quinta-feira, dezembro 20, 2007

O PRESÉPIO À LUZ DE BUGZ

Bugz viajava há muitos anos-luz pelo espaço intergaláctico.
Não tinha propriamente um objectivo: primeiro, fora feito prisioneiro por um grupo de mercadores vvvenyxianos, que pensavam vendê-lo como escravo; com grande dificuldade e alguns combates, rompendo-se todo, perdendo a cauda pelo caminho (que precisaria de muito tempo para tornar a crescer), tinha conseguido fugir, num pequeno planeta em que a nave parara para se abastecer; aceitara, depois, boleia de um grupo de komodorz, todas do sexo feminino, embora durante o tempo da viagem, com grande pena sua, não tivesse chegado a compreender a anatomia delas, nem o seu funcionamento sexual; as komodorz é que, fartas de tantas investidas, se tinham livrado dele, que, entretanto, tomou boleia de um velho humpfg, o qual, após uma vida preenchida, se dirigia para o próprio planeta natal, para morrer. Quando se separaram, Bugz decidiu jogar a recém-adquirida nave. Perdeu-a ao jogo, já na via láctea.
Esfomeado, sem alternativas, roubou uma schvaz-de-um-lugar, dourada e velocíssima, e prosseguiu a sua odisseia até um planeta azul, convidativo e sereno...

Nessa noite, dos céus, brilhando muito, como uma luz, como se fosse uma estrela (por efeito da schvaz-de-um-lugar que o transportava), Bugz assistiu a um estranho quadro de seres terrestres. Um quadro de luz e salvação.

Havia um ser maravilhoso, terno e doce, com um bafo cálido, deitado sobre uma meda de palha; tinha uma longa cauda e chifres, exactamente como as deliciosas fêmeas do seu próprio planeta; havia, a seu lado, o que, porventura, seria o seu macho, um ser de longas orelhas e dentes grandes.
Outros seres, fatigados, lentos, pareciam vir de longe, de muito longe (na perspectiva do planeta), para adorarem o casal: três criaturas amareladas, de bossas, chegavam carregando oferendas sobre o seu dorso; iam, percebia-se perfeitamente, oferecer-lhes aqueles animais ricamente vestidos, ornamentados e com coroas, que os montavam.
De outros lugares, aproximavam-se ainda outros maravilhosos seres, de quatro patinhas finas, vestindo de caracóis esbranquiçados. Também traziam, pela arreata, os seus presentes: uns animais monstruosos, só com duas pernas e dois braços, sem pêlos, a não ser no alto da cabeça e, alguns deles, com uma massa pilosa no queixo.
Aliás, no interior da gruta, dois seres dessa espécie, com duas pernas cada um, não mais, aqueciam o ser de chifres e o de longas orelhas.
Algures, sobre umas palhinhas, algo berrava. Era, com certeza, a música que se fazia naquele planeta.
Bugz sentia a alma inundada de paz.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

OS ASPIRANTES A INTELECTUAIS NA POLÍTICA

É evidente que um mundo de intelectuais estaria infinitamente longe da perfeição. Sobretudo se se parecessem todos com o Pacheco Pereira. E que faríamos nós, que faria eu, sobretudo,sem um canalizador? Que faria se me obrigassem a pregar pregos?
Também me não parece imprescindível que as pessoas que se dedicam, por exemplo, à política, tenham de ser intelectuais. Para quê? Onde poríamos o Jerónimo de Sousa? Gostaríamos de um parlamento inteiramente talhado à imagem de Louçã? (Imaginem, sem desmaiar, uma série de Louçãs, da Esquerda à Direita, defendendo Causas diferentes, obviamente, até antagónicas, mas todos eles com a mesma certeza da sua razão, a mesma voz dramaticamente tensa de pessoa incapaz de relaxar e o mesmo nariz?)
O problema é outro: é que, não sendo todos, nem devendo ser todos igualmente intelectuais, os políticos poderiam, então, descobrir o seu jeito e estilo próprios, a sua natureza respectiva. Haveria o Deputado-canalizador, o Deputado-torneiro-mecânico, o Deputado-desempregado e por aí fora. Quando (perdoem-me o aparente snobismo) um político que nada tem de intelectual, como o Mendes Bota, quer por força fazer-se passar por tal, o resultado só pode ser penoso. Mendes Bota a querer convencer-nos de que é intelectual, dá bota, pela certa.

O senhor José Sócrates funciona, neste particular, como um exemplo terrível.
O convívio prolongado tem destas coisas: tendo convivido com Guterres que, diga-se o que se disser, é um homem de letras, apesar de Engenheiro (Engenheiro-a-sério), que fala com fluência e à-vontade diversas línguas, ouve música clássica, compra o Times, The Independent, Corrieri de la Sera, Le Monde e leu, em inglês, os escritos de Churchill (dos quais, aliás, tirou pouco proveito prático); tendo convivido com Durão Barroso que, diga-se o que se disser - e espero que se diga bastante mal -, é um sujeito com alguma cultura, posto que lia, na juventude, Mao Tse Tung, e que fala o seu inglês e o seu francês, José Sócrates albergou sempre o sonho secreto, inconfessado, de ser como eles.
Em mais do que uma entrevista, desatou a perorar - sempre muito a despropósito - de livros que o teriam marcado, logo a ele, tão rígido que dificilmente se deixaria marcar por um livro, a não ser que fosse uma lista telefónica caindo-lhe em cima...; em vários momentos, puxou do seu inglês técnico, incorrecto e incompetente, sem pudor nem vergonha. Em vários momentos semeou citações, procurou trepar até ao pináculo das ideias, dos debates filosóficos, da fundamentação teórica.
Não é que o não possa. Não é que, para o fazer, tenha de ser membro de um clube com uma indicação à porta, no género de: «Pessoas sem Cultura não Entram»; e não pensem que o digo por mim, como se me causasse alguma repugnância cruzar-me, num clube de intelectuais, com não-intelectuais a fingir que o são. Trata-se, para começar, de algo que eu não quero parecer de modo algum: e se não tenho remédio senão reconhecer que o sou, «tecnicamente», por ofício e formação, esclareço que não me reconheço na imagem, nem no folclore, nem, digamos, no uniforme que haveria que vestir. Retomo, aí, a deliciosa ironia de Groucho Marx: «Nunca aceitaria fazer parte de um clube que se rebaixasse a aceitar-me como sócio».
E, portanto, o que me incomoda é simplesmente o puro jogo das aparências. O faz-de-conta. O passar-se por. Sem mais.
Santana deixando-se fotografar com Le Monde Diplomatique sob o braço, ou confessando que a sua música preferida sempre foi um certo «Chopin para violino», ou Sócrates citando as obras que lia na adolescência, quando, na prática, tem quem tem no Ministério da Cultura e tem quem tem no Ministério da Educação, são coisas que não poderiam deixar de me provocar uma leve náusea.
Leve. Só. É um desabafo.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. SEXTO CAPÍTULO (macabro e carregado de mau gosto, como convém)

James Lawford não pôde deixar de se aperceber da expressão de puro terror com que Caveira acatou a ordem de Mrs. Miriam.
- Estou cansado, realmente. Vou-me estender um pouco. Boa note, Mr. Lawford.
Saiu, trôpego, morrendo aos poucos.
- Então o Leo ainda cá está? - perguntou James.
-Sim, sim. Já lhe disse. Venha. Venha, que eu levo-o até ele. - A pausa que se seguiu foi tremenda. Mas as palavras que a quebraram, não o acalmaram. - Com que então conheceu Rudolph, não? - O tom da mulher era tenso, ligeiramente rouco. O olhar dela perseguia-o, febril. Prosseguiu. - Eu não sei o que ele lhe disse. Mas é preciso não acreditar em Rudolph, sabe? Nada do que ele diz é inteiramente verdade. Ele contou-lhe a fantasia de que foi escravo de uma velha? E disse-lhe o que lhe fez? Ou disse que fui eu que o fiz? Às vezes, acusa-me.
- Vagamente. - Logo que respondeu, percebeu que se tratava de uma resposta comprometedora. Não a dava por ingenuidade mas, no fundo, por ser incapaz de mentir diante dos olhos de Mrs. Miriam que o vasculhavam até às entranhas. Mudou de conversa. - O Leo? Onde vamos?
- Não houve velha nenhuma -, insistia ela. - É um delírio. Ninguém a comeu.

Entraram na cozinha.
- Olhe, não está aqui -, disse a mulher. - Pensei que sim, como ouvi ruído, julguei que tivessem vindo comer alguma coisa. Mas sente-se, Mr. Lawford, sente-se aqui um pouco. Não quer um pastelinho? Eu volto já, vou ver se lhe trago Leo. Estão com certeza no quarto. Diabo de rapazes.
Enquanto Mrs. Miriam saía, transportando consigo a pá, James principiou a sentir-se mais nervoso do que nunca. A ausência de Leo incomodava-o de uma forma bizarra. Sentia que uma angústia se apoderava lentamente do seu peito. O coração batia descompassadamente. Ouviu ganir. Não. Gritar, lá em cima. Rudolph, cadáver ambulante, pobre de Cristo crucificado, uivava de um modo que se lhe cravava no pescoço. Não foi capaz de se sentar. Andava de um lado para o outro. Leo, pensava! Onde estás tu? Onde estás tu?, perguntava-se em surdina, entre trovões que faziam estremecer a noite.
Reparou na caixa dos pastéis.
Retirou, delicadamente, um, segurando-o entre dois dedos, como se fosse uma pinça.
- Só faltava que a bruxa me envenenasse com um pastel - suspirou. E, no momento imediato, perante o absurdo da ideia, sorriu e acalmou.
Não tinha fome, mas mastigou o pastel como se fosse uma pastilha, algo que o fizesse mascar, que lhe permitisse movimentos em que concentrasse a sua energia angustiada.
Tenro. Tenro. Muuuito tenro e saboroso.
Bruscamente, cuspiu qualquer coisa.
Uma unha. Uma unha suja.
Instantaneamente, estupidamente, associou aquela unha a uma memória, e sussurrou:
- É verdade, não posso esquecer-me de dizer ao Leo para cortar as unhas. Está com elas tão sujas...

O horror desta associação, o significado profundo da relação que lhe surgia no espírito deixou-o apavorado. Cuspiu o pastel. Fora uma compreensão súbita, como um hediondo e repugnante relâmpago. Se tivesse demorado mais tempo a perceber, teria morrido sem saber o que tinha acontecido. Assim, a intuição trágica da verdade foi a última iluminação que teve em vida porque, no momento seguinte, uma pá pesada caía sobre a sua cabeça, fendia-a, matava-o.

Caiu no chão, o seu rosto sobre a pequena e suja unha.

terça-feira, dezembro 11, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. QUINTO CAPÍTULO

O homem olhava-o, com uma espuma esbranquiçada entre os lábios entreabertos.
James pensou: «Tenho medo disto!»
Porquê? Bem: porque o Cadáver lhe confessara tanto sobre si mesmo, que, certamente, não o deixaria sair dali vivo. Como o libertaria, se lhe havia contado até que era um ser sem identidade (e assim quereria permanecer, sem dúvida), que nada, nenhum documento, registo algum provava, sequer, que existia? Pior: como o libertaria, depois de lhe ter dito que matara a velha?
(Ah, sim, James Lawford não tinha a menor hesitação acerca desse pormenor; soubera ler nas entrelinhas, soubera interpretar o eufemismo quase delicado: «Eu já não podia suportá-la mais», sussurrara-lhe Caveira Crucificada, «e ela morreu».)

Contudo, imediatamente a seguir, foi-se compenentrando de que, afinal, não tinha medo. Medo de quê? Porquê? Caveira Crucificada expusera-se de mais - e a verdade é que nós só tememos o que não vemos inteiramente, o que se nos oculta em parte, o que se resguarda na sombra. Caveira mostrara-lhe os seus ridículos. Era penoso de ver, não terrível. Respirava mal, cansava-se facilmente. Tinha orelhas grandes. Que mal poderia advir, a James, daquela figura patética, agora que não era um simples, tenebroso e desconhecido vulto à janela, entre relâmpagos, mas um pobre de Cristo?

Nesse momento, Mrs. Miriam surgiu.
Trazia uma pá na mão.
James Lawford reparou que Cadáver principiara a tremer, como se a presença da senhora o atemorizasse.
- Ah, Mrs. Miriam, trouxe a pá, que bom. Vamos? - perguntou James.
A senhora não o olhava. Fitava Cadáver.
- Não pode ir agora, Mr Lawford.
- Porquê?
- Porque ainda está a chover muito.
Cadáver calara-se. Babava-se. Parecia, mais do que nunca, um cadáver, um Cristo crucificado, um doente.
- Mas tenho de ir, Mrs. Miriam. Leo está à minha espera.
- Ah, pois, isso é outra coisa que eu tinha para lhe dizer. Afinal, enganei-me. Penso que Leo ainda cá está.
- Mas tinha-me dito...
- Pois disse, eu sei. Julguei que. Julguei que. Mas afinal não. Afinal não. Desculpe. Ouvi-os a falar, quando passei pelo quarto. São tão amiguinhos. Estão lá os dois. A estudar, é claro.
Cadáver pusera-se de costas, como para se entregar totalmente ao calor da lareira. Voltou-se de novo para ela:
- Mas, Miriam, não seria melhor...?
Mrs. Miriam olhou Cadáver nos olhos, segurando na pá com uma força nervosa.
- Sobe! - disse-lhe, simplesmente.
Deu dois passos. Como se não se tivesse movido do mesmo lugar. Como se não houvesse, na ligeira aproximação, propriamente uma ameaça.

