sexta-feira, dezembro 31, 2010
POBRES AFORISMOS KAÓSTICOS
A felicidade é um estado de iluminação: a sombra faz, portanto, necessariamente parte dela também.
CULPAS
E a velha que se me pespegou em casa, perante as notícias do telejornal , diz-me, pousando de novo a renda sobre o colo:
«Parece-me que se precisarem de fazer um governo com alguém no país que não tenha nenhuma culpa nesta situação, vão ter de me ir buscar a mim: já não resta mais ninguém.»
A velha ainda me espanta.
«Parece-me que se precisarem de fazer um governo com alguém no país que não tenha nenhuma culpa nesta situação, vão ter de me ir buscar a mim: já não resta mais ninguém.»
A velha ainda me espanta.
quinta-feira, dezembro 30, 2010
PREFERIA ACREDITAR QUE A REALIDADE ERA MELHOR
Pensando bem, gosto que me mintam. Ou melhor, preciso disso.
No fundo, sou rigorosamente um daqueles que tipos que, principiando a perder cabelo no cocuruto da cabeça, ainda perguntam «Achas que estou a ficar careca?», com o desejo de que lhes respondam: «Tu?! Não, que ideia».
E com o desejo de acreditar que acreditam nisso.
No fundo, sou rigorosamente um daqueles que tipos que, principiando a perder cabelo no cocuruto da cabeça, ainda perguntam «Achas que estou a ficar careca?», com o desejo de que lhes respondam: «Tu?! Não, que ideia».
E com o desejo de acreditar que acreditam nisso.
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minutos de enorme fadiga psicológica
OS FELIX
Diz a velha que se me pespegou em casa, pousando a renda sobre o colo, e esticando-me o indicador:
«Sabe que ainda sou da família do Bagão Félix?»
Pergunto, um pouco surpreendido com o despropósito: «Ai sim? Porquê?»
Ela: «Porque a minha avó também se chama Félix.»
Estou atónito. Acabo por não lhe perguntar se haverá ainda alguma ligação da família ao gato Félix.
«Sabe que ainda sou da família do Bagão Félix?»
Pergunto, um pouco surpreendido com o despropósito: «Ai sim? Porquê?»
Ela: «Porque a minha avó também se chama Félix.»
Estou atónito. Acabo por não lhe perguntar se haverá ainda alguma ligação da família ao gato Félix.
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minúsculos momentos de Glória
SABEMOS O ESSENCIAL SOBRE TUBARÕES?
quarta-feira, dezembro 29, 2010
PÃO E CIRCO
Passo os olhos pela Sic: o psicólogo a que, respeitosamente, chamam Professor Quintino, fala, encantado por poder falar, a uma mãe estóica e a um padrasto completamente encharcado em medicamentos. Qual o tema? Vi o Meu Filho de 11 Anos Ser Atropelado.
Mudo, ligeiramente agoniado, para a Tvi. Goucha conversa com uma velha de carrapito, que limpa as lágrimas. Sobre quê? Sobre: Uma Criança que Levou Facadas. Deve ter morrido.
Tudo devém entretenimento. Quanto pior melhor. Ave, César!
Mudo, ligeiramente agoniado, para a Tvi. Goucha conversa com uma velha de carrapito, que limpa as lágrimas. Sobre quê? Sobre: Uma Criança que Levou Facadas. Deve ter morrido.
Tudo devém entretenimento. Quanto pior melhor. Ave, César!
segunda-feira, dezembro 27, 2010
UM CONTO DIDÁCTICO DE NATAL
kiko, o coelhinho, viu um dia, num centro comercial, um pai natal que prometia prendas aos meninos. o pequeno entusiasmou-se com aquela pujante barba branca e com os óculos de aros filiformes, dourados. o homem era bem gordo, sinal de que se alimentava bem. e ria muito, o que indica que a vida não lhe corria mal. em tempos de crise, aquela conjugação de sinais parecia-lhe convidativa.
nessa mesma noite abordou com a mãe o assunto. kiko queria ser pai natal. a mãe coelha principiou por sorrir, mas acabou chorando, ao perceber que o menino coelho estava decidido e não via mais nada à frente. «ó kiko, bigode lindo da mamã, o fofo não pode ser pai natal. o pai natal é um ser humano, kiko. oiça, querido, o fofo pode ser tanta coisa, olhe, engenheiro de tocas, como o papá, ou mesmo coelho da páscoa; o coelho da páscoa é uma espécie de pai natal em coelho, fofo...»
mas kiko não queria ser nada mais que não um coelho bem nutrido, de barrete vermelho, barba algodoada, branquinha, óculos e botas pretas. e, percebendo que isso nunca sucederia, o coelhito entrou em greve. numa espécie de greve, digamos. não comia. chorava. chorou dias, depois semanas, meses, estações. quando chegou o natal seguinte, kiko chorava ainda.
então, apercebeu-se de que, a partir de um certo ponto da noite, não era o único a chorar. crianças de todo o mundo choravam com ele, num coro deveras irritante. cessou o seu berreiro. lambeu e engoliu as próprias lágrimas. saiu para o frio, enterrando-se na neve, perguntando «que se passa? que se passa?»
contaram-lhe que esse ano o pai natal não aparecera; não havia prendas para ninguém. por causa da crise?, perguntou-se. e foi andando, com as patinhas deixando marcas fundas na branca neve. andou sem rumo, errado ao ritmo das suas divagações, até que, um pouco mais adiante, encontrou um trenó voltado de cabeça para baixo, vazio. e umas renas estranhas. «estranhas» porque demasiado coradas e com soluços.
ouviu um gemido. atrás de um arbusto, kiko deparou com o próprio pai natal. estendido no chão, ambas as mãos sobre o ventre, como se tivesse apanhado um tiro. e gemendo, gemendo. que se passa?, perguntou de novo, que se passou?
as renas haviam festejado com excessiva euforia. um copo aqui, um copo ali, risos, mais umas taças e, por fim, bebendo directamente das garrafas - tinham-se embriagado. conclusão: vogando depois pelo espaço com a liberalidade típica dos bêbados, descontrolaram-se e chocaram contra uma árvore durante a aterragem. e ali estava o pai natal, incapaz de se levantar, carpindo as suas mágoas e a de todos os meninos que, esse ano, não teriam presentes.
kiko ofereceu-se imediatamente para ser pai. um papá natal já atrasado, mas ainda cheio de prendas. punha o gorro, uma barba postiça, como os pais natal dos centros comerciais, e ia pelas chaminés. assim foi, de facto. e devo dizer que esse foi o melhor de todos os natais. pelo menos para kiko.
já perceberam que esta pequena história encerra uma lição e uma mensagem natalícia, não é verdade, amiguinhos? sim: se conduzir não beba. (pois, como acrescenta a daisy: porque pode entornar!)
nessa mesma noite abordou com a mãe o assunto. kiko queria ser pai natal. a mãe coelha principiou por sorrir, mas acabou chorando, ao perceber que o menino coelho estava decidido e não via mais nada à frente. «ó kiko, bigode lindo da mamã, o fofo não pode ser pai natal. o pai natal é um ser humano, kiko. oiça, querido, o fofo pode ser tanta coisa, olhe, engenheiro de tocas, como o papá, ou mesmo coelho da páscoa; o coelho da páscoa é uma espécie de pai natal em coelho, fofo...»
