e passou a ensaiar surtidas, cada vez mais prolongadas, àquele apetecível quintal.
Estarrecidos, nós gritávamos:
- Dunga! AQUI! JÁ AQUI, DUNGA!!!
Mesmo que o Dunga quisesse, não poderia regressar pelos seus meios: o muro, baixo e fácil de transpor do nosso quintal para o quintal dos vizinhos, é, contudo, absurdamente alto no sentido inverso. Mas o pior é que o Dunga não quer: sexualmente inebriado, tremendo de excitação, tem como ideia única e fixa montar o cachorrinho.
É um espectáculo horroroso.
Lá pedíamos a um dos filhos do casal, assim que o apanhávamos a espreitar o que seria tanta gritaria, que fizesse o favor de pegar no nosso cão e no-lo devolver.
A menina, prestativa, tentava agarrar no Dunga - Dunga esse que, furioso pela interrupção, se tornava ameaçador e ladrava.
O meu filho pedia que o deixassem entrar. Mas o Dunga rosnava-lhe. Foi por isso que o Duarte, um dia, se saiu com esta espécie de poema espontâneo:
- Tenho medo do Dunga. Medo e raiva. Um dia fico tão furioso, que até o meu medo fica com medo de mim...
Quando o Duarte corajosamente o trazia apesar de tudo, prendíamos o cão em casa. E então víamo-lo, inconsolável, pendurado de uma janelinha com vista para o quintal do vizinho, ganindo baixinho, completamente apaixonado.
Quando nos esquecíamos e abríamos a porta, zás, o Dunga que, esse, não se esquecia, passava por nós em voo e mergulhava no quintal dos outros.
O drama repete-se. Ciclicamente. O Duarte chora de nervos. A minha mulher recomeçou a pedir uma caçadeira.
Quando me vê aproximar-me, pela rua, de Dunga pela coleira, a senhora vizinha adverte-me, numa mal contida agressividade:
- Não venha para aqui com essa enguia...
Nem lhe respondo, dignamente ofendido.
O Dunga tem murchado.
Isto é, transposto para o mundo canino, a tragédia de Romeu & Julieta.
Ou melhor, de Romeu & Romeu.
MAS ENTÃO SÓ O FREUD É QUE PRECISA DE SER REVISTO, NÃO?
Há alguns anos, quando o Y era ainda meu amigo e acabara de ter uma filha, não pegava na menina ao colo nem via com bons olhos que alguém se atrevesse a fazê-lo, e dizia, peremptório:
- Não se deve fazer isso. Ficam com uma perspectiva completamente distorcida do mundo: centrada neles próprios e vendo tudo e todos de cima para baixo.
Tenho de vos dizer, desculpem, que na altura as palavras de Y, a quem eu devotava uma admiração praticamente ilimitada, faziam para mim muito sentido, como, aliás, todas as suas teorias (Y era um teorizador nato). Neste caso particular, um sentido porventura bizarro e cruel, mas inegável.
Com o tempo, porém, Y passou-se.
Cortou relações comigo e com o resto dos amigos e da família. De mim, dizia que eu o perseguia e o vigiava escondendo-me por trás de caixotes de lixo. Parece que uma vez me terá mesmo visto a espreitá-lo, meio-oculto pelo seu frigorífico. Tudo, aliás, em conluio com a família - e, principalmente com a mãe, que ele acusava de estranhas macumbas.
A minha ideia, segundo ele, era apoderar-me de um programa de computador por si inventado e com o qual projectava tornar-se um segundo Bill Gates.
Pensando em tudo, recordando isto, julgo que terá havido, da minha parte, alguma sabedoria instintiva no facto de nunca ter passado as suas teorias à prática, por muito que me fascinassem; e nunca ter sido capaz de não pegar no meu filho ao colo...
- Não se deve fazer isso. Ficam com uma perspectiva completamente distorcida do mundo: centrada neles próprios e vendo tudo e todos de cima para baixo.
Tenho de vos dizer, desculpem, que na altura as palavras de Y, a quem eu devotava uma admiração praticamente ilimitada, faziam para mim muito sentido, como, aliás, todas as suas teorias (Y era um teorizador nato). Neste caso particular, um sentido porventura bizarro e cruel, mas inegável.
Com o tempo, porém, Y passou-se.
Cortou relações comigo e com o resto dos amigos e da família. De mim, dizia que eu o perseguia e o vigiava escondendo-me por trás de caixotes de lixo. Parece que uma vez me terá mesmo visto a espreitá-lo, meio-oculto pelo seu frigorífico. Tudo, aliás, em conluio com a família - e, principalmente com a mãe, que ele acusava de estranhas macumbas.
A minha ideia, segundo ele, era apoderar-me de um programa de computador por si inventado e com o qual projectava tornar-se um segundo Bill Gates.
Pensando em tudo, recordando isto, julgo que terá havido, da minha parte, alguma sabedoria instintiva no facto de nunca ter passado as suas teorias à prática, por muito que me fascinassem; e nunca ter sido capaz de não pegar no meu filho ao colo...
sábado, maio 13, 2006
GRAÇAS E DESGRAÇAS DE UM CÃO DO CARAÇAS (I)
O Dunga veio pequenino para o seio da nossa família: era um rafeiro meigo e lãzudo, com que procurávamos fazer esquecer, ao nosso filho único, então com cinco anos, a monomania de que lhe oferecessemos «um mano».
Quando, cinco anos mais tarde, o segundo filho acabou por nascer - uma menina -, o Dunga ressentiu-se enormemente: experimentou todos os ciúmes e angústias que haviam passado ao lado do Duarte.