(CONTINUA)

sábado, dezembro 08, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. QUARTO CAPÍTULO

O indivíduo era horroroso: calvo de um modo perfeito, o rosto perfeitamente triangular, descarnado, como uma caveira (uma caveira à qual uns rapazes maldosos, irreverentemente, tivessem colado duas consideráveis e salientes orelhas).
Ou ele sorria, ou fazia um esgar. Tinha umas gengivas grandes, que o sorriso, ou lá o que era aquilo, revelava quase até ao nariz.
James Lawford costumava tranquilizar-se, na sua insegurança em relação a certos desconhecidos, fazendo o mesmo que Deus convidara Adão a fazer: nomeando-as. Como se, pelo poder mágico da palavra, atribuir um nome fosse domar e dominar uma criatura. Ali, hesitava: chamar-lhe-ia, no seu espírito, Crucificado Ambulante? Ou Cadáver?
Cadáver Crucificado Ambulante aproximava-se dele.
James sorriu-lhe:
- Boa noite. Isto é que está um tempo. O meu carro está atolado... sou... sou o pai de Leo.
Cadáver Crucificado não lhe respondeu. Ao fim de alguns segundos que pareceram fracções de eternidade, estendeu-lhe uma mão longa, inesperadamente peluda.
Falou:
- Eu não sei como me apresente. Mas sente-se, sente-se.
Tinha uma voz fraca. Arquejante. Ligeiramente aflautada. Era a segunda surpresa: esperara um tom cavo, lúgubre, possante.
Sentaram-se.
- A sua mulher... - procurava James obstruir o silêncio fosse como fosse, mesmo com incoveniências: tudo menos deixar que o silêncio subisse como uma trepadeira venenosa pela sala obscura - ... isto é, penso que é a sua mulher, Mrs. Miriam... foi procurar uma pá. No outro dia, vi-o à janela lá de cima. Também me viu?
- Vi-o.
- A sua mulher... ou melhor... enfim, Mrs. Miriam deve ter-se confundido; afirmava que eu não podia ter visto ninguém. Que o senhor era um crucifixo.
Riram ambos. Cadáver Crucificado durante pouco tempo, cansando-se de imediato e precisando de respirar fundo.
Depois, sem qualquer transição lógica, entrou, pausadamente, numa confissão absurda (provavelmente fantasiosa, julgou James), a que as características do lugar ou a presença, porventura rara, de um hóspede, pareciam impeli-lo:
- A minha mulher, como diz, procura proteger-me. [Pausa]. Mente sempre aos intrusos que julgam ter-me visto. [Pausa demorada, como para deixar a expressão «intrusos» penetrar no espírito do intruso]. Porque eu, realmente, não sou ninguém. [Tosse]. Não existo. Para efeito nenhum. Não tenho um único documento. [Pausa longa e, a seguir, em voz melancólica].Nasci em casa dos meus pais, nunca me registaram, fui oferecido, ou vendido [pausa] a uma velha que me teve como criado [pausa], eu diria escravo, durante toda a sua vida, aliás demasiado longa para meu gosto [pausa],até que eu já não podia suportá-la mais, e ela morreu.
Riu. A seguir, iniciou-se uma crise. Como se sufocasse, como se se lhe esgotasse o ar.
James estava impressionado. Ou assustado.

(CONTINUA)

sexta-feira, dezembro 07, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. TERCEIRO CAPÍTULO

E, de facto, o dia seguinte foi um dia repousado.
Trouxe o filho da escola e ficaram os dois em casa, o pai arrumando os selos da sua colecção, Leo desenhando as próprias histórias em quadradinhos, muito mórbidas, cheias de monstros que pareciam devorar as páginas que mal os continham, mal os albergavam.
James bebeu um whisky e fumou dois ou três cigarros, apesar da proibição do médico.
Não conversaram. Falavam pouco um com o outro.
Também no dia seguinte, Leo tornou a não ir estudar com o seu amigo; o que, de algum modo, para James, acabou por se tornar embaraçoso, como se a presença do filho, de que se desabituara, fosse um peso estranho, um incómodo indefinível, silencioso e fantasmagórico. Sabia-o por ali. Ou fechado no quarto, ou sentado na cozinha, lanchando sem ruído.
Teria sido, talvez, por causa dessa sensação que a presença soturna do seu filho provocava, como um peso estranho no seio da sua liberdade e do seu espaço, que acabou por nem discutir quando, no terceiro dia, Leo lhe disse:
- Jonas pediu que o ajudasse hoje à tarde com o Latim. Temos exercício já na próxima semana. Posso ir?

Era sexta-feira. Chovia intensamente. Às sete horas da tarde, Leo não tinha regressado do «estudo». Ao princípio, não o preocupou que o rapaz tardasse, mas sim a chuva que certamente iria apanhar de caminho. Contudo, não lhe apetecia sair de casa. Egoísta, deixava-se estar, com o copo de whisky nas mãos, colado à janela.
Às oito, bruscamente, tomou uma decisão. Entrou no carro, dirigiu-se à casa velha.

Não havia luz. Buzinou. Não avistou, em nenhum lado, o que a senhora justificava como sendo um crucifixo que os protegia dos temporais. Saiu do automóvel, abrindo o guarda-chuva com que desta vez se prevenira, correu até à porta de casa, amaldiçoando a lama em que os seus sapatos novos se afundavam frequentemente. Não viu campainha; bateu com estrondo, usando o cabo do guarda-chuva.
Ao fim de um bocado, a porta entreabriu-se. Os olhos de Mrs. Miriam brilhavam por uma frincha, com um corte oblíquo que lhe dividia o rosto entre a sombra e uma vaga claridade.
- Boa noite, Mrs. Miriam. Venho buscar o Leo.
A porta não se abria mais do que aquilo. Ninguém o convidava a entrar. A voz da senhora era, naquele cenário diluviano, a única realidade que conservava uma espécie de secura absoluta.
- Boa noite, Mr. Lawford. O Leo já saiu. Há mais de uma meia hora.
Esteve a um instante de lhe perguntar se o deixava entrar para se sentar a descansar. Seria uma pequena ironia. Desistiu, não fosse ela abrir-lhe efectivamente a porta. Na verdade, estava desejoso de regressar.
- Ah! Então adeus. Boa noite.
- ...

Entrou no carro. Rodou a chave. Como nos filmes de terceira ou quarta ordem, o motor não lhe obedeceu. Quando, por fim, após várias tentativas enervantes, o carro principiou a rosnar, percebeu que não conseguia tirá-lo dali. Casara-se com a terra. Afundara ligeiramente no chão lamacento. Estava enterrado. Saiu do veículo, com vontade de erguer o punho contra os céus inclementes. Fez esforços baldados para o soltar das raízes que ganhara. Nunca libertaria, sozinho, o automóvel daquela espécie de paixão funesta.
Correu à casa horrorosa. Bateu estrondosamente. Agora, estava furioso. Quando Mrs. Miriam reentreabriu, empurrou-a com maus modos, procurando o calor do corredor, a luz do interior.
- O Jonas está cá? Vou precisar da ajuda dele. Ou está cá mais alguém? Talvez o crucifixo possa operar um milagre sobre o meu automóvel, que não se desenterra daquela lama? Posso entrar?
A senhora convidava-o e impedia-o, simultaneamente. Via-se que, ao mesmo tempo que lhe abria a porta, que o conduzia em direcção à sala, o cercava, o travava; proibia-o, subtilmente, de decidir os seus próprios passos, proibia-o de transgredir uma qualquer linha invisível, como se temesse que ele lhe invadisse a casa, lhe espiasse os quartos, lhe revoltasse as normas.
- Venha então para aqui, está mais quente. O Jonas não está. Não. Não está cá mais ninguém. Mas eu posso ajudá-lo.
Sentou-o junto ao fogo brando da lareira. Passara de uma fala seca, ríspida, nervosa, para um discurso nervosamente rápido, entremeado pelo que pareciam ser gargalhadas histéricas.
- Dê cá o seu casaco, vou ver se arranjo uma pá e uma lanterna, deixe-se estar aqui, quer beber alguma coisa quente?, não?, não se mexa que eu já volto.

James Lawford sentou-se. A chuva batia lá fora, ininterruptamente. Por um instante, aconchegado pelo calor, talvez tenha chegado a adormecer. Olhou para o relógio de pulso. Não haviam passado sequer cinco minutos. Ergueu a cabeça. A senhora voltara...! Estava ali. James estreitou os olhos, tentando perceber melhor que raio fazia Mrs. Miriam assim tão quieta. E deu um salto da cadeira, logo que deu conta do seu engano: não era Mrs. Miriam que o contemplava fixamente; encontrava-se diante do rosto magro e anguloso que descobrira, no outro dia, à janela: qual figura de cera, de uma palidez quase luminosa, como certos peixes das profundezas que transportam consigo a sua própria luz, assim a estranha personagem nadava na profundidade da velha casa, clareando a obscuridade marítima da sala. Mas não era um crucifixo.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. SEGUNDO CAPÍTULO

Perante aquilo, com um arrepio quase doloroso, James Lawford voltou a enfiar-se todo no automóvel. Deixou-se estar uns segundos parado, quieto, sem saber o que fazer. Respirava com dificuldade. Relâmpagos desaustinados eram cuspidos, como se em frustradas tentativas de queimar tudo em seu redor. Olhou, inseguro, para a janela da casa. O rosto cadavérico desaparecera. Ou melhor, a vela extinguira-se, ou alguém a apagara, e já não se via nessa janela senão um rectângulo de negrume.
James considerou a hipótese de sair do carro e tocar à campaínha - se é que a casa possuía alguma. Respirou fundo, como para ganhar coragem. Ou tempo. Começou a contar em voz baixa, pensando: «Se não acontecer nada, se não aparecer ninguém quando eu chegar aos dez... não, aos vinte... vou até à porta... seis... sete...»

Nesse preciso instante, percebeu que havia uma face brusca colada ao vidro do seu automóvel.
Teve um sobressalto. Encostou-se ao banco, entre dois relâmpagos.

Era Mrs. Miriam, que lhe trazia Leo, escoltados ambos pelo filho adoptivo da senhora, de guarda-chuva em punho, um guarda-chuva que só lhe fazia lembrar, tetricamente, as asas de um morcego.
Abriu a porta do carro. Leo entrou, molhando os estofos. James abriu o vidro para dirigir a palavra à senhora:
- Já estava aqui há um bocado a chamar. Buzinei. Até gritei que era eu, mas o seu marido, lá em cima, à janela, não deu por nada...
- Meu...? -, enervou-se Mrs. Miriam. - Não, não, não. Ah, já sei. Deve estar a referir-se ao crucifixo. É um Cristo que está ali, no quarto. Em noites de temporal, trago-o para o pé da janela. Ora. São as nossas manias!
Passava-lhe, para as mãos, uma caixinha de pastéis. Depois, a senhora falou para Leo, o qual esperava, muito silencioso, muito molhado, como se estivesse perturbado com alguma coisa.
- Mas amanhã, menino, vai ser como eu digo, hein? Primeiro, estudam. Depois, é que vão conversar...
James fechou bruscamente a possibilidade:
- Ah, mas amanhã não, Mrs. Miriam, amanhã o Leo não vai poder vir porque... porque... tem outras coisas que fazer.
A senhora olhava-o. Era um olhar de viva reprovação, que nem a água dos céus, que os separava um do outro, como uma cortina líquida, conseguia atenuar.
Ele sentia-se culpado por esta sua recusa ingrata, ao mesmo tempo que segurava, entre as mãos enluvadas, os pastelinhos que a senhora acabara de lhe oferecer.
Mas cortava a vinda de Leo, como se o protegesse de um mal. Tremia de frio e de nervoso. A tenebrosa e cadavérica figura à janela da casa ainda lhe rangia no espírito. Um crucifixo?! Qual! Impossível. Aquilo movera-se. Juraria. Impressão sua...?

(CONTINUA)

segunda-feira, dezembro 03, 2007

REIS MAGOS A JACTO

NOTA: A essência do cristianismo reside no perdão; espero que os meus leitores cristãos sejam mais coerentes do que eu, e façam do meu texto um pretexto para o exercício de me perdoarem...


Na qualidade de ateu empedernido, tornou-se-me, no início do período mais coerente da minha vida, praticamente impossível a convivência com o presépio e tudo quanto este simboliza. Depois de muito instado, chegava a aceitar a àrvore de Natal. Com dificuldade e muitos resmungos, é certo, mas vá: à àrvore ainda fechava os olhos! Agora, um presépio, um menino ao frio, sobre palhinhas deitado, um pai que não era pai mas fazia de conta que não se importava, uma mãe que alegava permanecer intocada apesar de todas as evidências, uns reis cuja sensatez os levava a oferecer, como prendas para um recém-nascido, coisas tão desadequadas como ouro, incenso, mirra, uns pastores, uma vaca, um burro, isso era já mais do que podia suportar.

Mais tarde, não por ter ganho fé em Deus, mas por ter perdido a fé na coerência - a qual, no limite, se confunde com intolerância -, dei por mim a olhar para presépios e a descobrir uma espécie de beleza discreta na subordinação de tantos adultos a um bebé. Pensava para comigo: «E isso não é nada! Deixem o menino chegar à idade da minha Margaridinha, que já vão ver o poder que uma criança realmente tem sobre os crescidos!»