mas kiko não queria ser nada mais que não um coelho bem nutrido, de barrete vermelho, barba algodoada, branquinha, óculos e botas pretas. e, percebendo que isso nunca sucederia, o coelhito entrou em greve. numa espécie de greve, digamos. não comia. chorava. chorou dias, depois semanas, meses, estações. quando chegou o natal seguinte, kiko chorava ainda.
então, apercebeu-se de que, a partir de um certo ponto da noite, não era o único a chorar. crianças de todo o mundo choravam com ele, num coro deveras irritante. cessou o seu berreiro. lambeu e engoliu as próprias lágrimas. saiu para o frio, enterrando-se na neve, perguntando «que se passa? que se passa?»
contaram-lhe que esse ano o pai natal não aparecera; não havia prendas para ninguém. por causa da crise?, perguntou-se. e foi andando, com as patinhas deixando marcas fundas na branca neve. andou sem rumo, errado ao ritmo das suas divagações, até que, um pouco mais adiante, encontrou um trenó voltado de cabeça para baixo, vazio. e umas renas estranhas. «estranhas» porque demasiado coradas e com soluços.
ouviu um gemido. atrás de um arbusto, kiko deparou com o próprio pai natal. estendido no chão, ambas as mãos sobre o ventre, como se tivesse apanhado um tiro. e gemendo, gemendo. que se passa?, perguntou de novo, que se passou?
as renas haviam festejado com excessiva euforia. um copo aqui, um copo ali, risos, mais umas taças e, por fim, bebendo directamente das garrafas - tinham-se embriagado. conclusão: vogando depois pelo espaço com a liberalidade típica dos bêbados, descontrolaram-se e chocaram contra uma árvore durante a aterragem. e ali estava o pai natal, incapaz de se levantar, carpindo as suas mágoas e a de todos os meninos que, esse ano, não teriam presentes.
kiko ofereceu-se imediatamente para ser pai. um papá natal já atrasado, mas ainda cheio de prendas. punha o gorro, uma barba postiça, como os pais natal dos centros comerciais, e ia pelas chaminés. assim foi, de facto. e devo dizer que esse foi o melhor de todos os natais. pelo menos para kiko.
já perceberam que esta pequena história encerra uma lição e uma mensagem natalícia, não é verdade, amiguinhos? sim: se conduzir não beba. (pois, como acrescenta a daisy: porque pode entornar!)
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secção contos em letras minúsculas
sexta-feira, dezembro 24, 2010
UMA CHEGADA PREVISIVELMENTE RUIDOSA
Aceito sugestões que me salvem.
Daisy, minha filha (suponho que instigada por Dudu, seu irmão), propõe-me que espalhe berlindes junto à chaminé: quer que a chegada do Pai Natal, escorregando na berlindada, seja suficientemente barulhenta para que ela acorde e lhe possa dizer: «Pai Natal! És tu!», e o abrace ternamente.
Que faço? Que digo? Que invento?
BOAS FESTAS AOS MEUS QUERIDOS LEITORES: A TODOS OS TRÊS!
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pedidos desesperados de sos aos leitores
quinta-feira, dezembro 23, 2010
O ARTISTA E o artista
Vi-a hoje de manhã; ao longe, não vislumbrava mais do que breves e indistintos traços, que o meu cérebro completou.
E apaixonei-me de uma súbita paixão por essa mulher, em parte criada (ou adivinhada) por mim, a partir de traços semi-vislumbrados. Um passo ágil que, com a cooperação benéfica do vento, lhe entreabria um casaco comprido, cinzento. Uma saia minúscula, que entreaparecia pelo entreaberto do casaco. Um cabelo longo, voador: não apenas esvoaçante.
Reeencontro-a à tarde, no corredor do colégio onde vou buscar a minha filha. É a mesma mulher. Mas não é a mesma mulher, porque a imagem se dissolve em face dos seus olhos esgazeados, os dentes demasiado saídos, o nariz enervantemente arrebitado e a voz com que esganiça contra a sua filha. Caramba. Como eu preferia a minha composição matinal.
Hum. Não digo que não haja Deus.
Só me espanta que, às vezes, eu pareça ser tão melhor artista do que Ele.
E apaixonei-me de uma súbita paixão por essa mulher, em parte criada (ou adivinhada) por mim, a partir de traços semi-vislumbrados. Um passo ágil que, com a cooperação benéfica do vento, lhe entreabria um casaco comprido, cinzento. Uma saia minúscula, que entreaparecia pelo entreaberto do casaco. Um cabelo longo, voador: não apenas esvoaçante.
Reeencontro-a à tarde, no corredor do colégio onde vou buscar a minha filha. É a mesma mulher. Mas não é a mesma mulher, porque a imagem se dissolve em face dos seus olhos esgazeados, os dentes demasiado saídos, o nariz enervantemente arrebitado e a voz com que esganiça contra a sua filha. Caramba. Como eu preferia a minha composição matinal.
Hum. Não digo que não haja Deus.
Só me espanta que, às vezes, eu pareça ser tão melhor artista do que Ele.
SÓ UMA PERGUNTA
Uma pessoa de quem se diz «Estás mesmo divertido», quando a vemos sob o efeito de um certo número de copos, é uma pessoa divertida? Ou será realmente que o álcool lhe empresta talentos que ele não possui?!
segunda-feira, dezembro 20, 2010
COGNOME
Sempre se achou e se disse, na família e na escola, que ele tinha uma grande capacidade. Não se percebe onde lhe pressentiam a «capacidade»: talvez no olhar brilhante a atento, ou numa certa inclinação da cabeça, quando escutava as pessoas; talvez porque fosse fácil amá-lo e o amor é um excelente revelador das capacidades do ser amado. Talvez por causa de algumas frases - tinha frases memoráveis - ou por causa de algumas perguntas - tinha perguntas talentosas. De modo que nunca se discutiu o seu «potencial».
E, contudo, o tempo passava e não havia quaisquer concretizações. Na escola, as classificações eram débeis. O discurso dos professores variava pouco: «Não aproveita as suas capacidades». Suspeito que ele próprio não saberia o que fazer para aproveitá-las. Lá estavam elas, adormecidas, ternas, capazes, como capacidades que eram, mas inconsequentes. Na família também foi não fazendo o que se esperava. Não escreveu, não construiu, não engenhou. Não produziu artigos, nem livros, nem filhos, nem pontes, nem pentes, nem guarda-chuvas, nem plantas, nem filmes, nem ossos, nem danças, nem pinturas, nem bâtons, nem baterias, nem sofás. Nem chuva, nem sol. Era de uma genial, tranquila e ineficiente capacidade.
Hoje, com oitenta e sete anos - fará amanhã, dia 21 de Dezembro, oitenta e oito -, chamam-lhe: «A Promessa».
E, contudo, o tempo passava e não havia quaisquer concretizações. Na escola, as classificações eram débeis. O discurso dos professores variava pouco: «Não aproveita as suas capacidades». Suspeito que ele próprio não saberia o que fazer para aproveitá-las. Lá estavam elas, adormecidas, ternas, capazes, como capacidades que eram, mas inconsequentes. Na família também foi não fazendo o que se esperava. Não escreveu, não construiu, não engenhou. Não produziu artigos, nem livros, nem filhos, nem pontes, nem pentes, nem guarda-chuvas, nem plantas, nem filmes, nem ossos, nem danças, nem pinturas, nem bâtons, nem baterias, nem sofás. Nem chuva, nem sol. Era de uma genial, tranquila e ineficiente capacidade.