Tornou-se briguento, estúpido e mau. Era uma fonte de permanentes desentendimentos: rosnava, chegou a morder, desobedecia sistematicamente, vingava-se dos ralhos e dos castigos fazendo chichi no tapete ou nos cortinados. Passava entre as grades verdes do quintal e fugia de casa.
Agarrados à ideia simplória de que os humanos são mais inteligentes dos que os canídeos, tapámos com uma rede os intervalos entre as grades por onde ele se escapulia. E ainda estávamos a terminar a obra-prima, já eu pensava precipitadamente: Homens: Um - Cães: Zero. Pois bem: o Dunga aprendeu rapidamente a soltar com os dentes as tirinhas que prendiam a rede às grades; abria espaços; continuou, portanto, a fugir.
Esmagávamo-lo sob uma disciplina espartana, ou esforçávamo-nos diligentemente por isso, mas, entretanto, vinha a minha sogra passar connosco aqueles eternos períodos de tempo imóvel e, nas nossas costas, subvertia as regras, furava as proibições, ria-se de nós em óbvia cumplicidade com o cão.
Em virtude de todo este processo, o Dunga degradava-se: mais velhote, hirsuto, sujo, feio e negligenciado, era como se tivéssemos recolhido um sem-abrigo antipático e de mau feitio. Parecia um trapo.
O Duarte já não tinha tempo nem vontade de brincar com ele, a minha mulher andava sempre à beira de um ataque de nervos, pronunciando palavras que me faziam temer seriamente pelo seu equilíbrio psicológico, como: «Ai, se tivesse aqui uma caçadeira...!» Eu, secretamente, começara a odiar o cão.
Em contrapartida, a minha filha, esse novo e central ser que emergira no meio de nós, dedicava ao cão uma atenção muito fixa. Assustava-se com os latidos despropositados em que o Dunga se estava a especializar, mas interessava-se muito por ele e o seu olhar seguia-o com uma uma curiosidade divertida.
O Dunga, pressentindo ali um aliado, nunca tentou fazer-lhe mal. Queria aproximar-se, cheirá-la, lamber-lhe as mãos.
Decidimos, portanto, levá-lo ao veterinário.
Tomou um fabuloso e exigente banho, foi tosquiado e desparasitado: no regresso, parecia outro.
Sem a sua lã negra e desgrenhada, tornava-se um cão magrinho e ágil, de patas finas, uns olhos lindíssimos, finalmente a descoberto, e uma cauda artisticamente aparada.
Quase instantânea e instintivamente, o amor que recalcáramos por tanto tempo desabou de novo sobre ele.
O interesse da minha filha mantém-se muito vivo. E o carinho que espontaneamente rebrotou, fácil, sem custo, fá-lo feliz e acalma-o como um soporífero.
Parece mesmo um final feliz. Claro que, infelizmente, a história continua - não foi por acaso que acrescentei ao título um «I».
Mas, entretanto, pergunto-me: se é este o poder afrodisíaco de uma simples tosquiadela, não estará na altura de eu próprio ir cortar o cabelo?
Quando, cinco anos mais tarde, o segundo filho acabou por nascer - uma menina -, o Dunga ressentiu-se enormemente: experimentou todos os ciúmes e angústias que haviam passado ao lado do Duarte.
Tornou-se briguento, estúpido e mau. Era uma fonte de permanentes desentendimentos: rosnava, chegou a morder, desobedecia sistematicamente, vingava-se dos ralhos e dos castigos fazendo chichi no tapete ou nos cortinados. Passava entre as grades verdes do quintal e fugia de casa.
Agarrados à ideia simplória de que os humanos são mais inteligentes dos que os canídeos, tapámos com uma rede os intervalos entre as grades por onde ele se escapulia. E ainda estávamos a terminar a obra-prima, já eu pensava precipitadamente: Homens: Um - Cães: Zero. Pois bem: o Dunga aprendeu rapidamente a soltar com os dentes as tirinhas que prendiam a rede às grades; abria espaços; continuou, portanto, a fugir.
Esmagávamo-lo sob uma disciplina espartana, ou esforçávamo-nos diligentemente por isso, mas, entretanto, vinha a minha sogra passar connosco aqueles eternos períodos de tempo imóvel e, nas nossas costas, subvertia as regras, furava as proibições, ria-se de nós em óbvia cumplicidade com o cão.
Em virtude de todo este processo, o Dunga degradava-se: mais velhote, hirsuto, sujo, feio e negligenciado, era como se tivéssemos recolhido um sem-abrigo antipático e de mau feitio. Parecia um trapo.
O Duarte já não tinha tempo nem vontade de brincar com ele, a minha mulher andava sempre à beira de um ataque de nervos, pronunciando palavras que me faziam temer seriamente pelo seu equilíbrio psicológico, como: «Ai, se tivesse aqui uma caçadeira...!» Eu, secretamente, começara a odiar o cão.
Em contrapartida, a minha filha, esse novo e central ser que emergira no meio de nós, dedicava ao cão uma atenção muito fixa. Assustava-se com os latidos despropositados em que o Dunga se estava a especializar, mas interessava-se muito por ele e o seu olhar seguia-o com uma uma curiosidade divertida.
O Dunga, pressentindo ali um aliado, nunca tentou fazer-lhe mal. Queria aproximar-se, cheirá-la, lamber-lhe as mãos.
Decidimos, portanto, levá-lo ao veterinário.
Tomou um fabuloso e exigente banho, foi tosquiado e desparasitado: no regresso, parecia outro.
Sem a sua lã negra e desgrenhada, tornava-se um cão magrinho e ágil, de patas finas, uns olhos lindíssimos, finalmente a descoberto, e uma cauda artisticamente aparada.
Quase instantânea e instintivamente, o amor que recalcáramos por tanto tempo desabou de novo sobre ele.