Num dia de arrumações, descobri, em algum baú herdado, um conjunto de figuras de presépio, e senti-me fundir, senti-me derreter, quase enternecido, derramando-me por sequências de imagens dos Natais da minha infância, dos presépios que então me fascinavam; não só os de casa - ou das sucessivas casas por onde passei -, mas também o(s) presépio(s) da(s) escola(s). Recordei-me de como certo dia, na adoração de um deles, quase pegava fogo à roupa. Não me perguntem como, porque não reparara em nada e, quando regressei a casa com a camisa queimada, não sabia explicar exactamente o que sucedera. E nunca soube!

Mas ainda assim, mesmo depois dessa viagem pelo tempo, precisei de semanas para digerir esta súbita saudade, esta inexplicável vontade de retomar o presépio. Pensava: «Que mal faz?» Justificava: «Trata-se tão-só de aceitar um mito belo sem ver nele mais do que um mito belo, trata-se de celebrar a família, sob a forma de um grupo disfuncional como, no fundo, todas as famílias são hoje. (Presépio: Pai ausente, padrasto indiferente, mãe em delírio, filho megalómano...)

Quando, por fim, encolhi os ombros numa muda aceitação deste símbolo, quis, em todo o caso, que ela tivesse qualquer coisa de singular. Digamos: uma concessão ao ateu rabugento em mim- Que, ao menos, não fosse um presépio comum. Que não fosse um passo em direcção à massificação natalícia. Que tivesse um toque pós-moderno. Um toque... ateu?!

A minha ideia, ó delírio, consistia simplesmente nisto: elevar o presépio, colocando-o sobre um pedestal de caixas que escondesse, aos olhos de todos, um comboio eléctrico. Esperem: o comboio carregaria, subtilmente, os três reis magos. Mas, insisto, ninguém veria comboio algum. Em contrapartida, os embevecidos espectadores que eu idealizava, seriam postos ante o espectáculo da autonomia de Baltazar, Gaspar e Belchior, como se estes se deslocassem, sozinhos, numa alegre cavalgada (ou camelada) em direcção ao menino Jesus. O comboio seria, portanto, o mecanismo secreto, o motor escondido da sua aproximação.

O que separa o génio do ridículo é, por vezes, uma linha tão ténue, que grandes ideias acabam por afundar no gozo e na troça gerais.

Poupo-vos a descrição do que aconteceu diante dos olhos incrédulos dos primeiros espectadores que convidei: os reis magos, numa desenfreada e absurda pressa, como se estivessem já muito atrasados, descrevendo um movimento demasiado ruidoso, demasiado circular e repetitivo, em torno de Jesus, mas sem nunca realmente O visitarem, incapazes de quebrar o perpétuo circuito em que se viam lançados, provocaram, sobretudo, gargalhadas. Que público reaccionário. Que falta de sensibilidade artística. Que tacanhez para o que é novo, o que é diferente, o que não foi feito para este tempo.

E assim, morrem grandes ideias. Aposto que a História está carregada de destroços que prometiam tanto...!

Se calhar, desisto do presépio.

sexta-feira, novembro 30, 2007

UNS PASTELINHOS MUUUITO TENRINHOS. PRIMEIRO CAPÍTULO DE UM PEQUENO CONTO GÓTICO (para o caso de não perceberem imediatamente)

No seu snobismo característico, James B. Lawford mostrava sempre um certo enfado pelo modo como Mrs. Miriam se apoderava do filho dele, rapaz inteligente e vivo, muito bom aluno, para o levar a "estudar com o" - isto era um eufemismo: tratava-se, na verdade, de "dar explicações ao" - seu [dela] filho adoptivo, um moço distraído, triste, sujo e mau aluno.
J.B.Lawford tinha dificuldade em responder, à pobre senhora, com uma recusa peremptória, sobretudo quando ela entoava, numa espécie de melopeia, aquelas palavras do costume: «Desculpe, desculpe, o senhor desculpe»; mas que os meninos eram «tão amiguinhos...», e nhã-nhã-nhã-nhã. (A expressão «amiguinhos», a propósito do seu filho e da outra criança, exasperava-o, mas ia acenando com a cabeça num gesto monótono que, todavia, a não calava). Para além do mais, havia os pastelinhos. Leo Lawford, o filho de James, trazia invariavelmente das sessões de estudo, umas caixas carregadas de pastelinhos.

Às vezes, a sessão prolongava-se: era já noite cerrada, em pleno Inverno, e Leo ainda não tinha voltado para casa.
E, uma vez, James Lawford decidiu mesmo vestir o sobretudo, pôr o cachecol, um chapéu, luvas, meter-se no seu automóvel e dirigir-se, sob uma chuva inquieta, amarelecida num cone de luz projectada pelos faróis, até à casa de Mrs. Miriam.
Era uma casa muito velha, antiga, em que mal se reparava, durante o dia, mas que, à noite, no escuro, sob a toalha da água dos céus, se tornava lúgubre, cheia de sombras e tristeza, evocando sinais da passagem da morte e violências inconfessáveis.
Estacionou, esperando que vissem, de alguma janela, o automóvel expectante. Mantinha os faróis ligados contra a escuridão, molhando a luz ténue na chuva. Mas Leo não aparecia. Ninguém aparecia.
Buzinou.
E numa janela pequena, de um primeiro andar iluminado por alguma vela, surgiu um vulto.
Fez sinais de luzes. Abriu a porta do carro, lançou a cabeça de fora, gritando quase desesperadamente para o ar impregnado do ruído da água:
- Sou eu! O pai de Leo!
Mas nada. O vulto não reagia. Foi só um ou dois segundos depois, à luz de um relâmpago que se despenhou do céu negro (uau! Estou estarrecido comigo) que James se apercebeu de que não se tratava nem de Mrs. Miriam, nem de um dos rapazes, mas de um homem - ou de um cadáver: branco, anguloso, magro, envolto em sombra, esculpido por sombras.

(CONTINUA)

domingo, novembro 25, 2007

UMA SALVADORA INSIGNIFICÂNCIA

Fora, não ainda há muitos anos, o melhor vendedor da marca: talvez em Portugal e «quiçá» - como o seu chefe gostava de empregar, fungando abundantemente, na sua sempiterna constipação -, «quiçá» na Europa inteira!

Mas tudo muda. (Não vejam aqui um lugar comum: é uma inquestionável verdade!). A mulher saíra de casa, fugindo («fugindo» será força de expressão: não consta que saísse a correr...) com um talhante, e Jordão Silveira nunca mais se reerguera. Dos seus tempos de melhor vendedor, «quiçá» da Europa, não lhe restavam, hoje, senão a raiva e os ressentimentos dos colegas, que sempre o haviam invejado, mas com respeito, e agora se vingavam do seu passado, da sua superioridade de tantos anos, desrespeitando-o declaradamente...

Um vendedor como Jordão Silveira, batalhando duramente ao longo de quase 24 horas, mas não tendo ninguém com quem pudesse partilhar um pique-nique, uma soirée, uma viagem, ninguém com quem nada de nada, tendia a desleixar-se: primeiro, nem valia a pena ir a casa jantar; depois, deixara de tomar banho, ficando-se com o cabelo gorduroso, criando caspa nas golas, sujidade nas unhas. O desleixo infiltrava-se, invadia a sua pessoa e o seu apartamento, com jornais espalhados pelo chão e latas rolando entre pratos cheios de restos, e quantidades de repugnantes maçãs roídas e abandonadas, que são, por si só, uma imagem forte da degradação; e tudo isto coincidia, de facto, com a degradação nas vendas: Jordão Silveira tornava-se, «quiçá», o pior vendedor da Europa.

Às vezes, para se não sentir só, passava a noite no luminoso hall do Casino Estoril. Por ali perambulava, com um copinho entre as mãos, mirando os cartazes, alienando-se nos passantes e no ruído constante, até que se sentava, de perna cruzada, num dos sofás mais confortáveis, e se preparava para dormir três ou quatro horas. Pelas cinco da manhã, despertava. Fazia a barba e lavava sumariamente o rosto e as axilas na casa de banho. A seguir, partia para o trabalho e para a troça dos colegas, adormecendo várias vezes durante o dia, vendendo pouco e perdendo os melhores clientes.

Mas, vamos a mais um lugar comum, há, para cada pessoa, um ponto de rotura, um limite do suportável.
Um dia, Jordão acordou com a sensação de que tocara nesse ponto. Não se dirigiu ao seu serviço. Ao invés, entrou num prédio alto, subiu as escadas, arfando a cada novo degrau, enojado de si, ferido pelo seu ponto de rotura, obcecado pela ideia única de nunca mais voltar a querer ter ideias, nem esperanças, nem desejos, nem vendas, nem nada.

Ao chegar ao quinto andar, deparou com um relógio que o fitava de uma parede. Era um relógio redondo, como devia existir, embora não tivesse reparado em nenhum até esse momento, um por andar.
Mas, mais do que tudo, os ponteiros desenhavam, sob o vidro abaulado, as 11.11: onze horas e onze minutos.

Jordão Silveira teve um estremecimento: como se um número tão exacto, tão repetitivo, tão cheio de «uns», fosse um chamamento das profundezas do universo, um gesto apaziaguador dos deuses, ou de Deus, ou de quem quer que estivesse sentado ao controlo. Como se fosse uma piscadela de olho. Como se fosse uma expressão de cumplicidade.

Logo a seguir, porém, a força do seu azar, da sua imperfeição, do seu cansaço, da contínua degradação da sua vida, da sua tristeza, da sua angústia, do seu mal-estar, a força do limite que atingira e de onde lhe não apetecia continuar a cair (a não ser que se tratasse de cair, literalmente, do prédio abaixo ou da vida para fora) reapossou-se de si e estilhaçou aquele breve momento de quase-paz. Continuou, pois, a subir. Esquecido, logo nos degraus seguintes, daquela comunhão matemática...

Foi quando chegou ao terraço, e se aproximou do muro, com o cabelo agitado por ventanias várias, que se lembrou e, num gesto de derradeira curiosidade, olhou para o relógio de pulso. E, ali, no seu relógio, viu marcadas 11.10. Mas, imediatamente após, como um atrevimento do destino, 11.11.

Por alguma razão, portanto, ou porque o relógio do prédio estivesse adiantado, ou porque o seu relógio se atrasara, tudo ocorria como se os deuses lhe tivessem oferecido um minuto de vida.

Não podia desperdiçá-lo. Não podia ser ingrato a esse ponto. Não tinha o direito de jogar fora a divina oferenda, o minuto miraculoso, jogando-se fora a si próprio. Havia, já não uma coincidência, mas uma dupla coincidência. Uma dupla coincidência não poderia ser mera coincidência. Sentiu lágrimas nos olhos. Talvez as coisas melhorassem. Talvez a mulher regressasse. Talvez principiasse a vender. Sentiu lágrimas nos olhos. (Olha, já tinha escrito isto!). Há insignificâncias maravilhosas, não há?

Nota: demorou mais de dez minutos a descer a escadaria. Mas não reparou nisso!

quinta-feira, novembro 22, 2007

ESCOLA SECUNDÁRIA DE JOSÉ LUCAS

Costuma dizer-se que a memória é curta. Que há alguma hipocrisia no modo como, em face da morte de alguém, se esquece tudo - as zangas, os ressentimentos, os azedumes, os defeitos - para que, de tudo o que era a pessoa que morreu, não restem senão os traços bons, não fique senão um resumo lembrável.

Mas eu penso que não. Que não há, nisto, qualquer hipocrisia. Que, simplesmente, sob a lente crua - e cruel - da morte, tudo se transforma e adquire novas proporções; e a existência humana, subitamente revelada na sua tremenda fragilidade, não possa aguentar nada mais para além daquilo que realmente vale a pena: para quê preocuparmo-nos com as ninharias e as insignificâncias, se o tempo é pouco e, no pouco tempo que nos é dado, há coisas tão belas, tão boas - essenciais?

Na morte de Lucas, o que fica na memória de milhares de pessoas é demasiado grande. Já não há espaço para pormenores. E mesmo as zangas, se as houve, ou as ofensas, se as queremos recordar, tornam-se momentos humanos, mais ou menos dolorosos, que serviram para fortalecer laços e dar um rumo singular à relação. Digo-o porque sei que, no seu posto de Presidente, ao longo de tantos anos, com a «insegura teimosia» e aquela necessidade absoluta de consensos - a que se refere a minha colega Elisa Costa Pinto, num dos textos mais bonitos que eu já li sobre a saudade perante a morte de um amigo... -, Lucas terá cutucado onças, exasperado amigos da onça, discutido, com ou sem razão, e voltado bruscamente as costas. Mas que interessa?

Em Lucas, precisamente, a amizade, a generosidade, a solidariedade, o medo de incomodar (que o fez ser tão discreto e secreto até em relação ao seu mal), o riso, o sorriso, os gestos - que o filho refaz numa semelhança assombrosa, ligeiramente perturbadora -, até a dicção trapalhona, a alegria e a tristeza, o cuidado com os outros, a preocupação com todos, e o amor pela escola, pela sua escola, como uma sua casa, vão perdurar, vão encher a escola, vão estar em cada recanto, em cada corredor, em cada lugar, no espaço inteiro: da escola e da memória de nós, os felizardos que o tivemos, que com ele convivemos!

Ouvi dizer que a eslav vai chamar-se com o seu nome.
Estou comovido. E, como professor da escola, sinto-me honrado.

Até já, Lucas.

quinta-feira, novembro 15, 2007

DICAS LITERÁRIAS (SEM PRETENSÕES)

Disse-me, um dia, o Juiz. [Mas quem é o «Juiz», perguntar-se-ão os meus raros leitores]:
«Considero de uma enorme arrogância oferecer-se livros. A mim, não me ofereçam livros!»
Suponho que, para o Juiz, não será certamente arrogância menor aconselhar-se livros.
Mas porque uma amiga e leitora assídua mo pediu, porque não existe qualquer hipótese de que o Juiz esteja entre os leitores deste blogue, porque tenho feito algumas descobertas que gostaria de partilhar, atrevo-me a este gesto pretensioso, embora, na verdade, sem a mínima pretensão.