Hoje, com oitenta e sete anos - fará amanhã, dia 21 de Dezembro, oitenta e oito -, chamam-lhe: «A Promessa».
domingo, dezembro 19, 2010
O MEU CONTRIBUTO PARA A CIÊNCIA
E se o daltonismo se resumisse a um problema lexical? Não tanto o não distinguir as cores, mas não saber distinguir entre os nomes das cores?
sexta-feira, dezembro 17, 2010
AFORISMOS KAÓSTICOS
Podemos pensar que, ao âmago de certas pessoas demasiado couraçadas, conseguiríamos até chegar (com tempo e desde que elas valessem a pena e o trabalho), dissolvendo-lhes a carapaça, camada após camada. Mas qualquer especialista em limpeza sabe que é um erro pensá-lo: a sujidade entranhada de muitos anos não se arranca de forma alguma.
CONVERSA DE LOCUTORES
LOCUTOR 1: E então, José, quais são as máximas para hoje...?
LOCUTOR 2: As máximas para hoje? Aaaah, olha, por exemplo, «quem tudo quer tudo perde», e...
LOCUTOR 1: Oh, José, pelo amor de Deus. Referia-me à meteorologia. Não tens aí as temperaturas máximas?!
LOCUTOR 2: As máximas para hoje? Aaaah, olha, por exemplo, «quem tudo quer tudo perde», e...
LOCUTOR 1: Oh, José, pelo amor de Deus. Referia-me à meteorologia. Não tens aí as temperaturas máximas?!
quinta-feira, dezembro 16, 2010
A Pensão
A pensão era tramada. Havia um rapaz que me olhava fixamente, à porta, mas não dizia nada, nem sequer quando lhe perguntei se havia quartos vagos. No primeiro dia - e, depois, todos os dias em que ali vivi -, acordou-me às quatro e meia da madrugada, gritando «Um palito para o gorila! Um palito para o gorila! Um palito para o gorila!» [Invejei todos os camponeses que despertam ao canto do galo, enquanto a mim calhava um rapaz de óculos muito graduados, que não me respondia às perguntas, e só percebi que não era mudo porque às quatro da manhã clamava obcecadamente por um certo palito para um determinado gorila...]
A senhora Polina, dona da pensão, também me olhava fixamente. Lambia-se, embora eu não seja fisicamente nada de especial. Talvez fosse um tique. Cheirava a perfume intenso e bebia de um cantil. «Chá», garantia-me, limpando a boca com as costas da mão.
Eu não tinha dinheiro para mais do que aquela pensão. Fugira à família, atrás de uma italiana que me trocou por um alemão. Os disparates que se fazem na vida. A italiana tinha dentes de cavalo, uma voz rouca, exccessiva, que primeiro me fez perder a cabeça (e depois, quando ela insistia em me rouquejar obscenidades, na cama, acabou por me fazer perder qualquer vestígio de excitação...); comia de mais, chamava-me «Berlusconi mio» e arrotava.
Por que deixei tudo por ela? Porque era italiana? Porque me obrigou a acompanhá-la, apontando-me uma pequena pistola à cabeça? Sei lá. Acho graça, em todo o caso, que hoje, quando me queixo, me perguntem, sarcasticamente: «Então, por que diabo foste com ela? Apontou-te alguma pistola à cabeça?»; e pensem que sou tolo, quando respondo: «Olha, por acaso sim.»
Voltemos à pensão. Quando lá cheguei, estava triste e deprimido. Sem dinheiro. Andava com fome e com sono. A senhora dona Polina lambia-se. Fazia crochet, ou seria tricot? Adormecia à lareira, numa cadeira de balanço, ouvindo a história do senhor coronel. Digo bem: «a história», porque era sempre a mesma. E quem me pôs a ideia triste na cabeça foi o Faustino, que vivia na porcaria da pensão. Jogava ao dominó e, enquanto o coronel voltava à mesma eterna história e a velha dormitava, uma noite disse-me: «Essa gaja é podre de rica. Um dia faço um disparate.»
E eu pensei: «Quem faz um disparate sou eu.»
Mas nunca direi ao mundo que disparate quis fazer - e tentei fazer - e quase fiz!
A senhora Polina, dona da pensão, também me olhava fixamente. Lambia-se, embora eu não seja fisicamente nada de especial. Talvez fosse um tique. Cheirava a perfume intenso e bebia de um cantil. «Chá», garantia-me, limpando a boca com as costas da mão.
Eu não tinha dinheiro para mais do que aquela pensão. Fugira à família, atrás de uma italiana que me trocou por um alemão. Os disparates que se fazem na vida. A italiana tinha dentes de cavalo, uma voz rouca, exccessiva, que primeiro me fez perder a cabeça (e depois, quando ela insistia em me rouquejar obscenidades, na cama, acabou por me fazer perder qualquer vestígio de excitação...); comia de mais, chamava-me «Berlusconi mio» e arrotava.
Por que deixei tudo por ela? Porque era italiana? Porque me obrigou a acompanhá-la, apontando-me uma pequena pistola à cabeça? Sei lá. Acho graça, em todo o caso, que hoje, quando me queixo, me perguntem, sarcasticamente: «Então, por que diabo foste com ela? Apontou-te alguma pistola à cabeça?»; e pensem que sou tolo, quando respondo: «Olha, por acaso sim.»
Voltemos à pensão. Quando lá cheguei, estava triste e deprimido. Sem dinheiro. Andava com fome e com sono. A senhora dona Polina lambia-se. Fazia crochet, ou seria tricot? Adormecia à lareira, numa cadeira de balanço, ouvindo a história do senhor coronel. Digo bem: «a história», porque era sempre a mesma. E quem me pôs a ideia triste na cabeça foi o Faustino, que vivia na porcaria da pensão. Jogava ao dominó e, enquanto o coronel voltava à mesma eterna história e a velha dormitava, uma noite disse-me: «Essa gaja é podre de rica. Um dia faço um disparate.»
E eu pensei: «Quem faz um disparate sou eu.»
Mas nunca direi ao mundo que disparate quis fazer - e tentei fazer - e quase fiz!
quarta-feira, dezembro 15, 2010
aforismos kaosticos
Certas verdades só podem ser pronunciadas uma primeira e única vez: quando as repetimos, estão já cheias de pó.
Também algumas paisagens nos mostram a sua verdade só quando as contemplamos pela primeira vez.
Também algumas paisagens nos mostram a sua verdade só quando as contemplamos pela primeira vez.
segunda-feira, dezembro 13, 2010
NÃO LEIAM ISTO SE NÃO QUEREM ENTRAR EM DEPRESSÃO
O túnel do tempo tem a forma de um funil. Um funil que, em dado momento da vida, muda de posição.
Enquanto somos crianças, o nosso passado é ainda estreito e o futuro uma boca larga.
A partir de certa altura, adivinhamos que o funil se inverteu. A boca larga corresponde ao passado - e o futuro estreitou-se.