O interesse da minha filha mantém-se muito vivo. E o carinho que espontaneamente rebrotou, fácil, sem custo, fá-lo feliz e acalma-o como um soporífero.
Parece mesmo um final feliz. Claro que, infelizmente, a história continua - não foi por acaso que acrescentei ao título um «I».
Mas, entretanto, pergunto-me: se é este o poder afrodisíaco de uma simples tosquiadela, não estará na altura de eu próprio ir cortar o cabelo?
quinta-feira, maio 11, 2006
SOBRE O QUE AJUDA E O QUE DESAJUDA
O melhor que pode acontecer a um pensar em formação é deparar, no seu percurso, com um pensar mais forte - suficientemente forte para não desejar dominá-lo, rigoroso, crítico, exigente; o pior que lhe acontecerá, será encontrar e depender de um pensar fraco - tão fraco que anseie por dominá-lo -, superficial e benevolente.
segunda-feira, maio 08, 2006
O QUE NÃO VOLTA MAIS
Compreendo que me tornei, por fim, um homem, no momento em que encontro no sótão poeirento uma banda desenhada da Mafaldinha, corro para a sala para aproveitar o parco tempo que ainda me resta a sós em casa, deliciado, saudoso das personagens que me fizeram rir, e vou passando as páginas, à procura do Manelinho, da Susaninha, do Filipe, da Liberdade - cada vez mais cabisbaixo, esmorecido, voltando ainda atrás, esforçando para mim mesmo um pouco convincente sorriso, ou um sopro que não chega a conseguir passar por riso. Não foi a Mafaldinha que envelheceu: fui eu. Não foi o humor dela que se perdeu: foi o meu que se transformou.
Porque a Mafalda, aliás, a própria, nunca teve sentido de humor. Ríamo-nos das suas afirmações, da sua indignação em face das injustiças,mas a verdade é que nada, nela, era pensado ou dito com o intuito de ter graça. A piada residia precisamente nesse pormenor: a Mafaldinha via realmente o mundo assim, interrogava-o com veemência crítica. De certo modo, não nos ríamos com ela, mas à custa dela e do seu desajustamento de criança precoce num mundo estupidamente adulto.
O que descubro agora é que me enganei em relação a quase todos os meus heróis de adolescência. Por que raio gostava eu tanto do Bip-bip e me solidarizava com ele contra o coiote - quando, hoje, percebo que o Bip-bip é a simples encarnação da velocidade estúpida ou da estupidez veloz, uma ave rápida e sem outros dotes, que leva, contudo, sempre a melhor, sabe-se lá porquê, enquanto o coiote que, esse sim, é o protótipo do engenho e da astúcia, talvez mesmo da inteligência, ou de um magnífico maquiavelismo cheio de recursos, que se multiplica em planos, persistentemente, está destinado a cair de precipícios, a chocar com muros, a ver as suas bombas explodirem-lhe nas patas ou a apanhar com bigornas em cima..?
Hoje, claramente, estaria do lado do coiote. Ao mesmo tempo, reconheço que, sem a inocência que me fazia estar torcendo incondicionalmente pelo mais fraco, pela presa, as histórias fazem-me sentir levemente culpabilizado.
Também no Incrível Hulk tudo se tornou demasiado claro. O que eu apreciava na personagem era uma ambiguidade moral que nunca consegui desvendar e, de certo modo, me fascinava. O Hulk era bom ou era mau? Esta pergunta incómoda, que perturbava a minha natural necessidade de uma clareza maniqueista, trazia um leve travo de angústia. E, no entanto, tratava-se de uma angústia que me abria portas e me fascinava: se ele era bom (e devia ser: estávamos a falar da personagem principal), por que razão o perseguiam os polícias, às vezes o próprio exército? Tinha feito mal a alguém? Este sabor a confusão apaixonava-me. Hoje compreendo o Hulk; mais: compreendo que raramente os polícias e o exército constituem o lado «bom» de uma sociedade. Faz sentido. Mas sem o seu mistério intrínseco, o Hulk nunca mais me pareceu incrível.
Um adulto incapaz de regressar, por um momento que seja, aos heróis infanto-juvenis, e que até usa esta detestável expressão para se lhes referir, é um adulto defraudado.
Um adulto que perdeu de vista um tal segredo está prestes a tornar-se um tipo cinzento.
Um adulto que analisa tudo e olha cerebral e crescidamente para o Homem-Aranha, e que nunca mais voltou a querer ser o Batman, é um adulto que desperdiçou a sua infância.
Porque a Mafalda, aliás, a própria, nunca teve sentido de humor. Ríamo-nos das suas afirmações, da sua indignação em face das injustiças,mas a verdade é que nada, nela, era pensado ou dito com o intuito de ter graça. A piada residia precisamente nesse pormenor: a Mafaldinha via realmente o mundo assim, interrogava-o com veemência crítica. De certo modo, não nos ríamos com ela, mas à custa dela e do seu desajustamento de criança precoce num mundo estupidamente adulto.
O que descubro agora é que me enganei em relação a quase todos os meus heróis de adolescência. Por que raio gostava eu tanto do Bip-bip e me solidarizava com ele contra o coiote - quando, hoje, percebo que o Bip-bip é a simples encarnação da velocidade estúpida ou da estupidez veloz, uma ave rápida e sem outros dotes, que leva, contudo, sempre a melhor, sabe-se lá porquê, enquanto o coiote que, esse sim, é o protótipo do engenho e da astúcia, talvez mesmo da inteligência, ou de um magnífico maquiavelismo cheio de recursos, que se multiplica em planos, persistentemente, está destinado a cair de precipícios, a chocar com muros, a ver as suas bombas explodirem-lhe nas patas ou a apanhar com bigornas em cima..?