Duas descobertas que tinha porventura a obrigação de haver feito há muitos séculos, mas que acabei de fazer, são Flannery O'Connor e Dino Buzzati.
Não há que misturá-los. Tudo os separa: o tempo, o país, o género, as referências, as preocupações. Mas se algo os une - o talento -, esse é suficientemente forte para que me refira simultaneamente a ambos.
Há outro factor. Nos dois, comecei - por mero acaso - pelos contos. Os de O'Connor, reunidos no magnífico «Um Bom Homem é Difícil de Encontrar», primam por um estilo delicioso, poético, encantatório na descrição de vidas numa América sulista e rural, onde, a cada passo, surgem os negros, os brancos pobres, as pequeníssimas proprietárias, o vendedor de bíblias, os garotos malandros, que ninguém aceita nem quer - nem mesmo os bons cristãos...! O confronto, e é sempre de de confrontos que se trata, é escalpelizado de uma forma inesperada e, sobretudo, com constantes mudanças de ângulo: ora vemos as coisas do ponto de vista desta personagem, ora de outra; todos têm razão, nenhuma tem razão - todas são compreensíveis nas sua mesquinhez ou crueldade, todas são justificáveis na sua maldade. Mesmo o mais terrível dos assassinos, que mata friamente, aparentemente sem razão.
Buzzati, por outro lado, é autor dos contos reunidos em «Pânico no Scala», onde uma dimensão de estranheza, roçando o surrealismo, está sempre presente, à espreita, abrindo insuspeitadas possibilidades em cada conto, fazendo-nos sorrir amargamente. Reencontro esta mesma atmosfera quase fantástica, sem, no entanto, se perder um esteio permanentemente realista, no seu romance que, entretanto, já comecei a ler, «O Deserto dos Tártaros»...

Para quem pensa que os «clássicos» são, essencialmente, aquelas obras de que nunca se tem a coragem de dizer: «Estou a lê-la», mas, sempre: «Estou a relê-la», é tempo de «reler», rapidamente, Gogol. Na verdade, estou a ler pela primeira vez (confesso) o seu «Contos de São Petersburgo». (Mas que tendência para os contos, observo agora). Que, aliás - para dizer realmente toda a verdade -, comprei, antes de mais, porque se tratava de uma edição de bolso, que me custou menos de sete euros. Posto isto, todos os contos são de facto maravilhosos, mas eu começaria (e comecei) por «O Nariz», verdadeira obra-prima de humor macabro, tortuoso, retorcido que, ao mesmo tempo, nos dá uma riquíssima imagem da Rússia do Século XIX e, mais concretamente, de São Petersburgo. Também o primeiro conto - «Avenida Névski» - é de um virtuosismo estilístico delirante: principia-se por nos descrever a avenida, com as suas lojas e as suas populações habituais, consoante as horas, dispersando-se cinematograficamente até ao momento em que segue uma personagem e o desenvolvimento da sua história...

sábado, novembro 10, 2007

UM DIA COM O «DENNIS THE MENACE» NO FEMININO

Oh, como odeio estes sábados em que a minha mulher trabalha, o meu filho se refugia na casa da avó, onde lhe crava revistas, bugigangas, pizzas e coca-cola para o almoço, e eu tenho de passar um dia que não tem com certeza menos do que vinte e seis horas, a sós com um adversário curiácio, um bandido que me persegue, um ser de outro planeta que me investiga minuciosamente: a minha filha de dois anos e poucos meses, que continua sem dizer uma única frase completa!

Esqueçam o duelo Sócrates/Santana.
O duelo mais tremendo dos últimos anos, é este, em que, aliás, não tenho qualquer hipótese: Papá/Daisy. Ela é o «desperado», eu sou o «desesperado»!

A sessão do almoço, sobretudo, é de antologia. Começamos bem. Eu cantarolo, enquanto lhe aqueço a sopinha, o pratinho com franguinho e massinha e, sim, nessa fase ainda acrescento um «inho» a todas as palavras. (Mais tarde, os palavrões que grito já não levarão qualquer «inho»!). A tipa observa, entre curiosa e maquiavélica, com os olhinhos castanhos a brilhar dos planos tortuosos que me esmagarão. Está encarrapitada numa cadeira elevadíssima, uma torre eiffel cheia de cintos de segurança. Sorrio-me. Coitadinha: «És tão linda!»

A primeira escaramuça, mal chega para a aquecer. Quer comer por sua mão. Sei o que isso vai significar. Oh, oh! Mas cedo imediatamente. «Leva lá a colherinha, toma lá o pratinho do ursinho».
Enfia uma colherada de sopa na boca. E zás. Acto contínuo, lança a colher ao chão. O meu sorriso é já amarelo. A voz com que a admoesto é ainda simpática, mas um ouvinte atento e perspicaz descobriria, sem dúvida, uma tremura nervosa que não augura nada de bom. Lavo a colher. Devolvo-a. Mais uma colherada. Zás. Lança novamente a colher ao chão. «Pára com isso, Margarida!» Baixo-me para apanhar a colher. Nem de propósito: é o tempo de que Margarida precisa para cuspir a sopitanga sem que eu possa intervir. Quando me aproximo, estendendo-lhe atrasada e ridiculamente a colher, percebo que fui ultrapassado: ei-la com o babete nojento, o queixo e o ombro cheios do que me parecera uma sopinha mas, agora, já não me parece senão uma pasta viscosa e alaranjada. Limpo-a. Com movimentos bruscos. Irritados. Margarida não quer mais. Eu insisto. «Uma pela avó!» - Enfia a cabeçorra entre os braços, para que eu tenha a certeza de que não há a mais pequena possibilidade de a manipular. Endireito-a à força. Pega no prato, atira-o ao chão. Berro asneiras. Os vizinhos fazem um silêncio absoluto. Margarida olha-me, com os olhos a exprimir, inequivocamente: «Boa! Estou a gostar. Qual vai ser a próxima diversão, tens mais ideias?» (Como ela, mesmo sem palavras, fala tão clara e sofisticadamente com os olhos).

Passa-me pela cabeça que toda esta agitação se deva ao cansaço da menina. Pego nela. Levo-a para a sua caminha. Vou acalmando, enquanto subo a escada. Já me imagino a ver televisão, o som muito baixo para não a acordar, os pés, em peúgas, fatigada mas confortavelmente estendidos sobre uma cadeira, cadernos do Expresso espalhados pelo chão...!

Margarida não dorme. Cansada?! Isso sim! Deito-me numa cama ao lado, esperando que perceba o que tem de fazer. Nada. Bate com os pés no gradeamento da sua caminha. Puxa pelo cordel que põe um urso a tocar uma musicata enervante. Ergue-se, olhando para mim no escuro, o branco dos olhos iluminando o quarto, as mãos apoiadas às grades. Choraminga. Decido não lhe ligar. Perigo! Margarida tenta trepar, sozinha, pelo gradeamento da cama, está já com uma das pernas quase inteiramente do outro lado. Precipito-me.

Em desespero de causa, tomo decisões: Vamos passear! Vamos à Bulhosa. Tomo um café, ofereço-me uma prenda que me anime, o livro que a minha amiga Lara Croft me recomendou. Caramba, preciso desta compensação. Recomeço a sentir-me feliz. Que poderá a miuda fazer, destruir a livraria? Eheheh! Estou eufórico. (Não é normal. Consultar o psiquiatra?!)

Coloco-a na cadeirinha do carro. Amarro-a à vida. Arrancamos.

Margarida adormece dois quarteirões depois.

Regresso a casa. Bolas!

sexta-feira, novembro 09, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - VI

Saiu do apartamento, preocupada e com alguma vergonha; desceu pela escada; espreitou, no átrio, antes de se aventurar à rua. Correu, por fim, olhando em todas as direcções, meio perdida, seguindo um mapa diferente do habitual, redesenhado em função de possíveis e súbitos esconderijos por onde pudesse desaparecer rapidamente, se necessário.

Contudo, nenhuma das situações previstas e temidas por Hermengarda viria a ocorrer. Dona Luizita e a Vizinha Maria nunca a confrontaram, nunca sequer se referiram àquele seu quase-encontro por paragens tão longínquas. Porquê? Porque esperavam vê-la regressar ao local do crime, aguardando o momento de a apanharem em flagrante (como julgou durante muito tempo, à medida que os dias passavam e ninguém lhe dizia fosse o que fosse)? Ou simplesmente porque, após confereciarem uma com a outra, teriam concluído que fora tudo um erro de Maria, uma, como se diz?, alucinação, pois não poderia realmente tratar-se de Hermangarda (como, mais tarde, aliviada, principiou a acreditar)?
Também nunca soube o que faziam as duas naquele bairro. Nunca o soube.
Tudo retomava a pavorosa forma da normalidade: a sogra entre medicamentos e cafés que enchia de açucar e mexia com uma colherinha de prata, trling, trling, trling, um ar de beatitude no rosto amarelado; Maria enfiando o nariz aguçado por todas as frinchas - «Boa tarde! Olááá! Posso entrar? Estão a comer? Não incomodo, não?».
Pior que tudo: Hermengarda, seu nome, voltou a colar-se-lhe definitivamente à pele, aos ossos, ao corpo, à alma, à vida.

Durante muito, mas muito tempo, não foi capaz de voltar ao apartamento.
Um dia, voltou. Havia pequenas mudanças na rua, no bairro, que a incomodaram. Coisas indefiníveis.
Chegou a subir - mas desceu imediatamente, claro, quando viu, à porta, um senhor de juba grisalha e uns óculos de aros muito finos. O pintor!

Não reencontrou a solidão.
«Tens sempre de acabar tão mal? Que melancolia!», sopram-me sobre o ombro, acompanhando este fim.
De vez em quando, recorda-se da sua amante. Recorda-se que, por pouco tempo, poucas vezes, a solidão foi sua. A saudade dói. Mas é diferente do que seria se não a tivesse tido nunca.
Mais: quando recorda os seus bons momentos, a sua solidão, a sua amante, dá-lhe, agora, um rosto. Uns olhos curiosos, vagamente trocistas. Um ar sábio, de alguém que tivesse visto e compreendido um segredo.
Sonha com ela, até.
É um amor perdido. Platónico.
É muito pouco. É bom.

FIM

quinta-feira, novembro 08, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - V

Teve de se segurar, numa vertigem, numa náusea, num pavor, numa aflição - sensações e sentimentos inomináveis, por muito que eu multiplique palavras em busca da mais exacta.

Naquele pouco tempo, não teria sido possível, a Maria, telefonar - digamos - para Dona Luizita, prevenindo-a de que acabara de ver a sua nora, de modo que, logo a seguir, a senhora apanhasse um transporte para se materializar quase imediatamente ali. Não: a explicação tinha de ser outra. Talvez viessem juntas, mas onde iam? Ao médico? Que raio de coincidência! A não ser... a não ser... a não ser... que a seguissem há mais tempo...? Que as suas ausências - breves e espaçadas - as pusessem de sobreaviso? Pensariam, então, mas como pensar diferentemente numa situação tão suspeita?, que Hermengarda tinha um amante. O que era indigno, insultuoso. Não tinha um amante: tinha «uma» amante. Ou uma «amante».
Olhou. Já lá não estavam. Nem uma. Nem outra. Uma visão? Uma, como se chama, como se diz, ai, uma alucinação?!
O seu olhar percorreu as ruas, a seguir foi-se elevando, numa pesquisa confusa. Embateu no prédio em frente. Embateu na janela em frente da janela onde ela se postara. E, aí, descobriu um rosto que a seguia, de uma mulher muito jovem, que sorria, mais para si própria do que para Hermengarda, talvez com curiosidade, mas, sem dúvida, também com uma chama de troça no olhar. Como se tivesse visto tudo, percebido tudo: a sua fuga, o seu medo, como um rato cercado. Como uma presa acossada. E presa.

(CONTINUA)

quarta-feira, novembro 07, 2007

HERMANGARDA E SUA AMANTE - IV

Não estava ninguém lá em baixo. Nenhuma pessoa conhecida. Maria nenhuma.
Hermangarda sabia, todavia, que se não enganara. Inexplicavelmente, num sítio onde nenhuma razão conhecida colocaria a vizinha Maria, o certo é que a vizinha Maria aparecera, e a vira! E a reconhecera...

Claro que Maria não podia estar absolutamente segura de a ter reconhecido. Ou podia? Se ela lhe falasse mais tarde no assunto, o que Hermengarda tinha de fazer era mostrar um espanto convincente:
«Eu?! No bairro tal? Não! Podia lá ser. Eu, a que propósito...?!» (A vizinha Maria não associaria o bairro ao irmão de Hermengarda. Ninguém, nem mesmo a sua sogra, soubera alguma vez onde vivera ele, com quem nunca se tinha dado.)

Sentia-se mal, uma opressão no peito, uma turvação num prazer tão claro, talvez no único autêntico prazer na sua vida. Não conseguiu relaxar. Dava voltas, sentava-se, levantava-se, mas não era capaz de deixar de ser Hermengarda. Tinha, de resto, o grito de Maria ecoando-lhe ainda nos ouvidos. «Hermengaaarda!»
Não quis mais. (E regressaria? Talvez não já para a semana, mas dali a duas ou três semanas...? Poderia voltar a ser ali feliz...? E, entretanto, o legítimo proprietário não acabaria por aparecer...?) Não suportava nem mais um minuto daquela angústia. Ao fim de dez minutos, se tanto, preparou-se para se ir embora. Pegou na mala e espreitou pela janela, oculta, discreta, quieta.
E viu-a. Ou melhor, viu-as. Maria e sua sogra, lá em baixo. Maria apontava o dedo numa vaga direcção.