Antes, tinha saudades do futuro.
Hoje, digamos,
o que era para ser futuro, ou não aconteceu de todo, ou acabou tornando-se passado.
E, portanto, ter saudades do futuro é ter saudades do tempo [já passado] em que ainda tinha muito futuro...
Enquanto somos crianças, o nosso passado é ainda estreito e o futuro uma boca larga.
A partir de certa altura, adivinhamos que o funil se inverteu. A boca larga corresponde ao passado - e o futuro estreitou-se.
Antes, tinha saudades do futuro.
Hoje, digamos,
o que era para ser futuro, ou não aconteceu de todo, ou acabou tornando-se passado.
E, portanto, ter saudades do futuro é ter saudades do tempo [já passado] em que ainda tinha muito futuro...
domingo, dezembro 12, 2010
A CONTENÇÃO
Às vezes, basta uma constatação de muito poucas palavras para se conseguir ser hilariante.
Ontem, no Eixo do Mal, Pedro Mexia limitou-se a chamar a atenção para isto:
«Ouvimos Alberto João Jardim chamar demagogo a Carlos César.»
Não era e não foi preciso acrescentar uma única palavra para fazer a piada ter piada.
Ontem, no Eixo do Mal, Pedro Mexia limitou-se a chamar a atenção para isto:
«Ouvimos Alberto João Jardim chamar demagogo a Carlos César.»
Não era e não foi preciso acrescentar uma única palavra para fazer a piada ter piada.
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delírios políticos,
desorgulhos pátrios
sábado, dezembro 11, 2010
E PASSEMOS A ASSUNTOS MAIS INTERESSANTES, COMO LADY GAGA
Tenho uma opinião sobre a (o?) WikiLeaks (escreva-se como se escrever...).
Em primeiro lugar, julgo que a questão da ameaça à segurança do único país que nos protegeria do eixo do mal e de todos os males, como argumenta Miguel Sousa Tavares, simplesmente se não põe. O «mal» existe, efectivamente, e a preservação do segredo é um aspecto fulcral da diplomacia. Mas o secretismo dos EUA vem sendo sistematicamente posto em causa, e desde há muitos anos, pela opinião pública - mais até do que pela imprensa -, pelo cinema ou pela literatura. Lembrem-se lá de um filme norte-americano dos últimos anos em que os bastidores da Casa Branca, da CIA ou do FBI não tenham sido completamente denegridos. (Com excepção, é claro, dos da Walt Disney).
Que uma fortíssima democracia como a americana resista e sobreviva às suas ameaças internas, aos caricaturistas, aos teorizadores da conspiração, aos objectores de consciência, é um teste que só serve para a fortalecer - mas, sobretudo, para a obrigar a repensar-se e a impor-se limites. Não é arrepiante que os States tenham peritos a «opinar» já não só sobre Israel e Berlusconi, mas sobre Moçambique e Mugabe, a cor das fezes da senhora dona Merkle, as prendas de Natal de Sarkozi? Até que ponto é que tudo pode ser minuciosamente vigiado sem que ninguém saiba, e sem limites nem precalços?
Não creio que Julian Assange (e este, escreve-se assim, ou assado?) seja um herói. Não respeito particularmente a lógica desenfreada da WikiLeaks (escreva-se como se escrever...). Mas que nenhum terrorismo justifica o Big Brother parece-me evidente. Que a fuga de informações é, por vezes, útil e reveladora, parece-me evidente. Que onde há telhados de vidro uma pedrada vem a propósito, parece-me evidente. O resto é paranóia. De Obama, que tem responsabilidades na conduta de uma superpotência. De Miguel Sousa Tavares, que não tem a menor responsabilidade.
Em primeiro lugar, julgo que a questão da ameaça à segurança do único país que nos protegeria do eixo do mal e de todos os males, como argumenta Miguel Sousa Tavares, simplesmente se não põe. O «mal» existe, efectivamente, e a preservação do segredo é um aspecto fulcral da diplomacia. Mas o secretismo dos EUA vem sendo sistematicamente posto em causa, e desde há muitos anos, pela opinião pública - mais até do que pela imprensa -, pelo cinema ou pela literatura. Lembrem-se lá de um filme norte-americano dos últimos anos em que os bastidores da Casa Branca, da CIA ou do FBI não tenham sido completamente denegridos. (Com excepção, é claro, dos da Walt Disney).
Que uma fortíssima democracia como a americana resista e sobreviva às suas ameaças internas, aos caricaturistas, aos teorizadores da conspiração, aos objectores de consciência, é um teste que só serve para a fortalecer - mas, sobretudo, para a obrigar a repensar-se e a impor-se limites. Não é arrepiante que os States tenham peritos a «opinar» já não só sobre Israel e Berlusconi, mas sobre Moçambique e Mugabe, a cor das fezes da senhora dona Merkle, as prendas de Natal de Sarkozi? Até que ponto é que tudo pode ser minuciosamente vigiado sem que ninguém saiba, e sem limites nem precalços?
Não creio que Julian Assange (e este, escreve-se assim, ou assado?) seja um herói. Não respeito particularmente a lógica desenfreada da WikiLeaks (escreva-se como se escrever...). Mas que nenhum terrorismo justifica o Big Brother parece-me evidente. Que a fuga de informações é, por vezes, útil e reveladora, parece-me evidente. Que onde há telhados de vidro uma pedrada vem a propósito, parece-me evidente. O resto é paranóia. De Obama, que tem responsabilidades na conduta de uma superpotência. De Miguel Sousa Tavares, que não tem a menor responsabilidade.
MAS POR QUE SERÁ QUE SÓ EU É QUE PENSO NESTAS COISAS?!
O inqualificável Eanes, desde que deixou de ser Presidente, dedicou-se ao estudo da teoria política. Ele fez mestrados, ele fez doutoramentos. Oiço-o que, na rádio, se pronuncia sobre Camarate. E reparo que continua recorrendo a ditados e expressões idiomáticos portugueses. «Isso é uma faca de dois legumes» ou «águas passadas não moem moínhos» são os meus predilectos.
Posso propor dois ditados que o levem a pensar duas vezes antes de abrir a boca?
«Quem cala, contente»
e
«O silêncio é touro».
Quanto ao acidente/crime de Camarate, eis, graciosamente, a minha opinião: a culpa, como tudo o que é mau neste país, só pode ser do governo.
E não me digam que o actual Primeiro-ministro era, então, demasiado jovem. Nunca ouviram falar de viagens no tempo, não, pobres mentes ingénuas e anti-científicas?
Posso propor dois ditados que o levem a pensar duas vezes antes de abrir a boca?
«Quem cala, contente»
e
«O silêncio é touro».
Quanto ao acidente/crime de Camarate, eis, graciosamente, a minha opinião: a culpa, como tudo o que é mau neste país, só pode ser do governo.
E não me digam que o actual Primeiro-ministro era, então, demasiado jovem. Nunca ouviram falar de viagens no tempo, não, pobres mentes ingénuas e anti-científicas?
quarta-feira, dezembro 08, 2010
QUANDO A EFECTIVAÇÃO ESTRAGA A ESPERA
Aforismava eu, há dias, que, às vezes, esperarmos por alguém que não vem, pode ser bom: porque nos liberta.