Hoje, claramente, estaria do lado do coiote. Ao mesmo tempo, reconheço que, sem a inocência que me fazia estar torcendo incondicionalmente pelo mais fraco, pela presa, as histórias fazem-me sentir levemente culpabilizado.
Também no Incrível Hulk tudo se tornou demasiado claro. O que eu apreciava na personagem era uma ambiguidade moral que nunca consegui desvendar e, de certo modo, me fascinava. O Hulk era bom ou era mau? Esta pergunta incómoda, que perturbava a minha natural necessidade de uma clareza maniqueista, trazia um leve travo de angústia. E, no entanto, tratava-se de uma angústia que me abria portas e me fascinava: se ele era bom (e devia ser: estávamos a falar da personagem principal), por que razão o perseguiam os polícias, às vezes o próprio exército? Tinha feito mal a alguém? Este sabor a confusão apaixonava-me. Hoje compreendo o Hulk; mais: compreendo que raramente os polícias e o exército constituem o lado «bom» de uma sociedade. Faz sentido. Mas sem o seu mistério intrínseco, o Hulk nunca mais me pareceu incrível.
Um adulto incapaz de regressar, por um momento que seja, aos heróis infanto-juvenis, e que até usa esta detestável expressão para se lhes referir, é um adulto defraudado.
Um adulto que perdeu de vista um tal segredo está prestes a tornar-se um tipo cinzento.
Um adulto que analisa tudo e olha cerebral e crescidamente para o Homem-Aranha, e que nunca mais voltou a querer ser o Batman, é um adulto que desperdiçou a sua infância.
domingo, maio 07, 2006
À ESPERA DE AJUDA MASCULINA
Mariana, que não conseguira adormecer por causa de uma sensação de desequilíbrio que não chegava a ser enjoo - a cabeça como se não tivesse corpo, o corpo como se não pudesse distinguir entre estar de pé e estar deitado -, soergueu-se repentinamente na cama, suando muito, como se a alma se quisesse despegar-se-lhe da carne, como se preferisse morrer de uma vez ao sacrifício de uma existência que se confundia com a má-disposição. Ou vomito ou morro, pensou. Ou vomito ou morro. Levantou-se. Correu, descalça, pelo corredor, até à casa de banho. Caiu ao pé da sanita, procurando, com as mãos, o frio do azulejo. Suava tanto. Sentia-se tão mal, tão mal, tão farta de ainda estar viva. Mas não vomitava. Percebeu que a sua ladainha, Ou vomito ou morro, ou vomito ou morro, se tornara inteiramente certa, um princípio religioso. Tenho de vomitar.
Ajoelhou-se, com as pernas a tremer, uma horrorosa fraqueza no corpo, uma fadiga que era o seu único motor vital, ou quase: o verdadeiro motor era a vontade de vomitar.
Baixou-se sobre a sanita. Pairou, como um corpo esvaído.
Introduziu um dedo na boca para forçar a erupção. Mais fundo. Mais. Engasgava-se, mas não mais do que isso.
Bruscamente, coitada, Mariana sentiu que algo, uma força, a empurrava por dentro de si, do estômago até à boca, cada vez mais decidida - um sobressalto, um rompante, uma dor nos músculos, um mal profundo e, sem chegar ao alívio, porque o esforço era enorme e se sobrepunha a tudo, ela vomitou.
Gritava como se parisse.
Uivava.
Estava só. Profundamente só. Não tinha pausas. Logo que uma primeira descarga tinha fim, chegava-lhe outra fúria das entranhas.
Gritava.
Até que ouviu, aí sim, pela primeira vez aliviada, entre os seus próprios urros e estertores, os passos do João, que se aproximava no corredor.
João ia ajudá-la. Segurar-lhe na cabeça que lhe doía. Apoiá-la, confortá-la. «Minha querida, minha querida». Anda, João, despacha-te, não vês que eu estou morrendo? Não vês? Anda, João. Parecia-lhe que o homem demorava uma eternidade a chegar. Ajoelhada, com a boca sobre o buraco da sanita, olhava, atenta, ansiosa, para a porta.
João chegou. Estava à porta. Querido João.
João disse-lhe, ensonado:
- Olha, meu amor, assim não consigo dormir. Amanhã tenho de acordar muito cedo. Vou fechar a porta da casa de banho por causa do barulho, está bem?
Fechou-a.
E regressou ao leito.
Ajoelhou-se, com as pernas a tremer, uma horrorosa fraqueza no corpo, uma fadiga que era o seu único motor vital, ou quase: o verdadeiro motor era a vontade de vomitar.
Baixou-se sobre a sanita. Pairou, como um corpo esvaído.
Introduziu um dedo na boca para forçar a erupção. Mais fundo. Mais. Engasgava-se, mas não mais do que isso.
Bruscamente, coitada, Mariana sentiu que algo, uma força, a empurrava por dentro de si, do estômago até à boca, cada vez mais decidida - um sobressalto, um rompante, uma dor nos músculos, um mal profundo e, sem chegar ao alívio, porque o esforço era enorme e se sobrepunha a tudo, ela vomitou.
Gritava como se parisse.
Uivava.
Estava só. Profundamente só. Não tinha pausas. Logo que uma primeira descarga tinha fim, chegava-lhe outra fúria das entranhas.
Gritava.
Até que ouviu, aí sim, pela primeira vez aliviada, entre os seus próprios urros e estertores, os passos do João, que se aproximava no corredor.
João ia ajudá-la. Segurar-lhe na cabeça que lhe doía. Apoiá-la, confortá-la. «Minha querida, minha querida». Anda, João, despacha-te, não vês que eu estou morrendo? Não vês? Anda, João. Parecia-lhe que o homem demorava uma eternidade a chegar. Ajoelhada, com a boca sobre o buraco da sanita, olhava, atenta, ansiosa, para a porta.