(CONTINUA)

domingo, novembro 04, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - III

Tornava-se um vício.
Nunca ia mais do que uma vez por semana, encurtando o tempo destinado às compras.
E nunca ficava mais do que uma hora; chegou a levar despertador que a arrancasse ao seu torpor, à sua paz, ao seu namoro consigo, ou melhor, com a sua almejada solidão.

Até ao dia em que, prestes a entrar para o prédio, ouviu chamar por si. Pelo horroroso «Hermengarda!». Não enfrentou o chamamento, mas olhou de soslaio, vagamente, incertamente, a fingir que não, escondendo-se um pouco entre umas colunas. E topou Maria, uma vizinha sua, que a perdera um pouco de vista mas a procurava, certa de que se não enganara. Que raio faria ali Maria? O seu médico seria para aqueles lados? Doente, sempre muito doente, com a respiração fraca, os pulmões enfermiços, o olhar de cão abandonado, eterna pedinte de umas migalhas de afeição, colando-se às pessoas, aparecendo-lhe em casa, como por acaso, sempre que lhe cheirava a algum jantar de amigos, a alguma festita de anos, Maria era uma pessoa de quem a sua sogra gostava muito, e que convidava amiúde, mas para quem Hermengarda não tinha paciência...
Aproveitou o ar desnorteado da mulher, aquele minuto em que ela a perdera de vista e entrou no prédio. Subiu pela escada, como de costume. (Mais discreta, menos passível de encontros indesejáveis do que o elevador...). Abriu a porta do seu reduto, do seu minúsculo antro, acercou-se da janela, meio escondida pelo cortinado velho, com o olhar em busca de Maria, lá em baixo...

(CONTINUA)

sábado, novembro 03, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE II

Ou talvez não, talvez não fosse assim uma ideia tão perversa. Simplesmente entrar, sentar-se e repousar. Mais nada. Uma meia hora sem ouvir Dona Luizita, um tempo esquecendo-se de que se chamava Hermengarda, namorando a sua preciosa e interdita solidão.
Mas não foi nesse dia. Estivera quase, mas não...
Nem no dia seguinte.
Mas no outro, as mãos tremiam-lhe como se perpetrasse o pior dos crimes, ao tentar penetrar com a chave na fechadura. E o coração batia-lhe descompassadamente. E teve, uma vez entrando, de ficar quase um minuto encostada à porta, respirando fundo, para se acalmar. E não se deixou ficar senão um quartito de hora, e sem prazer, sem qualquer prazer naquela espécie de encontro fortuito com nada nem ninguém.

Foi num outro dia, ainda, que se deixou estar uma hora. Uma hora! E se, ao princípio, existia naquele gesto qualquer coisa de uma violação, de uma transgressão que a magoava até aos ossos, como se, mais do que a criminosa, fosse a vítima, aos poucos foi-se abandonando, deixando de estar tão agudamente consciente do lado doentio e malévolo do seu acto, do lado proibido, para se deixar tombar - é a palavra - num esquecimento tépido, como se estivesse numa banheira cheia de água: já nem se chamava Hermengarda, já nem havia uma sogra, já nem ruído lá fora, já nem peso, já nem ser, já nem coisa nenhuma, já nada senão a solidão que se unia a ela, a completava, a transformava...

(CONTINUA)

quinta-feira, novembro 01, 2007

HERMENGARDA E SUA AMANTE - I

Dois erros haviam ocupado, por inteiro, a vida de Hermengarda.
Um, era o seu nome. Não é possível fugir-se a um nome de que se não gosta. Está em todo o lado, suavizado pelas vozes dos que amamos (e não imaginam o mal que nos fazem) ou atirado contra os nossos ouvidos pelas vozes dos outros, ou nas cartas, nos documentos oficiais, nos cheques que assinamos. Mesmo dormindo, mesmo nos sonhos, uma Hermengarda não deixa de ser uma Hermengarda.
O outro, era a sua sogra. Dona Luizita não era idosa - não teria mais do que sessenta e poucos anos -, mas comportava-se como tal, sempre muito queixosa, muito rodeada de medicamentos, muito sem fazer coisa alguma e, sobretudo, muito esperando, e exigindo, que Hermengarda lhe fizesse tudo. Viviam juntos, como um país com excesso de população, sua sogra, seu marido, seu horroroso nome e ela.

Hermengarda tinha um amante. Ou, melhor, «uma» amante. Mas não nos precipitemos. A sua amante era a solidão. E era uma amante, aliás, com quem pouco se cruzava. Em casa, sobretudo, a solidão não era visita frequente, porque Dona Luizita nunca dali despegava, enchendo-se de cafés.
«Isso não lhe faz mal, Dona Luizita?», perguntava-lhe.
Para o que existiam duas respostas possíveis. De resto, contrárias, mas ambas típicas da senhora, ora uma,ora outra, consoante a sua disposição:
a) «Faz. Mas é o meu único consolo, filha. É o prazer que tenho nesta vida...»
b) «Não faz, faz agora! Este café feito em casa não é como as bicas lá fora. Isto não tem nada, é uma água preta...»

Mas um dia, por um bizarro acaso do destino que é a fantasia destravada do autor desta história, calhou a Hermengarda, passando pelo estúdio onde vivera o seu irmão até emigrar, havia cerca de um mês, perceber que esse estúdio, um mero T-zero num bairro-dormitório, ainda não fora ocupado pelo senhor pintor que o comprara. Não teve dúvidas: a desocupação notava-se do exterior; tudo nas janelas, na varanda, cheirava a desabitação; mas chegou a perguntar: «Já mora alguém no 1-L, e tal» e, no cafezito da Dona Tina, entre galões e uma torrada, soube tudo, que o senhor Alfredo começara a transportar as suas telas, os seus pincéis, as tintas, a tralha, mas só dali a um mês faria a mudança definitiva. Pois já captaram, não captaram? Hermengarda trazia, no seu porta-chaves, a chave do apartamentozito, que, na altura em que o seu irmão lá morava, ela mesma se encarregava de limpar uma, duas vezes por semana. De modo que não levou mais do que um instante a tomar conta da sua mente, a mais absurda, perversa, tremenda, imoral das ideias...

(CONTINUA)

domingo, outubro 21, 2007

A LOJA DE BRINQUEDOS

Rolindo passara pela loja uma vez em que ia, cheio de pressa, levantar um bolo encomendado a uma pastelaria. Não tivera tempo para se deter nela, na dita loja, mas ficava-lhe na memória para uma visita, com o filho, em breve: ali estava, pois, uma curiosa alternativa aos «Toys "R" Us», às «Brincolândias», às casas brilhantes e chamativas dos centros comerciais, com luzes, lantejoulas e preços incomportáveis.
No fim-de-semana seguinte, pôs o Filipito - que fizera há poucos dias dois anos -, na cadeirinha do seu automóvel, «atado à vida», como lembravam anúncios mal conseguidos, por uma complicadíssima e demoradíssima teia de cintos de segurança, e rumou para a loja.

Era uma loja de brinquedos chamada, num arrojo de imaginação, «Loja de Brinquedos»: pequenina, último exemplar de comércio tradicional, sem luzes nem cores, muito degradada, tristonha, decadente. Poderia ser, se excluíssemos o pormenor do nome, em letras bem visíveis, uma agência funerária.
Filipito recusava-se a entrar. Chorava, agarrou-se às pernas de Rolindo, fazendo-o tropeçar várias vezes, irritando-o. «Anda, Fipo, vais ver que lá dentro é giro!»

Não era. O interior estava mergulhado numa penumbra inaceitável quando, lá fora, havia um sol tão amigo do mundo.

Aproximou-se deles uma figura sinistra, de óculos muito espessos nuns aros de massa, encavalitados sobre um nariz que tinha algo de assustador, não tanto pelas dimensões mas pela própria forma.
Arrastava-se lentamente, com algo de animal pré-histórico, com uma batida regular do sapato disforme sobre o soalho.
Quando viu Filipito, todavia, um sorriso metamorfoseou-lhe o rosto anguloso. Esticou em direcção à cabeça da criança um dedo comprido, torto, com marcas de nicotina.
«Olá-á-á!»
Filipito recomeçou a chorar, pedindo colo ao pai.

Mas como se a entrada de uma criança numa loja para crianças devolvesse um sentido esquecido àquele espaço tétrico, o vendedor abriu duas janelas rangentes, deixando, finalmente, que a luz iluminasse uma série de brinquedos antigos mas em bom estado, soldadinhos, carros, bonecos, ursos, tambores - nada de Action-men, nem mini-computadores, nem personagens de ficção científica auto-falantes.
A criança piscou os olhos. Como se acordasse. Ou como se a casa principiasse a acordar para ela.

Contudo, para o pai, o súbito entusiasmo do homem não deixava de ser alarmante: havia algo de louco, de profundamente nervoso no modo como ele exibia guindastes, como se infantilizava perante os brinquedos, agarrando, neurótico, num tambor ou numa corneta, abandonando-os imediatamente para se interessar por outras coisas, empurrando, aqui, febril, dando corda, ali, tremente, fazendo girar, sempre com inúmeros ruídos...

Filipito, porém, esse deixava-se ir. Saíra do colo do pai, seguia, completamente encantado, como um rato ao som de uma flauta mágica, o rasto dos carrinhos, sentava-se no chão, de pernas cruzadas, punha-se de pé, saltitava.

O homem não descansava. Ergueu então o menino, prendendo-o sob os braços. Colocou-o no interior de um estranho veículo muito vermelho, muito desprotegido, sem cintos que o atassem à vida, com rodas de plástico. Empurrou. Com uma velocidade cada vez maior, desmentindo as suas dificuldades físicas, a sua perna manca, como se quisesse ultrapassar a barreira do som. Filipito não estava menormente assustado. Ria.
O veículo embalou. O homem deixou-o ir. Zzzzzzzzzzzzzzzzzz, vertiginosamente.
O pai não teve tempo de gritar.

O carro embateu estrondosamente numa mesa.
Dando um corpo frágil e um grito aterrorizado ao movimento de inércia, Filipito continuou a sua viagem pelo ar, saindo por uma daquelas janelas que a sinistra figura abrira pouco tempo antes.

Rolindo saiu, correndo, chamando. O filho não lhe respondia. Não ouvira baque, não se ouvira nada senão o grito, cada vez mais longínquo, até se perder.

Até hoje.

Nunca mais soube do seu filho. Ainda hoje o procura, nas imediações da loja. Que, entretanto, fechou.

sexta-feira, outubro 19, 2007

CENAS KAOSTICAS

Uma Biblioteca esfuziante, modernaça: computadores, constantes remessas de novos livros, sala de conferências, exposições. Inclusivamente, um bar que serve almoços ligeiros.

Entro, aderindo de imediato àquela espécie de silêncio religioso. Trago dois ou três livros para devolver. Passo pela primeira mesa. Lembrando-me de que, da última vez que os quisera entregar aí, se tinham zangado comigo e indicado uma segunda mesa, própria, essa sim, para levantamento e/ou devolução de livros, não me detenho. Mas, de caminho, sempre confirmo com a senhora funcionária que nada faz, sentada à primeira mesa:
«Livros, naquela outra mesa, não é?»
«Sim», responde-me com um sorriso que não consigo interpretar.

Estou já diante da segunda mesa. Com os livros na mão. Aguardo. Não vejo ninguém. Não posso chamar, não posso assobiar; um casaquinho de malha deixado nas costas da cadeira faz-me ter fé: alguém aparecerá.

Ninguém aparece. A fé estremece. Sinto o tempo a bater-me nas têmporas. Tenho mais que fazer. Ao fundo, sentada à primeira mesa, a empregada olha-me, com o mesmo sorriso indefinível. Não me chama. Deixo-me estar.

Passou demasiado tempo. Vou ter com a funcionária da mesa 1. Pergunto-lhe, com uma perplexidade que nada tem de irónico:
«Desculpe-me, não está ninguém naquela mesa?»
Responde-me, com uma perplexidade que, toda ela, tresanda a ironia:
«Não vê que não?!»
«Sim», insisto, «mas não vai aparecer ninguém?»
«Não, provavelmente não».
«Mas não posso devolver estes livros?»
«Como?»
«Se não posso devolver hoje estes livros...»
«Pode».
«A quem? Onde?»
«Como?»
«Como é que eu faço? A quem? Onde vou?»
«A mim. Aqui mesmo.»
Não devo deixar passar em branco esta série de equívocos, até porque ela mantém o irritante sorriso que, percebo finalmente, só pode ser de quem me quer tourear.
«Perdão, mas a senhora não me disse que os livros deviam ser requisitados ou devolvidos naquela mesa?»
«Disse. Mas isso, obviamente, quando está lá alguém. Neste momento, não está». E rematou, alargando um pouco o sorriso gengivudo: «Eu posso recebê-los aqui, mas o senhor quer que os vá receber na outra mesa...? Se prefere...»
O sorriso. Os dentes revelados até às gengivas.
Fico um pouco desarmado por esta lógica implacável. Passam-me meteoricamente várias possíveis respostas pela mente. «Mas não viu que eu me dirigi para a outra mesa?», ou, à falta de melhor argumento: «Está lá um casaquinho nas costas da cadeira...»