Comentava/perguntava Zorbas, o inefável gato, se eu também não reparara que, frequentemente, o grande prazer do reencontro está na antecipação do reencontro.
Curiosamente, na diferença de perspectiva, Zorbas e eu concordamos num ponto:
O encontro propriamente dito tende a ser o que estraga tudo.
Comentava/perguntava Zorbas, o inefável gato, se eu também não reparara que, frequentemente, o grande prazer do reencontro está na antecipação do reencontro.
Curiosamente, na diferença de perspectiva, Zorbas e eu concordamos num ponto:
O encontro propriamente dito tende a ser o que estraga tudo.
CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DA DOCÊNCIA
Historicamente, a origem da figura do professor é a do pedagogo: um escravo culto, que usa o seu saber para o progresso espiritual do jovem amo.
Nesta relação, o poder está inequivocamente do lado do ignorante (e simultaneamente, o mais jovem), que faz do sábio um instrumento da sua evolução.
Esta origem histórica diz tudo acerca do actual estatuto do professor. Diz tudo acerca da visão que dele têm a sociedade, os meninos, os pais dos meninos. Diz tudo acerca do ilimitado poder do Ministério sobre o grupo de escravos cultos que tutela.
Claro que, entretanto, a situação dos actuais professores não é em tudo idêntica à dos antigos pedagogos: alguns professores nem sequer são especialmente cultos.
Nesta relação, o poder está inequivocamente do lado do ignorante (e simultaneamente, o mais jovem), que faz do sábio um instrumento da sua evolução.
Esta origem histórica diz tudo acerca do actual estatuto do professor. Diz tudo acerca da visão que dele têm a sociedade, os meninos, os pais dos meninos. Diz tudo acerca do ilimitado poder do Ministério sobre o grupo de escravos cultos que tutela.
Claro que, entretanto, a situação dos actuais professores não é em tudo idêntica à dos antigos pedagogos: alguns professores nem sequer são especialmente cultos.
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docentes decentes e indecentes
terça-feira, dezembro 07, 2010
FÉ & DÚVIDA
Acredito que exista vida inteligente algures neste cosmo imenso. Que a haja na terra é que é duvidoso.
NA PAINATALOLÂNDIA
DUENDE - Pai Natal! Pai Natal! O mano diz que não são nada os pais dos meninos que lhes dão presentes! Diz que não existem «pais dos meninos». Diz que quem dá os presentes és tu...
PAI NATAL - Existem sim senhor. Não acredites no mano, vá lá. Olha. Já escreveste a tua carta para os papás, com a lista das prendas que tu queres? [Raios! Os mitos e as fantasias são postas em causa por duendes cada vez mais jovens...]
PAI NATAL - Existem sim senhor. Não acredites no mano, vá lá. Olha. Já escreveste a tua carta para os papás, com a lista das prendas que tu queres? [Raios! Os mitos e as fantasias são postas em causa por duendes cada vez mais jovens...]
domingo, dezembro 05, 2010
não farás rir todos, a não ser que não tenhas graça
Humorista:
Podes não te preocupar com o humor político.
Mas ai de ti se não levas em conta a política do humor:
E, relativamente à política do humor, isto deves saber: é que ele não é democrático.Não agrada a todos - o humor faz inimigos. E a linha a partir da qual uma graça não gera inimigos é a linha atravessada a qual o humor abdica de si.
Podes ter inimigos sem ter piada. Mas não podes ter piada sem ter inimigos.
Podes não te preocupar com o humor político.
Mas ai de ti se não levas em conta a política do humor:
E, relativamente à política do humor, isto deves saber: é que ele não é democrático.Não agrada a todos - o humor faz inimigos. E a linha a partir da qual uma graça não gera inimigos é a linha atravessada a qual o humor abdica de si.
Podes ter inimigos sem ter piada. Mas não podes ter piada sem ter inimigos.
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sábado, dezembro 04, 2010
O SOL
SERÁ QUE ELA QUE PENSA O PAI NATAL É SURDO?
Daisy vem, em segredo, dizer-me que o Pai Natal ouve tudo o que dizemos e que, se dizemos disparates, ele se vinga. (Foi o irmão, suponho, que lhe deu que pensar...).
Pergunta-me, sempre em segredo, se o Pai Natal consegue ouvir, mesmo que ela me segrede.
Respondo-lhe que depende do tom. Deve haver uma certa qualidade de bichanar que nem mesmo o Pai Natal consegue ouvir.
Proponho-lhe que ensaiemos. Daisy tenta, cada vez mais baixo.
Chegamos à conclusão de que, infelizmente, o tipo de segredo que a Daisy me diz e o Pai Natal já não ouve, é aquele que eu próprio também já não oiço.
Pergunta-me, sempre em segredo, se o Pai Natal consegue ouvir, mesmo que ela me segrede.
Respondo-lhe que depende do tom. Deve haver uma certa qualidade de bichanar que nem mesmo o Pai Natal consegue ouvir.
Proponho-lhe que ensaiemos. Daisy tenta, cada vez mais baixo.
Chegamos à conclusão de que, infelizmente, o tipo de segredo que a Daisy me diz e o Pai Natal já não ouve, é aquele que eu próprio também já não oiço.
!
Posso compreender que se não aprecie particularmente o ponto de exclamação. É um sinal magro e arrogante, demasiado óbvio e quase ofensivo nessa sua ausência de subtileza. Que prescindam dele, muito bem. Formem um movimento literário pós-moderno que faça da ausência do ponto de exclamação o seu efeito forte: muito bem. Até aí chego eu! Agora, que se alimente um movimento para excluí-lo do mercado, discriminando os que o empregam, troçando e proscrevendo a sua aparição, isso tem duas leituras: ou é ironia ou é tontice!!!
Preferia que fosse ironia. (Gosto muito da ironia). Mas vai-me parecendo que é tontice!!! Às vezes, chegando-me de pessoas inteligentes, que admiro e cujos blogues sigo.
E se for tontice!!!, caramba, que grande tontice!!!
Preferia que fosse ironia. (Gosto muito da ironia). Mas vai-me parecendo que é tontice!!! Às vezes, chegando-me de pessoas inteligentes, que admiro e cujos blogues sigo.
E se for tontice!!!, caramba, que grande tontice!!!
quarta-feira, dezembro 01, 2010
VERDADE vs. IRONIA
A ciência é crédula; e dogmática, claro, mesmo quando quer passar por anti-dogmática: confia excessivamente em que o nome mais adequado para a sua representação da realidade é: «verdade».
A filosofia, pelo contrário, sendo impossível, contém, como parte integrante de si, a consciência da sua impossibilidade. O que a move não tem por nome «verdade». Mas ironia.
A filosofia, pelo contrário, sendo impossível, contém, como parte integrante de si, a consciência da sua impossibilidade. O que a move não tem por nome «verdade». Mas ironia.
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A PIOR SITUAÇÃO NEM SEMPRE É A QUE PARECE
Estou sobre o infinito precipício.
Agarro-me a uma ervinha. Sinto que esta se rasga. Rrrrrr!
Não é que não tente voltar ao cimo firme, eu tento, eu tento. Mas não consigo.
E sabem que mais? Se não voltar, então que caia de vez. (Preferencialmente, depressa!)