João chegou. Estava à porta. Querido João.
João disse-lhe, ensonado:
- Olha, meu amor, assim não consigo dormir. Amanhã tenho de acordar muito cedo. Vou fechar a porta da casa de banho por causa do barulho, está bem?
Fechou-a.
E regressou ao leito.
sexta-feira, maio 05, 2006
DIA DA MÃE NA CASA DA MINHA AMIGA SÃO
A minha amiga São quer, no Dia da Mãe, reunir um grupo de mães e de filhos para que estes possam proporcionar e dedicar àquelas uma qualquer criação sua: um poema, uma peça de teatro, uma música.
Deixo aqui em primeira mão o simplicíssimo texto que preparei para ler. É só o que vou fazer.
Eu sempre tive por esta mãe, mesmo quando já não era tão criança como isso, uma espécie de fé. Sempre esperei dela milagres e acreditei piamente que os faria.
Vou contar um episódio a que ela não assistiu, para mostrar de que tipo de fé vos estou a falar.
Quando eu tinha a idade do meu filho Duarte, ou era, talvez, um poucochinho mais novo, sentia um prazer inexplicável em andar no carro do meu tio António.
O tio António era um médico popular em Lourenço Marques, irmão de meu pai, proprietário de um bólide minúsculo, um descapotável, que corria pelas estradas sempre cheio de crianças. (O que hoje se não insinuaria, coitado do tio António...)
Num dia de Carnaval, o tio António levou-nos, a mim e aos meus primos, a uma festa que, penso eu, haveria algures na Baixa. Eu ia mascarado. Íamos todos mascarados.
O tio António buzinava numa buzina roufenha, já de si carnavalesca, enquanto nós, os garotos, lançávamos serpentinas pelo ar.
Subitamente, quando menos esperávamos, vimo-nos sugados para o interior de um caos de automóveis, ruídos e mascarados. (Os bêbedos e os mascarados eram, nessa época, o objecto superlativo dos meus terrores).
Os carros não se moviam. O ruído era, para recorrer a um lugar-comum, verdadeiramente ensurdecedor. E havia mascarados dançando por todo o lado, em cima de tejadilhos e de capôs, ou caindo sobre nós. Eu estava atordoado.
Já não me agradava tanto estar ali.
Sentia-me numa sucursal do inferno.
Então, aconteceu o pior:
Um carro, no meio da confusão, chocou, por trás, contra o bolidezinho do tio António.
Lembro-me de meu tio pondo-se, num instante, fora do automóvel para discutir, de pé, com o outro condutor, um senhor vestido de mulher; lembro-me desse senhor estar muito zangado, com as veias do pescoço inchadas; lembro-me dos seus perdigotos como se os revisse.
Lembro-me de mais pessoas que se vinham aproximando, quase todas mascaradas e algumas previsivelmente bêbedas, ou seja, um bando juntando descoordenadamente os meus dois maiores medos.
Lembro-me do tio António tomando nota, num caderninho, ou numa agenda, de não sei que dados do homem vestido de mulher.
Lembro-me, por fim, de que naquela confusão, a única coisa que eu repetia, meio escondido no bólide amachucado, era, com voz de choro:
- Se a minha mãe aqui estivesse...! Ah, se a minha mãe aqui estivesse...
Ninguém me ouvia por dentro da gritaria, dos apitos, das bebedeiras e da mascarada. Mas eu insistia, como numa oração, profundamente convicto:
- Se a minha mãe aqui estivesse!
Deixo aqui em primeira mão o simplicíssimo texto que preparei para ler. É só o que vou fazer.
Eu sempre tive por esta mãe, mesmo quando já não era tão criança como isso, uma espécie de fé. Sempre esperei dela milagres e acreditei piamente que os faria.
Vou contar um episódio a que ela não assistiu, para mostrar de que tipo de fé vos estou a falar.
Quando eu tinha a idade do meu filho Duarte, ou era, talvez, um poucochinho mais novo, sentia um prazer inexplicável em andar no carro do meu tio António.
O tio António era um médico popular em Lourenço Marques, irmão de meu pai, proprietário de um bólide minúsculo, um descapotável, que corria pelas estradas sempre cheio de crianças. (O que hoje se não insinuaria, coitado do tio António...)
Num dia de Carnaval, o tio António levou-nos, a mim e aos meus primos, a uma festa que, penso eu, haveria algures na Baixa. Eu ia mascarado. Íamos todos mascarados.
O tio António buzinava numa buzina roufenha, já de si carnavalesca, enquanto nós, os garotos, lançávamos serpentinas pelo ar.
Subitamente, quando menos esperávamos, vimo-nos sugados para o interior de um caos de automóveis, ruídos e mascarados. (Os bêbedos e os mascarados eram, nessa época, o objecto superlativo dos meus terrores).
Os carros não se moviam. O ruído era, para recorrer a um lugar-comum, verdadeiramente ensurdecedor. E havia mascarados dançando por todo o lado, em cima de tejadilhos e de capôs, ou caindo sobre nós. Eu estava atordoado.
Já não me agradava tanto estar ali.
Sentia-me numa sucursal do inferno.
Então, aconteceu o pior:
Um carro, no meio da confusão, chocou, por trás, contra o bolidezinho do tio António.
Lembro-me de meu tio pondo-se, num instante, fora do automóvel para discutir, de pé, com o outro condutor, um senhor vestido de mulher; lembro-me desse senhor estar muito zangado, com as veias do pescoço inchadas; lembro-me dos seus perdigotos como se os revisse.