Suspeito, porém, que a conversa poderia durar muito, muito, muito tempo neste registo delirante. Não tenho pedalada. Não suporto o sorriso. Dou-lhe os livros. Venho-me embora. Paro. E se lhe dissesse...? Nááá! Saio.

50 ANOS

O que significa exactamente ter 50 anos de idade? O que simboliza, ou como me marca, ou de que modo me toca, ou me transforma, ou me esmaga, ou me faz pensar?
A tendência mais simples, mas a mais mentirosa também, seria a de encolher os ombros com alguma superioridade e responder «Nem dou por eles», fingindo não ouvir o riso surdo da minha ciática, dos meus grisalhos, das minhas rugas, das pessoas que me rodeiam. Não, alguma coisa terá mudado - sobretudo a nível simbólico, na maneira como olho para mim, e me vejo, e me meço. E deste ponto de vista, claro, é assustador: não posso evitar lembrar-me do que representava, para o adolescente que eu fui, um «senhor» de cinquenta; depois, há a perturbadora síntese dessa idade: meio século... Meio século parece-me uma imensidão, e se revejo os patamares das minhas vidas (porque tive realmente muitíssimas, e variadas), verifico que um «meio século» é uma substância temporal feita de épocas amarelecidas, que já nem reconheço se me confronto com elas, reconstituídas no cinema ou captadas em fotografias, com modelos de automóveis que não existem ou modas que, mais do que terem caído em desuso, se tornaram totalmente absurdas; amigos que desapareceram das mais diversas formas, mulheres que amei perdidamente, viagens inolvidáveis que me parecem impossíveis, a vivência colectiva de momentos que, para os adolescentes de hoje, são uma data histórica ou menos do que isso - nada são...
Aparte isso, reconheço em mim, e estou a ser inteiramente sincero, um elemento da mais pura infantilidade que nada, que ninguém foi capaz de desfazer. Uma capacidade de me não levar a sério que é um misto de insegurança perante tudo e todos e de recusa de me envolver numa «seriedade» da vida que me não fala nem toca.

E dizem-me, em casa:
«Pois! Isso é que é preocupante!»

E eu protesto. E mostro que poderia não ser de todo um defeito. Que até há quem me ache graça.
E respondem-me, em casa:
«Claro! Acham-te graça porque não têm de viver contigo...»

domingo, outubro 14, 2007

MADRE TERESA DE CALCUTÁ

Agora que o assunto deixou os jornais e as revistas onde, por um breve lapso de tempo, emparceirou com o caso «Maddie», é talvez o momento para regressar a ele. Falo de Madre Teresa de Calcutá, por quem, aliás, vá-se lá saber porquê, nunca nutri a mais minúscula simpatia.
Refiro-me, sobretudo, à sensacional (e sensacionalista) revelação da sua falta de Fé. Da sua «Noite Escura»: do silêncio de Deus, o pavoroso silêncio de um Deus que lhe não falava, que não descia sobre ela, que a não tranquilizava, que lhe não dava sinais, que a não deixava de modo algum sentir a sua Presença.

Curiosamente, os pensadores, padres ou leigos, entrevistados sobre esta questão, trataram de a menorizar: que a dúvida seria normal, que todo o crente passa por períodos de turbação e perturbação, de silêncio e ausência. Como São João da Cruz, diziam eles. Como Santa Teresa de Ávila, diziam eles. Como todos os Grandes Místicos, diziam eles. Mas, acrescentavam, que importância tem a dúvida se não para nos fortalecer? A persistência e o retorno ao redil, eis o que conta.

No caso de Madre Teresa, porám, não havia retorno. A fé fujira-lhe. Não estava em parte alguma. Batia à porta e, da casa, não lhe chegava qualquer vida. E não que lhe tivesse desaparecido ontem ou anteontem. Tratava-se de uma ausência longa, penosa, dolorosa, de anos, de sempre. Um silêncio abismal.

O que não ouvi dizer, é que é precisamente esse silêncio que transforma tudo quanto ela fez, tudo aquilo a que se entregou e devotou, numa tarefa enorme, grandiosa, sublime. Sem encorajamentos divinos, sem aplausos do Céu, sem vozes condutoras, sem, sequer, a certeza de um Prémio Eterno.

Entregar-se aos outro no meio do silêncio de Deus, sem o calor nem a energia celestiais, isso tem de ser, então, entregar-se verdadeiramente aos outros, para os outros, pelos outros. (Pois que, fora destes, para além deles, dos miseráveis que ajudo, dos esfomeados que alimento, dos nus a quem ofereço a própria camisa, nada me acena, nada me consola).

E, por si só, essa maneira de viver torna-se-me tão admirável, que encontro por Madre Teresa, na descoberta da sua tristeza, da sua descrença, da sua falta de Deus, a simpatia que nunca nutrira por ela.

E o seu exemplo vale bem todos os milhares gastos em sumptuosas igrejas em Fátima!

quarta-feira, agosto 29, 2007

FOCO SOBRE A VERDADE

A história é simples. E real.

Estou numa piscina paradisíaca, ainda que de pouco me preste, a mim que não sei nadar nem gosto de enfiar a cabeça debaixo da água. Contudo, já que a paguei, sinto-me no dever de usufruir. Estendido numa cadeira branca, sob um guarda-sol multi-colorido, a barba por fazer, as pernas estranhamente brancas no meio desta tribu de pessoas bronzeadas, vou-me entretendo com um livro policial, bocejo, dormito, o livro esquecido sobre o estômago. Isto é que é vida! (Mas a boa vida pode ser uma seca tão grande!)

Presto atenção à vida que decorre em redor de mim.

Há uma família, aliás, que me obriga a prestar atenção, porque tudo entre eles é tratado em altos gritos. O pai, judicioso e careca, impõe-se frequentemente. A mãe só pára de berrar com alguém, para seguir, numa revista cheia de fotografias dolorosas, as últimas notícias da tragédia da Maddie.
Os miúdos são insuportáveis: querem batatas fritas, molham as outras pessoas com autênticos mergulhos-de-golfinho, fazem exigências exorbitantes - insuportáveis, e sei bem do que falo, porque se parecem muito com o meu próprio filho!

Bruscamente, o escândalo.
Os garotos combinam que vão mergulhar juntos, sim, não, sim outra vez, comprometem-se um com o outro, correm, um trava, o mais velho salta.
Eis que o que saltou regressa, furioso. Têm uma discussão. Trocam-se agressões.
O mais novo, que não saltara, desata a chorar:
«O mano arranhou-me, o mano arranhou-me...»

Mas o pai, careca e judicioso, vira tudo.Intervém:
«Vai-te mas é tratar, ouvistes? Tu tens de ir mas é ó médico dos malucos. Tu não vistes, Susana? Tu não vistes? O gajo arranhou-se a ele próprio, que eu bem topei, o gajo arranhou-se a ele próprio para acusar o irmão... Eu topei! Já vistes? É tramado, hein? Vai-te tratar, pá, vai-te mas é tratar...»

A minha versão é outra. Sim, porque eu também assisti. E, de tudo, sobra-me a seguinte interpretação, da qual extrairia até uma lição, se me permitissem.

O irmão agressivo arranhara, efectivamente, o outro: mas, se se tratava, para este último, de fazer queixa, que provas poderia ele, a vítima, apresentar? Marcas de arranhão não são suficientemente nítidas. Experimento agora sobre mim mesmo. Cá está a confirmação das minhas palavras: nada, praticamente nada. Quando o miúdo se auto-arranhou, não foi, pois, para mentir, mas para sublinhar a verdade, para iluminá-la, para dar-lhe indícios mais notórios.

Às vezes, a verdade não se basta: precisa de ser iluminada. A luz não é algo que lhe acrescento. Simplesmente a expõe.

segunda-feira, agosto 27, 2007

DEUS

O ateismo é uma posição insustentável; considero-me perfeitamente insuspeito para fazer uma afirmação deste teor: na verdade, sou ateu.

O que mostra a existência de Deus não é, certamente, a retórica cartesiana, querendo fazer-se passar por uma pura «demonstração», assumindo como adquirido que um «ser perfeito mas inexistente» seria uma contradição nos termos. Descartes não tem razão: posso estabelecer, por exemplo, um conceito como o dos «mil euros que existem na minha carteira»; é evidente que o conceito de mil euros «existentes» na minha carteira «exige» que estes lá estejam (caso contrário, já não poderia ser o conceito dos «mil euros lá existentes»); mais: eu próprio bem gostaria de poder secundar essa exigência, de a fazer também, mas o facto é que não estão nem nunca lá estiveram, e não sei a que entidade possa endereçar a minha reclamação...

Também me não parece que por via de Pascal se encontre qualquer prova: apostar em Deus, é tudo o que o filósofo tem para aconselhar, numa espécie de piedoso truque - porque qualquer jogador sabe que se apostar em Deus e Ele não existir, paciência!, morro sem me aperceber sequer disso, enquanto que se, pelo contrário, não apostar e Ele existir, irei perder para toda a Eternidade...!
Isto pode fazer-me pensar duas vezes, mas não constitui realmente uma prova...

A única que me parece aceitável, é a mais antiga e a mais simples de todas: não se trata, naturalmente, do facto de o mundo ser perfeito, que, como podemos, aliás, observar facilmente, não é - ou não haveria necessidade de se inventar e produzir milho transgénico -, mas de ser uma construção complexa e, como tal, inteligente. E o homem, como resultado complexo de uma evolução no sentido do cada vez mais complexo, não pode certamente ser o composto arbitrário e darwinista de uma sucessão de acasos guiada unicamente por leis de adaptação. É, com certeza, mais do que isso. Embora, às vezes, baste um bando de energúmenos a destruir convictamente uma plantação de milho, ou a existência de alguém como a Carolina Salgado, para me regressarem as dúvidas...

A única pergunta que me parece, pois, sensata, é: e que Deus seria esse? Um Ser eterno e infinito, separado do mundo, criador desse mundo, ou simplesmente o Deus do panteísmo, o Logos, a dinâmica coerente da própria natureza, a esta imanente, uma força imperfeita mas não inteiramente cega, amoral mas inteligente?

É a única pergunta sensata. Não que a mim, pessoalmente, ela me interesse.
Antes manter-me ateu.

TRAGICOMÉDIA

Dizia-se que era um homem tão ridículo, que todos os seus dramas, imensos e mesquinhos, com os quais queria recolher a compreensão e a solidariedade pesarosa dos outros, nunca fizeram senão arrancar as gargalhadas bem-dispostas de quem o ouvia.

Quando teve a sua única filha e viveu, depois de uma primeira, natural e breve euforia, o período talvez mais negro da sua vida, visto que a criança nunca o deixou dormir tranquilamente uma noite que fosse, contava isto para que o consolassem, muito olheirento, coitado, com um tom olivácio e, na verdade, este drama - comparável, nos efeitos, à tortura da privação do sono enfrentado por certos heróis -, nele, tinha qualquer coisa de cómico a que ninguém resistia.

Suicidou-se.

Infelizmente, até a sua trágica morte teve uma nota falsa: porque, para se enforcar, não arranjou outra corda que não fosse a corda de saltar da sua filha, com joaninhas vermelhas...

quarta-feira, agosto 22, 2007

CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA

Se eu tivesse leitores, iriam certamente admirar-se de que escreva com tanta regularidade acerca da tarefa de separar o lixo, ou melhor, de ir despejar nos respectivos «ões» (o vidrão, o papelão, o pilhão etc.) os dejectos prévia e conscienciosamente separados.

Não é falta de assunto. Talvez porque a minha vida seja demasiado pacata, esta tarefa marca-me particularmente. É o meu grande contributo para a Causa ecológica.

Explico porquê:
Em primeiro lugar, sinto muitas saudades de um camião que passava todas as noites pela minha porta, à segunda levando o contentor amarelo, à terça o castanho, e por aí fora...
Como essa boa ideia morreu, eu deixo os contentores ficarem quase a transbordar e, um dia, levo-os até aos «ões», muitos quarteirões adiante.
Abrem-se-me dilemas, escolhas: levá-los de carro? Essa experiência foi traumatizante, porque estava calor, os plásticos têm sempre uns restos de substâncias viscosas que deixam cheiro e atraem moscas, de modo que o meu carro, que nunca foi um modelo de asseio, andou uns dias pior do que nunca. A ponto de, quando a polícia me mandou parar para me «autuar», o senhor agente do boné periclitante ter, após umas fungadelas, desconfiado que eu levaria um cadáver escondido na mala. Por que outra razão teria ele pedido que a abrisse?

A outra hipótese é carregá-los a pé. Arrastando-me, num penoso convívio com as moscas que não me abandonam e eu já não tenho mãos para enxotar, chego a um lugar sórdido, onde abundam restos de lixo que o desgraçado que eu sou tem de pisar enquanto enfia as coisas pelas ranhuras...

Em segundo lugar, dói-me a assistência. Há ali um banco onde uns velhinhos seguem atentamente o processo. Qualquer que seja a hora, os velhinhos estão lá.
Eu descrevi, um dia, esta cena à minha mulher.
«Os velhos fartam-se de gozar comigo! De cada vez que eu tropeço, ou que não consigo enfiar uma embalagem na ranhura, os tipos riem-se... devem pensar que eu me dou a trabalhos estúpidos, que sou um palhaço, uma criatura absurda...!»
E a minha mulher rebateu-me o pessimismo fácil e macambúzio:
«Pelo contrário! Tu és um exemplo! De cada vez que te vêem, os velhinhos só podem admirar-te por perceber que há pessoas que se dão a tanto trabalho para manter o planeta melhor. Tu comove-los, é o que é...»
«Hummmm...», desconfiei eu, lembrando-me dos rostos enrugados e trocistas, onde nunca li nada que me fizesse crer que os comovia.