Aqui, ridiculamente agarrado a uma ervinha, isso é que não.
É que o ridículo também mata. Mais lentamente.
Agarro-me a uma ervinha. Sinto que esta se rasga. Rrrrrr!
Não é que não tente voltar ao cimo firme, eu tento, eu tento. Mas não consigo.
E sabem que mais? Se não voltar, então que caia de vez. (Preferencialmente, depressa!)
Aqui, ridiculamente agarrado a uma ervinha, isso é que não.
É que o ridículo também mata. Mais lentamente.
terça-feira, novembro 30, 2010
CINISMOS SINCEROS
Quando estamos à espera de alguém e alguém não vem, às vezes não é tão mau como isso: que bem nos sabe a frescura da súbita, inesperada solidão da liberdade.
segunda-feira, novembro 29, 2010
AFORISMOS KAÓSTICOS
Não se diga que não há felicidade. O único problema é que esta reside unicamente no passado ou no futuro: não sei porquê, mas salta sempre sobre o presente.
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INKÉRITO-CÉPTICO
Será que nenhum dos «cientistas» que produzem inquéritos e sobre eles trabalham se apercebeu - através do simples recurso à sua experiência pessoal - de que nuncanuncanunca se responde a um inquérito com sinceridade?
Mesmo num inquérito anónimo - a não ser que fôssemos anónimos para a nossa própria consciência, o que não sucede - tendemos a mentir a nós mesmos.
Hoje, respondi a um inquérito; cinco minutos mais tarde, olhei para as respostas e percebi que, se voltasse a fazê-lo, responderia a quase todas diferentemente.
E será que nenhum fabricante de inquéritos distingue entre juízos de facto e juízos de valor? Será que não têm mesmo noção de que as suas perguntas pressupõem «ideias feitas», preconceitos, valores pré-definidos?
Mesmo num inquérito anónimo - a não ser que fôssemos anónimos para a nossa própria consciência, o que não sucede - tendemos a mentir a nós mesmos.
Hoje, respondi a um inquérito; cinco minutos mais tarde, olhei para as respostas e percebi que, se voltasse a fazê-lo, responderia a quase todas diferentemente.
E será que nenhum fabricante de inquéritos distingue entre juízos de facto e juízos de valor? Será que não têm mesmo noção de que as suas perguntas pressupõem «ideias feitas», preconceitos, valores pré-definidos?
domingo, novembro 28, 2010
AFORISMOS KAÓSTICOS
O desapontamento é, por si só, a prova de que alguns erros são muito mais intreressantes do que a realidade.
Ilustro esta afirmação: fiquei triste no dia em que descobri que um certo jogador do Benfica se chamava Saviola (como confirmei lendo o seu nome, impresso) e não Sá Viola (como sempre tinha ouvido...)
Ilustro esta afirmação: fiquei triste no dia em que descobri que um certo jogador do Benfica se chamava Saviola (como confirmei lendo o seu nome, impresso) e não Sá Viola (como sempre tinha ouvido...)
AFORISMOS KAÓSTICOS: SINAIS
Só posso indignar-me, num país em que as pessoas ousam ostentar tantos sinais exteriores de pobreza!
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FREUD ATACA DE NOVO
- O que eu vejo aqui, senhor doutor, é um extraordinário par de mamas!
- Meu caro, tenho de ser sincero. Não devia pôr as coisas assim, mas na fotografia do chapéu de Napoleão o senhor descobriu um pénis, na foto da floresta amazónica descobriu um púbis, nas dunas de uma praia descobre mamas. Estou farto desta sessão! Aliás, isto não é uma sessão, é uma obsessão. A sua obsessão sexual é impressionante!
- Logo vi! «Obsessão sexual»? Bem me tinham dito que os psicanalistas vêem sexo em tudo!
PS: Já agora, antes que desatem a criticar-me a falta de rigor: confesso que a amplitude da liberdade criativa é, aqui, imensa. Bem sei que os psicanalistas não costumam pedir que se interpretem fotografias. Mas, caramba, se a um apetecesse fazê-lo, hein? Não podia, não?!
- Meu caro, tenho de ser sincero. Não devia pôr as coisas assim, mas na fotografia do chapéu de Napoleão o senhor descobriu um pénis, na foto da floresta amazónica descobriu um púbis, nas dunas de uma praia descobre mamas. Estou farto desta sessão! Aliás, isto não é uma sessão, é uma obsessão. A sua obsessão sexual é impressionante!
- Logo vi! «Obsessão sexual»? Bem me tinham dito que os psicanalistas vêem sexo em tudo!
PS: Já agora, antes que desatem a criticar-me a falta de rigor: confesso que a amplitude da liberdade criativa é, aqui, imensa. Bem sei que os psicanalistas não costumam pedir que se interpretem fotografias. Mas, caramba, se a um apetecesse fazê-lo, hein? Não podia, não?!
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A MOSCA E SEU DUPLO
Vejo, pousada num espelho vertical, uma mosca preocupada na sua higiene.
Está mesmo por baixo de um móbil, que também se encontra reflectido no espelho.
Por um efeito curioso, abstraindo da realidade e focando unicamente a imagem especular, dir-se-ia que a mosca suporta aquele estranho objecto.
É mais fácil optar pela convicção de que se trata de uma ilusão de óptica.
A outra possibilidade seria admitir que, do outro lado do espelho, as moscas têm uma força assustadora. (E, carregando uma coisa daquelas, alguma invasão andam a preparar...)
Está mesmo por baixo de um móbil, que também se encontra reflectido no espelho.
Por um efeito curioso, abstraindo da realidade e focando unicamente a imagem especular, dir-se-ia que a mosca suporta aquele estranho objecto.
É mais fácil optar pela convicção de que se trata de uma ilusão de óptica.
A outra possibilidade seria admitir que, do outro lado do espelho, as moscas têm uma força assustadora. (E, carregando uma coisa daquelas, alguma invasão andam a preparar...)
aforismos kaosticos
Por alguma razão - ou então não, talvez seja um facto sem qualquer razão -, a maioria dos amigos coloridos que conheço são amigos cinzentos.
Mais do que «amigos coloridos», o que fazia mesmo falta ao país não era um presidente colorido, um primeiro-ministro colorido e uma oposição colorida?
Uma crise colorida? Um país colorido?
Mais do que «amigos coloridos», o que fazia mesmo falta ao país não era um presidente colorido, um primeiro-ministro colorido e uma oposição colorida?
Uma crise colorida? Um país colorido?
quarta-feira, novembro 24, 2010
TRANSFERÊNCIAS
É arrepiante pensar que, quando procedo a uma transferência bancária, durante um certo lapso de tempo, aquele dinheiro, que já não está na minha conta, mas ainda não chegou à conta destinatária, tem uma existência meramente virtual. E que significa isso? Está no espaço? Nas ondas do éter?
E não é verdade que um gang de vírus poderia interceptá-lo?
E não é verdade que um gang de vírus poderia interceptá-lo?
segunda-feira, novembro 22, 2010
A TRISTE HISTÓRIA - ABSOLUTAMENTE VERÍDICA - DE UM ESCRITOR IMPUBLICADO
Em 2005, Virgílio Caeiro, não tendo conseguido suicidar-se, decidiu não largar mão de todas as possibilidades contidas na ideia do suicídio.