Lembro-me de mais pessoas que se vinham aproximando, quase todas mascaradas e algumas previsivelmente bêbedas, ou seja, um bando juntando descoordenadamente os meus dois maiores medos.
Lembro-me do tio António tomando nota, num caderninho, ou numa agenda, de não sei que dados do homem vestido de mulher.
Lembro-me, por fim, de que naquela confusão, a única coisa que eu repetia, meio escondido no bólide amachucado, era, com voz de choro:
- Se a minha mãe aqui estivesse...! Ah, se a minha mãe aqui estivesse...
Ninguém me ouvia por dentro da gritaria, dos apitos, das bebedeiras e da mascarada. Mas eu insistia, como numa oração, profundamente convicto:
- Se a minha mãe aqui estivesse!
ÚLTIMAS NOVIDADES
Não pensem, invisíveis e silenciosos leitores, que se livraram de mim.
Sucede simplesmente que tenho o computador avariado. Com o monitor a piscar, a piscar.
Raramente tenho podido aceder.
Mas tudo tem arranjo. Mais tarde ou mais cedo.
Voltarei.
Aaaaaah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah!
VOLTAREI.
Sucede simplesmente que tenho o computador avariado. Com o monitor a piscar, a piscar.
Raramente tenho podido aceder.
Mas tudo tem arranjo. Mais tarde ou mais cedo.
Voltarei.
Aaaaaah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah ah!
VOLTAREI.
domingo, abril 30, 2006
EM DEFESA DE SIGMUND FRAUDE
1. Nos anos setenta, quando a psicanálise invadira, de alguma forma, o discurso de qualquer gato-pingado e não havia conversa de café que não estivesse recheada do jargão freudiano, alguma coisa nesse abuso começou a cansar-me e a soar-me a exagero: demasiado sexo (no sentido em que diríamos de alguém que não viveu senão para isso e disso morreu), demasiado inconsciente e demasiados complexos vinham explicar e justificar os comportamentos mais inocentes - e isso porque, num certo sentido (o sentido psicanalítico, justamente), não havia comportamentos inocentes.
2. Nos anos oitenta li, com surpresa, um dos primeiros artigos em que o nome «Freud» aparecia associado ao termo «fraude», permitindo jogos de palavras que faziam vir ao de cima um inesperado recalcado feito de erros, de enganos, de imposturas.
3. Passando, ontem, uma vista de olhos por uma das centenas de revistas do Expresso, que não quer deixar de assinalar o século e meio do nascimento de Freud, assusto-me um pouco com a forma como a intelectualidade mudou de ideias desde o tempo abusivamente freudiano da minha adolescência, e parece agora comprazer-se na destruição sistemática da herança do Sigismundo. Desde o seu mau feitio e a sua relação difícil com os amigos, até às mentiras que publicou a propósito das terapias - que, afinal, raramente teriam sido tão bem sucedidas como as descreveu -, passando pelos roubos intelectuais, tudo se conjuga e amontoa para fazer da psicanálise a maior mistificação do século.
4. Mas que significa exactamente isso? Que não há «inconsciente»? Que não existe «superego»? Que o sonho, seja ou não «a realização cifrada dos nossos desejos», como o pretendia Freud, não é, sequer, uma expressão do nosso inconsciente? Que não é, em última análise, uma expressão «interpretável»? Ou que, na verdade, o sexo não tem, no homem e na vida humana, o peso que a psicanálise lhe atribuiu? Ou que não está presente na infância - e as crianças são, de facto, os anjos assexuados que a rainha Vitória teria gostado que fossem...?
5. Não contesto que, na base, a psicanálise seja, antes de mais, um brilhante mito. Um mito, isto é, uma explicação da vida e dos comportamentos humanos segundo os actos de deuses antropomórficos: o «ego», o «id», o «superego» são deuses em guerra e em paz, o «sexo» é um Zeus que tudo controla poderosamente, as «neuroses» são duendes maléficos contra os quais o homem tem de se proteger através das novas formas de oferenda e sacrifício patrocinados pela psicanálise. Nem contesto que, na criação dessa mitologia esteja um outro ser mitológico, o próprio Freud, um deus desrespeitador, pouco íntegro, arrogante e vaidoso. Contesto é que, em face dessa genial fabricação, desse romance acerca dos nossos impulsos, não reste hoje nada senão desprezo e desconfiança. Porque, na minha perspectiva, o que se faz é - como em tudo -, passar-se de um fascínio ilimitado, para um radical e sistemático apagamento do significado, a vários títulos extraordinário, da psicanálise. Ou seja, passa-se de uma hipérbole de sinal positivo para uma hipérbole de sinal negativo...
6. Culturalmente, nem vale a pena lembrar o que a psicanálise indirectamente alimentou em todas as áreas: da poesia e da literatura à pintura, à música ou ao cinema (e por que se associa tão raramente Hitschkock à psicanálise?), nada terá ficado imune ao contágio. Nos domínios da hermenêutica e da crítica - com os exageros do costume -, ou na filosofia, o nosso pensamento é inteiramente freudiano, do mesmo modo que é marxista: mesmo que (em certos casos, «sobretudo se») não somos freudianos e não somos marxistas.
7. Mas, mais do que isso, insisto em que a psicanálise é uma ciência: não, naturalmente, no sentido estrito em que Popper a define - mas por que razão deveremos aceitar que é a Popper que cabe traçar as derradeiras fronteiras entre o científico e o não-científico?
(Se, neste momento, Popper é ainda respeitado como uma espécie de papa da epistemologia, não será bom começarmos a temer pela forma como possam depois vir a tratá-lo, quando se descobrir que, afinal, sob o mito havia um homem com vícios e defeitos?)