Da última vez, hoje, mais precisamente, lá estavam eles.
E eu, orgulhoso, imbuído da minha superioridade sobre estes gajos que atiram papéis para o chão e sacos de lixo em qualquer lado, cheio do meu estatuto de exemplo.

Mas, na verdade, as coisas correram mal. Nada entrava onde devia, o vento trazia-me gargalhadas que me feriam a superioridade, a faziam ceder, o lixo escorregava-me pelo corpo.
Furioso, berrei, para ser ouvido:
- Que se f... a m... da reciclagem!

Depois voltei para casa, cabisbaixo, não me atrevendo a olhar para ninguém, embaraçado, envergonhado.
Até que o meu grito desesperado foi ganhando um significado. Era um elemento de rebelião contra as dificuldades da luta ecológica. Por que não há-de haver um papelão mais próximo? Um plasticão mais limpo? Com ranhuras mais largas???

O meu grito era um grito de luta. O elemento de violência que, ao que parece, deve ser incorporado na luta ecológica em busca de mediatismo.

A continuar assim, qualquer dia estou pronto para ir massacrar umas maçarocas transgénicas.

terça-feira, agosto 21, 2007

UMA VITÓRIA NÍTIDA PARA A ECOLOGIA

E põe-se, de uma vez, termo às hesitações e às incertezas científicas: fica finalmente estabelecido que os alimentos transgénicos são altamente prejudiciais à saúde. Agora, há provas; há uma prova: a primeira vítima notória do milho geneticamente transformado foi o proprietário da plantação que, após o assalto dos jovens ecologistas que lhe massacraram heroicamente uma série de maçarocas, acabou tendo um enfarte.

Há por aí vozes que se erguem, discordantes, contra os bravos ecologistas. Há mesmo quem pretenda que eles erraram o alvo. Que deviam ter atacado empresas multinacionais, ao invés de um velhinho que se dedica à plantação de maçarocas. Erraram o alvo?! Isso foi o que pensaram quando um carro embateu no meu veículo e eu, furioso, tendo de bater forçosamente em alguém, dei um murro num senhor cego que se aproximara para assistir ao espectáculo. Não errei, não: acertei-lhe em cheio! E, vamos lá, quem queriam que agredisse? O homem de quase dois metros e tatuagens nos braços hercúleos que vinha a conduzir o carro que não parou num «stop» e partiu o meu em dois? Está bem, está!

Alguém, cujo nome e cuja importância eu não fixei, argumentou que não concordava com os métodos mas compreendia as razões - e sempre acrescentou que, bem vistas as coisas, a verdade é que, «apesar de tudo», nunca esta questão fora tão mediatizada. Portanto... até os métodos parecem ter qualquer coisa de bom. Se o episódio passa na televisão já quase mais vezes do que o desaparecimento da Maddie e os dislates do Berardo, então é certamente uma vitória.

O senhor Mendes e o senhor Louçã é que estão muito zangados com o governo a propósito do acontecimento. Mas o senhor Mendes e o senhor Louçã estão sempre muito zangados. Devem andar a comer milho estragado!

O HOMEM PERFEITO

- H., anda para a cama, querido - chamava ela com uma nota de ansiedade na voz.
- Já vou, Dulce - respondeu H.
Não podia deitar-se sem lavar a loiça, logo naquele dia em que a máquina pifara.
Pegou nos pratos, foi-os deixando apanhar água sob a torneira que também teria de consertar, esfregou-os minuciosamente com a esponja embebida em detergente, mais água, limpou-os; fez o mesmo com os copos, com os talheres.
- Demoras muito, querido?
- Já não, já não. Vou já já, é já já!
Faltava, porém, engomar a roupa para o dia seguinte; não tanto a dele, que preferia as suas calças de ganga «au naturel», mas a dela: a saia que tinha de se passar com cem mil e cem cuidados, a camisa delicada, com rendas por todo o lado...
Abriu a tábua, colocou as peças sobre esta, aspergiu água, passou a roupa de Dulce, colocou-a, cuidadosamente, sobre uma cadeira.
A voz da mulher impacientava-se:
- Vais inventar mais alguma coisa para não vires para a cama...?
Ela não deixava de ter razão, pensou. Algumas das tarefas que se lhe acumulavam agora poderiam muito bem ter sido despachadas ao longo da tarde, desde que saíra do serviço. Mas tivera de passar por casa da mãe de Dulce para ver se, como habitualmente, não faltava nada a Dona Auzenda que, com oitenta anos, vivia sozinha num estúdio de um típico bairro J. Pimenta.
Subiu, deitou-se-lhe ao lado.
Dulce estava ansiosa por ele, pela sua pele, pelo seu corpo. Beijaram-se. Lançaram-se um ao outro, ou um no outro, numa espécie de luta animal, a que o prolongado grito de satisfação de Dulce pôs termo, ao fim de quase uma hora.
- Outra vez? - perguntou, solícito.
- Não, agora não, obrigada. Estou bem. E fatigada. Boa noite, querido.
Ela voltou-se-lhe de costas, com o habitual ranger de molas do colchão. Desligou o candeeiro da mesinha de cabeceira.
Por falar em «desligar»: H. precisava de carregar a bateria. Literalmente. Para isso, tinha simplesmente de se desligar a si próprio, premindo o minúsculo botão a que o professor Schultz, seu Deus, seu criador, dera a forma de mamilo, o seu mamilo esquerdo. (Nos homens, os mamilos não têm qualquer utilidade. Em H., pelo menos o esquerdo...)
E isso, conseguia fazer: desligar-se.
Mas, e depois? De manhã? Não seria capaz de se ligar a si mesmo, se estava desligado.
Ela seria capaz de o fazer? Fá-lo-ia?
Desligou-se, sem saber se alguma vez voltaria a acordar...

segunda-feira, agosto 20, 2007

A GLORIOSA REUNIÃO DE LÍDERES AFRICANOS

O núcleo duro de tudo aquilo que forma ideológica e simbolicamente a esquerda e, até, une de algum modo as diferentes esquerdas, reflecte-se com alguma segurança na ideia e na prática da descolonização.

Num tempo de repensamento, em que foram sendo sistematicamente postos em causa, por teóricos de esquerda,as chaves da própria esquerda (desde o papel do proletariado à possibilidade da revolução, desde a noção de igualdade à necessidade de liquidar a instituição burguesa que seria «a família»), num derradeiro dogma não vi ainda tocar: a bondade da descolonização, como forma de libertação de povos oprimidos e garantia de progresso para todos.

Uma vez que, à falta de melhor, me considero eventualmente (ainda) de esquerda, até quando a detesto, e mesmo, por vezes, marxista (tendência Groucho Marx), e porque, por outro lado, sou um desenraizado, ou seja, alguém que nasceu e viveu (até aos dezoito anos) em Moçambique,interessa-me profundamente a questão da descolonização.

Olhando para a glamourosa reunião de líderes africanos que Portugal orgulhosamente prepara, não posso deixar de sentir um ligeiro calafrio ante essa mirambolante colecção de ditadores que conseguimos juntar. Desde o senhor José Eduardo dos Santos ao senhor Mugabe, a quem não fomos capazes de negar assento, o espectáculo a que assistimos é, afinal, o dos nossos erros ou o da falência do grande ideal da esquerda: pegou-se em grandes e ricos territórios cujas fronteiras eram, já de si, uma ficção colonial, fazendo tábua rasa de rivalidades e lutas antiquíssimas entre diferentes etnias, esqueceram-se completamente os colonos que, mal ou bem, com direito ou sem ele, tinham investido nessas terras tudo o que eram e tudo o que possuíam, entregou-se o poder a elites formadas unicamente no combate e na guerrilha, esperando que estivessem preparadas para assumir os modelos políticos europeus, como se, por sua vez, estes fossem os únicos possíveis, e os mais indicados, e lavámos daí as nossas mãos.
Em face das insanidades e devaneios dos ditadores que entretanto emergiam, limitávamo-nos a assobiar para o lado, já demasiado assolados pelos nossos próprios complexos de culpa para arcarmos ainda com novas culpas...

Não sejamos lineares: houve, na luta anti-colonial, verdadeiros heróis, homens e mulheres exemplares, de uma força e de uma dignidade extraordinárias? Samora Machel ou Nelson Mandela são símbolos maiores de tudo aquilo em que a África livre poderia ter-se tornado? Sem dúvida.
As condições tiveram excessivo peso? Os países colonizadores não podiam, após anos e anos de dura luta, senão acatar, e nos termos em que o fizeram, a emancipação dos povos colonizados? Essas condições pareciam soprar, fortemente, todas num mesmo sentido, como se não houvesse escolha, como se algo de moira fatal imbuísse o vento da História? Sem dúvida.
Porque, afinal, a História não é uma constante entrada em novos patamares de escolhas. Frequentemente, mesmo o que nos soa como «escolhas» feitas (pelos reis, pelos governantes, por Mário Soares na altura...) são a expressão de teias de condicionalismos demasiado poderosos, que empurram fatidicamente para um ponto determinado.

Mas a conclusão é, então, que o movimento da História está muito longe de se poder representar como um «progresso». (Ah, sim! Essa outra grande e optimista convicção de todas as esquerdas).

Penso nisto, enquanto imagino Robert Mugabe sentando-se no seu lugar, sorrindo à esquerda e à direita, ao mesmo tempo que coloca nas orelhas os fones de tradução simultânea a que, certamente, há-de, também ele, ter direito... (como se compreendesse a tradução de quaisquer ideias que não sejam as suas próprias)...

terça-feira, agosto 07, 2007

COLECÇÃO JOE BERARDO NO CCB: UM PROJECTO SUICIDA

Deixem-me principiar por explicar o título deste meu «post».
O que, em relação à colecção Joe Berardo, se revelou um projecto suicida, foi a peregrina ideia de a visitar em família, ou seja, com uma mulher esgotada pelo facto de terem começado as suas férias, um adolescente de doze anos, misto de homem-aranha e de incrível Hulk, todo ele energia duendia à solta (quer dizer, uma energia de duende, instável, desequilibrada, magnífica) e uma criança de vinte e dois ou vinte e três meses...

Num episódio destes radica todo o surrealismo, a génese do próprio surrealismo, tão caro a Berardo: um pai de óculos, barba por fazer, calções e pernas muito brancas, norteado pela bizarra ideia de interessar a família em pintura, fotografia e escultura; uma mãe que se arrasta, ansiosa por que as recém-iniciadas férias acabem e ela possa regressar depressa à paz do seu serviço; um garoto que, de toda a colecção, se fixou para todo o sempre na escultura de um homem e uma mulher nus, no chão, deitados um sobre o outro; uma bebé gritando, não querendo sair de um rectângulo mais saliente do chão (que foi a única peça que, aliás, interessou a esta exigente crítica de Arte), insistindo em mexer nas obras - nomeadamente numa corda estendida no chão entre dois caixotes... que devo confessar que já não se encontra exactamente na mesma posição em que a vimos quando chegámos: será ainda uma obra de Arte? Uma instalação? Com o mesmo sentido, o mesmo significado, o mesmo desígnio, depois das ligeiras alterações promovidas por uma bebé irrequieta...?

O meu filho fazia, entretanto, cenas de ciumes porque a irmã não o abraçava; a irmã berrava almadamente (ou seja, com toda a sua alma, e não, como se diz, «desalmadamente»); depois, o Duarte aproximava-se de mim, segredava-me, excitadíssimo, lembrando-se do casal nu: «Mas ele não estava com a pila dentro dela, porquê? Não era para estar?» - e queria voltar atrás, e zangava-se com a irmã, e a irmã com ele.
Os seguranças seguiam-nos, num cordão apertado, atento, como se fossemos os ladrões do «Grito», detectados ali. Um deles, muito alto, muito negro, ria-se de tudo aquilo, com uns dentes a brilhar, enormes, alvíssimos. Os outros não riam. Preocupavam-se. Eu sentia que incomodávamos os demais casais, os velhinhos, os visitantes, a todos menos ao segurança negro de dentes brancos, que se divertia com o espectáculo...

O surrealismo, de que a nossa família nasceu, e que nasceu certamente, enquanto corrente artística, de um episódio como esta nossa visita, misturando o quotidiano com o onírico, o normal com o anormal, o bizarro e o impossível, nunca perece. Já nas salas de cima, desculpem-me, a pop-Art cansa, com as suas colagens, a sua confusão entre realismo e banda desenhada...
É a análise possível. Porque, mais à frente, a minha filha se prepara para subir a uma instalação.
Enquanto o meu filho volta à carga, de mãos nos bolsos:
«Mas ela tinha pêlos no pipi?»

domingo, julho 29, 2007

DA INSENSIBILIDADE COMO CATEGORIA POLÍTICA

Pois para festejarmos o modo como este governo clamorosamente agora caiu, e os ministros...

Peço perdão, houve uma troca de rascunhos, pelo que iniciei o presente «post» com uma frase que tenho ciosamente guardada para o devido momento.

Reiniciemos, pois:

Com a sua voz grave e tensa, de quem tem um dramático e permanente segredo para nos revelar, que parece queimar-lhe a garganta, Francisco Louçã confidenciou-nos: «Este governo não gosta das pessoas.»