Resolveu, por isso, encenar a sua auto-morte. Pensou, por um lado, que poderia assim ver, de longe, quem é que, afinal, o amava e quem o não amava. Quem o choraria muito, o choraria pouco, o choraria assim assim. E quem não verteria uma única e solitária lágrima. Por outro lado, considerou que, na qualidade trágica de homem que pusera termo à vida - mesmo não tendo posto efectivamente termo à vida -, conseguiria publicar finalmente a sua obra. Ele, que sempre fora desprezado pelas editoras. Que fora cuspido pela sra. dona Zita Seabra, quando lhe quis apresentar o seu manuscrito. Empurrado pelo chefe da Teorema, aquele de óculos e bigode, quando tentou propor-lhe o seu original. Ora bem: depois de morto, sob a aura de um suicídio, atrairia como moscas todos os publicadores. Talvez até espanhóis. E holandeses.
Encenou, portanto, o dito suicídio.
Mas como se faz isso? Tentou experiências, ensaios, desenhos; contratou actores.
Mas.
Enganou-se na faca. Tinha de realizar a performance diante de uma máquina que filmava tudo: ia ser lindo! um hara-kiri, esteticamente perfeito! Só que em vez de usar a faca falsa, utilizou uma, de cozinha, com o imperdoável defeito de ser autêntica.
Aflito, desesperado, experimentando levantar-se e urrar por socorro, amparou-se à mesa de trabalho, derrubou-a, e deixou cair na lareira todos os seus manuscritos - os quais reunira sobre a secretária, para que os descobrissem quando dessem com o seu corpo (que, obviamente, no seu projecto inicial, não deveria ser realmente o seu corpo, mas um boneco que os actores contratados, mascarados de bombeiros, rapidamente fariam desaparecer...). E os textos que cairam na lareira acabaram por arder. Deram, de resto, um bonito lume, não se pode dizer o contrário.
Quando os «bombeiros» chegaram, como combinado, ficaram um pouco surpreendidos. Em vez de um corpo de boneco, encontraram um corpo de boneco e um cadáver real.
Em vez de manuscritos que deveriam salvar e enviar às editoras, acompanhadas de uma folhinha com as últimas palavras do morto, encontraram cinzas. E um belo fogo, isso, realmente, não se pode negar.
Foram-se embora, cabisbaixos. Ninguém lhes pagou.
Em suma, um suicídio nem sempre tem os resultados esperados. Às vezes, um gajo morre mesmo.
Resolveu, por isso, encenar a sua auto-morte. Pensou, por um lado, que poderia assim ver, de longe, quem é que, afinal, o amava e quem o não amava. Quem o choraria muito, o choraria pouco, o choraria assim assim. E quem não verteria uma única e solitária lágrima. Por outro lado, considerou que, na qualidade trágica de homem que pusera termo à vida - mesmo não tendo posto efectivamente termo à vida -, conseguiria publicar finalmente a sua obra. Ele, que sempre fora desprezado pelas editoras. Que fora cuspido pela sra. dona Zita Seabra, quando lhe quis apresentar o seu manuscrito. Empurrado pelo chefe da Teorema, aquele de óculos e bigode, quando tentou propor-lhe o seu original. Ora bem: depois de morto, sob a aura de um suicídio, atrairia como moscas todos os publicadores. Talvez até espanhóis. E holandeses.
Encenou, portanto, o dito suicídio.
Mas como se faz isso? Tentou experiências, ensaios, desenhos; contratou actores.
Mas.
Enganou-se na faca. Tinha de realizar a performance diante de uma máquina que filmava tudo: ia ser lindo! um hara-kiri, esteticamente perfeito! Só que em vez de usar a faca falsa, utilizou uma, de cozinha, com o imperdoável defeito de ser autêntica.
Aflito, desesperado, experimentando levantar-se e urrar por socorro, amparou-se à mesa de trabalho, derrubou-a, e deixou cair na lareira todos os seus manuscritos - os quais reunira sobre a secretária, para que os descobrissem quando dessem com o seu corpo (que, obviamente, no seu projecto inicial, não deveria ser realmente o seu corpo, mas um boneco que os actores contratados, mascarados de bombeiros, rapidamente fariam desaparecer...). E os textos que cairam na lareira acabaram por arder. Deram, de resto, um bonito lume, não se pode dizer o contrário.
Quando os «bombeiros» chegaram, como combinado, ficaram um pouco surpreendidos. Em vez de um corpo de boneco, encontraram um corpo de boneco e um cadáver real.
Em vez de manuscritos que deveriam salvar e enviar às editoras, acompanhadas de uma folhinha com as últimas palavras do morto, encontraram cinzas. E um belo fogo, isso, realmente, não se pode negar.
Foram-se embora, cabisbaixos. Ninguém lhes pagou.
Em suma, um suicídio nem sempre tem os resultados esperados. Às vezes, um gajo morre mesmo.
aforismos
Escrever e, em Portugal, não ter recebido um prémio qualquer, tem de significar qualquer coisa. Possivelmente, que se é muito mau. Provavelmente, que se é demasiado bom.
Não quero com isto dizer que seja o meu caso. Embora, por mera coincidência, seja o meu caso.
E não que isso me preocupe necessariamente.
Preocupa-me desnecessariamente.
Não quero com isto dizer que seja o meu caso. Embora, por mera coincidência, seja o meu caso.
E não que isso me preocupe necessariamente.
Preocupa-me desnecessariamente.
sexta-feira, novembro 19, 2010
OBAMA E CAVACO
Eis a Nato.
Podem tudo. Fecham estradas e fronteiras, brindam com tolerância de ponto a capital de um país em crise.
Vejo, na TV, dois presidentes: Cavaco discursa, Obama ouve-o, com um sorriso suspeito, pela tradução de uns minúsculos fones nos seus ouvidos. Vejo estes dois homens e não posso deixar de me sentir envergonhado pelo país que temos para apresentar e, sobretudo, pelo Presidente que temos para apresentar.
Podia ser pior. Imaginem que estávamos a viver em monarquia. Imaginem que o símbolo humano da pátria era... o rei Dom Duarte!
Mas não me consola. Duvido que Obama esteja a ouvir Cavaco, seria demasiado deprimente. Penso que aquilo é um i-pod; penso que, enquanto o esqueleto vomita banalidades, que eu seria capaz de reproduzir por adivinhação, sem ter ouvido o seu discurso, o Presidente dos EUA se entretém escutando música nas suas orelhas.
Podem tudo. Fecham estradas e fronteiras, brindam com tolerância de ponto a capital de um país em crise.
Vejo, na TV, dois presidentes: Cavaco discursa, Obama ouve-o, com um sorriso suspeito, pela tradução de uns minúsculos fones nos seus ouvidos. Vejo estes dois homens e não posso deixar de me sentir envergonhado pelo país que temos para apresentar e, sobretudo, pelo Presidente que temos para apresentar.
Podia ser pior. Imaginem que estávamos a viver em monarquia. Imaginem que o símbolo humano da pátria era... o rei Dom Duarte!