É uma ciência no sentido em que nos forneceu instrumentos e conceitos, porventura não-falsificáveis na acepção popperiana, mas, contudo, inteligentíssimos e, indiscutivelmente, eficazes, produtivos, riquíssimos de consequências.
Ou chamemos-lhe uma quase-ciência: um terreno minado onde, como se diria de droga, o «bom» produto se mistura e confunde com produto «mau», onde muito está por testar e provar, onde intuições, as mais das vezes geniais, carecem inteiramente de confirmação ou foram falsamente «confirmadas». É uma ciência marcada pelo charlatanismo. É uma ciência carregada de mito. Sim.
Mas, precisamente: não é, de algum modo, toda a história da ciência, esta mesma mistura? Esta amálgama de intuição e racionalidade?
Não é muitas vezes confusa, nessa história, o limite onde acaba o charlatanismo e começa o inatacável rigor científico?
2. Nos anos oitenta li, com surpresa, um dos primeiros artigos em que o nome «Freud» aparecia associado ao termo «fraude», permitindo jogos de palavras que faziam vir ao de cima um inesperado recalcado feito de erros, de enganos, de imposturas.
3. Passando, ontem, uma vista de olhos por uma das centenas de revistas do Expresso, que não quer deixar de assinalar o século e meio do nascimento de Freud, assusto-me um pouco com a forma como a intelectualidade mudou de ideias desde o tempo abusivamente freudiano da minha adolescência, e parece agora comprazer-se na destruição sistemática da herança do Sigismundo. Desde o seu mau feitio e a sua relação difícil com os amigos, até às mentiras que publicou a propósito das terapias - que, afinal, raramente teriam sido tão bem sucedidas como as descreveu -, passando pelos roubos intelectuais, tudo se conjuga e amontoa para fazer da psicanálise a maior mistificação do século.
4. Mas que significa exactamente isso? Que não há «inconsciente»? Que não existe «superego»? Que o sonho, seja ou não «a realização cifrada dos nossos desejos», como o pretendia Freud, não é, sequer, uma expressão do nosso inconsciente? Que não é, em última análise, uma expressão «interpretável»? Ou que, na verdade, o sexo não tem, no homem e na vida humana, o peso que a psicanálise lhe atribuiu? Ou que não está presente na infância - e as crianças são, de facto, os anjos assexuados que a rainha Vitória teria gostado que fossem...?
5. Não contesto que, na base, a psicanálise seja, antes de mais, um brilhante mito. Um mito, isto é, uma explicação da vida e dos comportamentos humanos segundo os actos de deuses antropomórficos: o «ego», o «id», o «superego» são deuses em guerra e em paz, o «sexo» é um Zeus que tudo controla poderosamente, as «neuroses» são duendes maléficos contra os quais o homem tem de se proteger através das novas formas de oferenda e sacrifício patrocinados pela psicanálise. Nem contesto que, na criação dessa mitologia esteja um outro ser mitológico, o próprio Freud, um deus desrespeitador, pouco íntegro, arrogante e vaidoso. Contesto é que, em face dessa genial fabricação, desse romance acerca dos nossos impulsos, não reste hoje nada senão desprezo e desconfiança. Porque, na minha perspectiva, o que se faz é - como em tudo -, passar-se de um fascínio ilimitado, para um radical e sistemático apagamento do significado, a vários títulos extraordinário, da psicanálise. Ou seja, passa-se de uma hipérbole de sinal positivo para uma hipérbole de sinal negativo...
6. Culturalmente, nem vale a pena lembrar o que a psicanálise indirectamente alimentou em todas as áreas: da poesia e da literatura à pintura, à música ou ao cinema (e por que se associa tão raramente Hitschkock à psicanálise?), nada terá ficado imune ao contágio. Nos domínios da hermenêutica e da crítica - com os exageros do costume -, ou na filosofia, o nosso pensamento é inteiramente freudiano, do mesmo modo que é marxista: mesmo que (em certos casos, «sobretudo se») não somos freudianos e não somos marxistas.
7. Mas, mais do que isso, insisto em que a psicanálise é uma ciência: não, naturalmente, no sentido estrito em que Popper a define - mas por que razão deveremos aceitar que é a Popper que cabe traçar as derradeiras fronteiras entre o científico e o não-científico?
(Se, neste momento, Popper é ainda respeitado como uma espécie de papa da epistemologia, não será bom começarmos a temer pela forma como possam depois vir a tratá-lo, quando se descobrir que, afinal, sob o mito havia um homem com vícios e defeitos?)
É uma ciência no sentido em que nos forneceu instrumentos e conceitos, porventura não-falsificáveis na acepção popperiana, mas, contudo, inteligentíssimos e, indiscutivelmente, eficazes, produtivos, riquíssimos de consequências.
Ou chamemos-lhe uma quase-ciência: um terreno minado onde, como se diria de droga, o «bom» produto se mistura e confunde com produto «mau», onde muito está por testar e provar, onde intuições, as mais das vezes geniais, carecem inteiramente de confirmação ou foram falsamente «confirmadas». É uma ciência marcada pelo charlatanismo. É uma ciência carregada de mito. Sim.
Mas, precisamente: não é, de algum modo, toda a história da ciência, esta mesma mistura? Esta amálgama de intuição e racionalidade?
Não é muitas vezes confusa, nessa história, o limite onde acaba o charlatanismo e começa o inatacável rigor científico?
sexta-feira, abril 28, 2006
O INFERNO
Da brutal Divina Comédia de Dante Alighieri, a última parte, «O Paraíso», parece-me um final insípido para a obra. Mas sejamos justos: insípido precisamente porque, quem leu as partes anteriores, e se deixou arrebatar por elas, não se pode conformar nem satisfazer com uma conclusão que não está à medida da tensão e do prazer (literário, poético, estético) que tinham vindo a crescer em si. Mesmo a parte do meio, «O Purgatório», parece-me insuficiente ou, pelo menos, esquecível. Pelas mesmas razões: falta-lhe a tensão trágica do início, aquela dor que nos toca e comove, a crueldade que tudo impregna e nos dilacera de um modo sublime.