Francisco Louçã perdeu, nos últimos anos, muito do interesse que me suscitara, mas, por uma vez, acertou no alvo de uma forma que chega a doer.
Em todas as decisões que têm chocado, e sobretudo em zonas tão delicadas como a Educação ou a Saúde, o governo tem revelado uma insensibilidade que nenhum discurso ministerial consegue esconder. Norteia-o a ideia de que há que fazer progredir o país segundo os critérios da Comunidade Europeia, no que toca a números visíveis, mas à custa das pessoas, das famílias, num total desrespeito pelo sofrimento concreto.
Pode o primeiro-ministro confessar-se chocado com as situações, sistematicamente vindas a lume, de recusa de aposentação a professores obrigados, desculpem-me a crueza das palavras, a morrer nas escolas; o certo é que, para que estes factos tenham sido possíveis, e durante tanto tempo - e com conhecimento da ministra da Educação, como a própria afirmou -, não só é necessário que esta espécie de anestesia dos sentimentos tenha crescido e estendido os seus efeitos um pouco por todos os departamentos sob responsabilidade do governo, como, à sua luz, se torna bruscamente compreensível que o governo tenha considerado uma medida aceitável travar e estancar todas as mudanças de escalão dos funcionários públicos e dos professores por um período prolongado, que um senhor seja posto na berlinda pelo uso da sua opinião, com palavras excessivas ou não...
Tudo, as mais dispersas e inesperadas medidas encontram, se não mais, este pequeno mas duro ponto comum, este mínimo mas forte fio condutor.
Irão, certamente, objectar-me que há demasiada subjectividade na minha análise, que algo como a «insensibilidade» não constitui uma categoria política; como é evidente, discordo completamente da objecção: por insensibilidade, entenda-se, não se discute se o primeiro-ministro ou qualquer um dos seus ministros são capazes de se comover em funerais, ou lacrimejar diante de um filme triste; não se discute até que ponto, como pessoa, o senhor José Sócrates, ao tomar conhecimento de alguns casos de professores obrigados a arrastar os respectivos cancros pelas escolas, não será capaz de sentir um aguilhão na consciência ou um aperto no coração. A insensibilidade de que vos falo é perfeitamente objectiva. E política. Tem que ver com um determinado espírito que condiciona as decisões, que determina as prioridades, que hierarquiza o que é importante e que, no momento das escolhas, concentra a atenção em certos aspectos ocultando à nossa atenção os outros - chamemos-lhes pormenores. Não tem conteúdo, não é, em si, um valor, muito menos um programa, mas algo que se aproximaria de uma atitude, sendo que o termo «atitude» é vago e, pessoalmente, lhe prefiro a expressão «forma»: trata-se, portanto, de uma forma de governação assumida pelo governo, multiplicada - e clonada -, por todos os ministros, secretários, sub-secretários, assessores, contínuos, porteiros, presente em todos os ministérios, copiada ao exemplo que vem de cima, natural e espontaneamente espalhada, forma à qual os amigos do governo chamariam «determinação», os inimigos «obstinação» e se apresenta, nos mais diversos casos, como pura «insensibilidade».
É claramente uma categoria política - situada naquele ponto invisível onde a política se cruza com a moral.

sábado, junho 30, 2007

O ESPECTÁCULO MAIS CARO E MAIS BREVE DO MUNDO

A Brigada de Trânsito multou-me. Ou, como eles dizem, autuou-me.
Tinham razão, e eu não: falava despudoradamente ao telemóvel enquanto conduzia, marginal afora. Dei por eles no momento em que me ultrapassaram, vagarosos, como se, de repente, tudo tivesse principiado a mover-se em câmara lenta; tudo, com excepção do meu coração, que disparou a uma velocidade que teria certamente merecido, também, ser «autuada».
Durante algum tempo, não fizeram nada: mantiveram-se à minha frente, rolando com serenidade. Nem gestos, nem sirenes, nem gritos por megafone. Cheguei a pensar, numa ingenuidade digna de uma terceira multa, que talvez não tivessem reparado no pormenor do telemóvel que, entretanto, desligara, e que chamava agora por mim, assinalando o desespero da pessoa a quem eu interrompera a conversa sem pré-aviso. Pensei em ultrapassá-los, por minha vez. Não o fiz. Mantive-me atento, tenso, atrás deles, pisando ovos...
Até que, ao aproximarmo-nos de uma saída, a mão peluda de um dos dois agentes indicou pela janela da viatura, com firmeza, que me queriam atrás deles por aquele desvio.
Saímos. Pararam, parei. Um jovem de óculos escuros e boné periclitante sobre a cabeça dirigiu-se-me. Eu balbuciava desculpas, explicava mentirosamente que não tinha esse hábito, que fora uma emergência, mas o homem limitava-se a insistir pelos meus documentos.

A única parte interessante de toda aquela sessão foi, do meu ponto de vista, constituída pelo momento em que uma rabanada de vento fez voar da cabeça do jovem agente o seu boné, fazendo-me compreender a dureza da sua missão: não é fácil perseguir bandidos com uma mão tendo de pressionar constantemente a tampa de um boné que não encaixa com perfeição na cabeça. Infelizmente, devo confessar que esse momento de humor e relaxamento foi demasiado breve para tamanho preço. Custou-me cento e vinte euros. Suponho que numa revista do Parque Mayer também me poderia ter rido do típico polícia à portuguesa por menos dinheiro...

Se eu fosse uma criança, ou um anarquista, ou um tipo sem moral, incapaz de respeito pela Lei, ter-me-ia dado ao trabalho de congeminar um plano para futuras situações. Por exemplo, passar a andar sempre com dois telemóveis no carro: um normal, o outro completamente avariado.
Mandado parar por falar ao telemóvel durante a condução, esconderia imediatamente o bom; apresentaria, ao agente, o estragado, dizendo-lhe:
- Mas eu não estava a falar ao telemóvel, senhor guarda. Já viu o estado dele? Como é que eu podia falar nisto? Encostara-o simplesmente ao ouvido para tentar perceber se teria arranjo. E não tem, não tem, já viu isto? Foi o meu filho e blá-blá-blá...

Se eu não passasse de um adolescente, claro, desses com aparelho nos dentes e que sangram do nariz por tudo e por nada. Ou de um anarquista. Ou de um Fora-da-lei. Ou se não fosse um professor a trabalhar pelo honroso posto de titular...!

quarta-feira, junho 20, 2007

UMA TEORIA SOBRE A BOA EDUCAÇÃO E OS EQUÍVOCOS QUE GERA

Já percebi muito bem que alguma coisa, no modo como entro numa secretaria ou num qualquer serviço administrativo, envia sinais que os senhores que me atendem interpretam sempre como submissão, receio, inferioridade. Não sei que sinais sejam. Talvez excesso de suor, excesso de gestualidade, excesso de explicações, excesso de delicadeza. Alguma coisa, que não consigo identificar, quanto mais controlar em mim, faz os senhores e as senhoras que se encontram aos balcões das secretarias, puxar da sua arrogância, da sua prepotência, de uns esgares de impaciência e desdém, de uma secura especial em resposta às minhas desajeitadas tentativas de humor.
Falo a sério. Se esses sinais têm tanta importância entre os cães ou entre os lobos, ou mesmo entre os peixes, que não são criaturas conhecidas pela sua inteligência, se é fácil animais da mesma espécie reconhecerem quem lidera, e quem se acoita na subserviência, pelo modo como um deles exibe o ventre vulnerável aos dentes do outro, ou oferece o cachaço, ou espera pacientemente pela sua vez na partilha da presa, como não haveriam os seres humanos de reagir a sinais porventura ainda mais subtis? Não é preciso que eu me estenda no chão, mostrando o meu ventre; há certamente sinais imperceptíveis mas que, a um determinado nível, subliminarmente, não deixam de ter efeito.

Mas eu tenho uma teoria: a democracia, de algum modo, baralhou a lógica e o sentido desses sinais. (O facto parece-me tão evidente e compreensível, que não acredito que haja quem tome por anti-democrática a sua verificação. Enfim, nunca se sabe. Algumas pessoas são realmente muito burras...!)

A delicadeza, a etiqueta, a chamada boa educação, sempre foram a sofisticação da elite: uma pessoa deixar outra passar primeiro pela porta, alguém levantar-se para oferecer o seu lugar, ou descobrir-se diante de outrem, não eram propriamente gestos que indicassem submissão ou inferioridade. Eram, pelo contrário, uma garantia da educação esmerada - e um sinal de reconhecimento de um eleito, de um fidalgo, de um cavalheiro. Hoje, quando frequentamos (ou podemos frequentar) as mesmas escolas, aceder aos mesmos empregos e, pelo menos aparentemente, nos tornámos todos iguais, os sinais tornam-se equívocos - porque se eu deixo o bruto passar-me à frente, o bruto pensa: «Ah, ele reconhece que eu sou mais importante! Primeiro eu, depois ele...!»; se for uma mulher (que não sabe nem perceberia que eu deixo sempre passar primeiro quem quer que esteja comigo, e o não faço unicamente por se tratar de uma mulher), será capaz de me admoestar, como já algumas mo fizeram, do alto do seu assumido e estreito feminismo: «Isso já não se usa!»

São, quem sabe?, esta delicadeza incompreendida e dinossáurica, este dirigir-se ainda às pessoas com «por favor» e «desculpe», este não passar à frente nem pôr-se em bicos de pés, que, para um funcionário de secretaria, se traduzem de imediato como: «Grite-me aos ouvidos, enxovalhe-me, pontapeie-me que eu estou inibido e tenho muito medo de si!»

É a minha teoria

terça-feira, maio 22, 2007

A LIBERDADE DE PROIBIR QUE SE SEJA LIVRE DE FUMAR

Perante este poderoso e virtuoso tsunami que é a tentativa de liquidação dos fumadores, venho sentindo a necessidade de dizer uma, talvez duas coisas. Fá-lo-ei, ainda por cima, na posição imperdoável de traidor à minha classe de origem: a de não-fumador.

Fumar tornou-se, aos olhos moralistas e moralizadores do senso comum contemporâneo, num crime terrível, quase ao nível da pedofilia. De um momento para o outro, a sociedade passou a ver no acto de abrir um maço, puxar de um cigarro, levá-lo à boca, acendê-lo, uma espécie de degradação, misto de suicídio lento e de lento homicídio com alguma responsabilidade também na destruição do ambiente.

Fumar é visto como um acto sujo. Fisicamente sujo, porque se trata de contaminar os pulmões e o ar - e os dentes, e os dedos - mas também moralmente sujo, porque se trata de conformar-se ao vício. Multiplicam-se campanhas, ostentam-se fotografias de órgãos completamente destruídos, fala-se das doenças e, suprema humilhação, adverte-se, nos próprios maços, como se os fumadores o não soubessem ou pudessem esquecê-lo, que o tabaco torna impotente, mata, emporcalha o corpo e a alma.

Finalmente, proíbe-se que se fume: e os portugueses, sondados sobre a questão, acham bem; os portugueses gostariam, porventura, que se fosse mais longe; que os fumadores fossem impedidos de fumar em bares, em salões de fumo, em qualquer lado, em todo o lado...

A tirania espreita sob este ideal de um mundo politicamente correcto, perfeito, sem fumadores, nem touradas, nem circos, nem anedotas sobre Alentejanos, ou loiras, ou pretos; sem escolhas, nem risos, nem discordâncias. A mais tremenda das intolerâncias acoita-se, paradoxalmente, nesta pregação da «tolerância justa», que se poderia traduzir no seguinte lema: temos de ser tolerantes com todos aqueles sujeitos «diferentes» que venham enunciados na nossa cartilha - o que significa, ao mesmo tempo, banir e proscrever os «diferentes» errados, os que são capazes de apreciar (por exemplo) espectáculos bárbaros, ou de apreciar um charuto poluidor, ou os cínicos, ou os descrentes...

No meio de tudo, como não-fumador que não gosta que lhe fumem para ao rosto, é certo, e não se cala quando o cigarro incomoda, por exemplo se almoço num restaurante, mas não aceita que queiram proibir o cigarro como possibilidade, como direito, como escolha, apetece-me recordar que o acto de fumar é um acto cultural e mítico, imbuído de simbolismo e de estilo; que pode ser um acto de uma beleza e de uma sensualidade extremas, que a memória do cinema transporta desde sempre; que não é possível evocarmos determinadas imagens ou pessoas sem que se lhes associe o cigarro, de Bogart a Brando, de Malraux a Guevara, de Lucky Luke a Gainsbourg, passando pela Dietrich ou pela Simone de Beauvoir; que foi - e é - tantas vezes um gesto de rebeldia e provocação, que o foi sempre de emancipação, e de aproximação, de comunicação, sedução; ou, como se tudo não bastasse, que é um prazer, um gosto - antes de ser um vício, ou para além de o ser. Ou: ao mesmo tempo que o é.

Tudo isto se paga? Sem dúvida. Em dinheiro, em saúde, em rupturas. Não sei se compensará. Para alguns, teimosos resistentes, fumadores ferrenhos, parece-me óbvio que sim. Sei, como não-fumador assumido, contudo - e estou perfeitamente consciente de cada uma das palavras que passarei a escrever -, que um mundo do qual o tabaco fosse inteiramente banido, juntamente com a elegância do gesto de puxar de um cigarro, ou o de bater com ele sobre o maço, como que para o endireitar - coisa que já não vejo fazer tão frequentemente como via na minha infância -, ou de o acender com o tremeluzir amarelo-azul da chama de um isqueiro, seria um mundo mais pobre, mais seco, mais triste e mais despojado em termos simbólicos, míticos, culturais.
Sei que um mundo em que proibissem Humphrey Bogart de fumar - ou me proibissem de o evocar mergulhado no fumo ténue do seu eterno cigarro - seria um mundo menos rico. E menos livre.