Que início é esse? «O Inferno».
Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudessemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra complexa e, sobretudo, completa. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo, que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a sublime dimensão do seu «Inferno».
Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condena as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...
Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada, por um lado, e de uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado, mas porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?
É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser interpretadas em interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se catiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.
É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.
Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.
Que início é esse? «O Inferno».
Se as partes finais da Comédia nos parecem desequilibradas e frágeis, se nos cansam, é porque o «O Inferno» já nos deu tudo. Deu-no-lo de uma forma terrível, triste, como se pudessemos ouvir o choro e o ranger de dentes. Deu-no-lo de uma forma por vezes insuportável, roçando o mau gosto e a morbidez. Mas deu-no-lo. Poética e dramaticamente, psicológica e filosoficamente, «O Inferno» é uma obra complexa e, sobretudo, completa. Só por um equívoco se pode ter pensado que ela deveria - ou poderia - ser continuada. Na verdade, «deveria»: Dante, crente, não tinha alternativa senão mostrar que o inferno não é tudo, que, pelo contrário, para quem escolhe bem, para quem escolhe O Bem, é o céu que se apresenta como a feliz totalidade. Deveria, portanto, tê-lo feito. Mas não «poderia». Porque não lhe era possível superar a sublime dimensão do seu «Inferno».
Dante é o poeta que nos narra como, conduzido por Virgílio, ali seu guia, morto e jazendo no inferno, visita e conhece os diversos círculos infernais, onde se vão cruzando com as almas condenadas de contemporâneos de Dante, homens e mulheres que, manchados por imperdoáveis pecados, teriam sido lançados no lugar de maldição. É ignóbil, podemos pensar. Com que direito julga Dante os seus contemporâneos, ou os homens do seu passado recente e do passado antigo? Com que legitimidade a sua «visão», o seu poema, lhes condena as almas?
Dante: «Essa hiena», lhe chama Nietzsche, «essa hiena que uiva por entre as sepulturas»...
Mas o que me fascina no olhar de Dante é um subtilíssimo veio de piedade e simpatia por alguns dos seres que ele vê no inferno, e o misto dessa simpatia apiedada, por um lado, e de uma rígida aceitação do implacável plano divino que os castiga para sempre.
Dante «compreende» a ira de Deus, o modo como Ele condena à eterna consumação algumas das almas mais nobres e justas da História? Dante «compreende» que Virgílio esteja no inferno, tal como, aliás, o próprio Platão ou Aristóteles? «Compreende-o» com o seu coração? Não pode compreender, porque os admira, porque aprendeu das suas obras, porque Virgílio foi o seu guia, o seu mestre, o seu duce, aquele com cuja poesia, porventura, aprendeu a ser poeta - mas, não compreendendo, aceita intelectualmente, num acto de fé de profundas tristeza e amargura, porque sabe que, sendo eles anteriores historicamente ao cristianismo, não poderiam ser salvos pela Verdade que, coitados, não conheceram. É uma concepção que nos soa como de uma terrível injustiça. A punição não pune só os maus, pune também os que, inocentemente, não conheceram conheceram a Luz. Não que a tivessem recusado, mas porque não foram do tempo histórico em que ela se ofereceu aos homens.
Mostra-nos esse sentimento de piedade um outro momento tremendo do poema: quando Dante vê, no círculo dos que cometeram adultério, duas almas enamoradas que, na pena eterna, na infelicidade eterna, têm, pelo menos, a felicidade de haverem permanecido eternamente juntas. Mas não é extraordinária a comoção que invade Dante, quando a história dos dois jovens pecadores lhe é narrada, a beleza que irradia desse seu acto em vida, ao mesmo tempo pecaminoso e amoroso? Não é extraordinária a forma como, por fim, Dante desmaia, como esmagado pela sublimidade daquele sofrimento?
É um inferno sombrio, apaixonado, cruel, de castigos extremos, de torturas terríveis. É um inferno onde o mal se nos apresenta carregado de tensão e dor. Sonhamos com ele. Assombra-nos. Distorce-nos os pesadelos e a imaginação. Nunca esqueceremos determinadas figuras da dor e do arrependimento.
É um poema magnífico onde - Jorge Luis Borges, mais do que ninguém, chamou-me a atenção para isso - as frases podem ser interpretadas em interpretações que se sobrepõem sem se anularem e, às vezes, anulando-se. É um inferno em que tudo tem de ser compreendido a uma luz muitas vezes diferente da luz da aparência: é o mesmo Borges que nos afirma que o pecado pelo qual se catiga Ulisses não é o pecado de que, à primeira vista, ali se fala, o da fraude: é antes um outro pecado, um pecado oculto, que nunca chega a ser dito e o leitor pode nem sequer descobrir.
É um poema com várias leituras possíveis: uma, histórica, uma, puramente estética, uma, filosófica, uma, religiosa. Ou uma múltipla.
Dir-se-á que a menos viável, hoje em dia, é a religiosa. Que nem mesmo uma pessoa crente poderá crer no inferno de Dante. Do meu ponto de vista, é um erro. Para mim, que não sou religioso, que me pavoneio no mais frio e racional ateismo, a leitura religiosa do «Inferno» é inevitável: o impossível inferno torna-se-me presente, indiscutível, e creio nele enquanto os meus olhos seguem os versos impressionantes.
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