Mas não me consola. Duvido que Obama esteja a ouvir Cavaco, seria demasiado deprimente. Penso que aquilo é um i-pod; penso que, enquanto o esqueleto vomita banalidades, que eu seria capaz de reproduzir por adivinhação, sem ter ouvido o seu discurso, o Presidente dos EUA se entretém escutando música nas suas orelhas.
sexta-feira, novembro 05, 2010
terça-feira, outubro 26, 2010
57 RAZÕES PARA PROVAR A VIDA COMO UM GOURMET
Nasci em 1957.
Dei por mim, nestes dias em que parece que uma maré de azar se abateu sobre o meu mundo, a perguntar se encontraria 57 razões para estar vivo: 57 bons motivos para que, mesmo desesperada, a vida contivesse ainda, em si, o estímulo de um brilhante projecto.
Eis o que achei:
1. As sextas-feiras: dia em que me perco do mundo: e o mundo me perde de vista: e ninguém sabe de mim;
2. pegar, uma noite, num dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido (qualquer um, menos o II, que emprestei) e sentar-me, sob a luz pálida do candeeiro, folheando e ouvindo o ruído das páginas rijas a passar, enquanto me espreguiço nas palavras de Marcel, que me levam minuciosamente com elas; ler: uma frase, um parágrafo, um capítulo...
3. sair muito cedo de casa, conduzindo pela marginal a uma hora em que não há demasiados carros;
4. os olhos sobrevoando o Tejo, nessa hora em que o sol ainda é só um clarão a lutar;
5. a música que vou ouvindo, concretamente. Sobretudo agora, que descobri a rádio radar;
6. escrever um romance: sentar-me, cheio de ideias, diante do computador, e principiar a desenhá-las sob a forma de caracteres (neste momento não escrevo romance algum, mas hei-de fazê-lo de novo, em breve...);
7. certas aulas: não seguramente todas, mas algumas, muito especiais, em que me sinto voar diante dos olhares estupefactos dos meus alunos;
8. ter amigos: saber que os meus amigos são meus amigos, mesmo se os descuro;
9. o clube de cinema - mais ao princípio, um pouco menos agora, mas ainda;
10. o riso: em qualquer momento do dia ou da vida, o riso. Com um livro (raramente), num filme (raramente, porque já quase não posso ir ao cinema), com amigos (muitas vezes);
11. um copo de uísque, cheio de pedras de gelo; café forte, pela manhã (abatanado);
12. as variações em torno de Bach, por Glenn Gould;
13. Pink Floyd (há quanto tempo os não revisito?)
14. Lou Reed (Walking in the Dark Side);
15. ter blogues; escrever em blogues; descobrir que há quem me leia; multiplicar-me em heterónimos, em pseudónimos, em personagens;
16. conseguir estar absolutamente sozinho em casa;
17. sentir ainda tanto prazer na banda desenhada;
18. fazer uma banda desenhada a meias com o meu filho; juntarmos ideias, compormos os desenhos entre os dois;
19. saber que, quando me não zango com o meu filho, sou uma das poucas pessoas - se não a única - com o poder de o fazer torcer-se literalmente pelo chão, de tanto rir;
20. um abraço da minha filha; um beijo da minha filha; ouvi-la dizer, pronunciando mal: «Pai, ámo-te!»;
21. festas: bebida a correr, gargalhadas a correr, aquela euforia dos grupos em que ninguém se lembra de que, no dia seguinte, provavelmente, voltará ao serviço;
22. trabalhar numa profissão de que, por muito que me cilindrem, gosto muito: alunos que aprecio e me apreciam, colegas que aprecio e me apreciam, uma chefia com que me dou bem, bom ambiente, liberdade;
23. descobrir um livro que me interessa, numa livraria; pensar: «É caro!»; e, logo a seguir: «Que s'a lixe!»; pedir que mo embrulhem, como se fosse para oferecer, e sair rapidamente dali, com o embrulho debaixo do braço e uma agradável sensação de culpa;
24. acreditar que ainda não está tudo terminado para mim; que ainda tenho duas ou três, talvez quatro coisas fundamentais para fazer na vida;
25. saber que vou reencontrar-me com o meu primo: cá, ou lá longe, como ainda há pouco aconteceu. Recordarmos tudo, de fio a pavio, e rirmo-nos sempre por alguma coisa;
26. sonhar com viagens. Arrepender-me de não ter feito nada para as realizar. Estar certo de que, em breve, realizarei alguma;
27. não conhecer, precisamente, dois países que terei de conhecer, aqui mesmo ao lado: Itália, Grécia;
28. Paris. Saber que me espera. Que regressarei;
29. Nova Iorque: saber que estive lá, ainda que provavelmente não torne a ir tão longe;
30. gostar de escrever. Gostar do que escrevo (em geral). Gostar de escrever como escrevo;
31. ver a minha mãe melhorar, vagarosamente, no Hospital; beijá-la e tocar-lhe como já me não lembrava de fazer há muito;
32. trazer o meu irmão para almoçar em minha casa; sentir esta estranheza: Eu tenho um irmão!
33. olhar as horas no meu relógio com o rosto de Corto Maltese no mostrador e seu corpo ao longo da pulseira;
34. comprar t-shirts que as pessoas se espantam que eu seja capaz de usar: Incrível Hulk, Homem de Ferro, Homem-Aranha, Surfista Prateado;
35. lançar um fanzine com a minha amiga Ana Cristina: tanto, tanto, tanto trabalho para conseguir fazer sair dois magros números por ano: e tanto, tanto, tanto gozo;
36. concretamente, a história do Dancake, que me dá tanto prazer criar a meias com a Ana;
37. rever What's Eating Gilbert Grape?, de que nunca me fartarei;
38. as crónicas do Ricardo Araújo Pereira na Visão;
39. a rubrica do Nuno Markl, na Comercial;
40. O Chato, personagem incontornável de Os Contemporâneos;
41. Law and Order, na TV;
42. Lolita: tanto o livro de Nabokov, como o filme de Stanley Kubrick;
43. The Party, com o impagável/inapagável Peter Sellers;
44. aguardar o inverno com alguma ansiedade, por me permitir tornar a envergar o meu lindíssimo e estiloso sobretudo pêlo de camelo;
45. a filosofia: saber que tenho os livros de Pascal, Montaigne, Kierkegaard ou Nietzsche: lê-los por prazer, discutir com eles, regressar-lhes continuamente, nunca por razões de estudo ou dever de ofício;
46. ser ateu; ser amigo de (muitos) crentes (muito), poder admirar esteticamente a sua crença, mas não me sentir tentado: acreditar na liberdade que isso me confere;
47. ter nascido em Moçambique; ter a minha memória carregada de imagens e de sons. (Não de cheiros. Tenho pouca ou nula lembrança de cheiros: por que será?)
48. Mondigliani. Ter principiado por embirrar com ele, e acabar conquistado e rendido ao seu traço peculiar, deliciosamente imperfeito;
49. Velasquez: perder-me nas labirínticas e inesperadas inversões da sua pintura que o auto-retrata a si próprio no acto de retratar;
50. um livro de Umberto Eco, que me foi carinhosamente oferecido num Natal, e a cujas impressionantes imagens retorno: História do Feio;
51. já falei da banda desenhada, mas referia-me à banda desenhada em geral. Agora, em particular: os álbuns de Tintim: por tudo, absolutamente; principalmente As Jóias de Castafiore;
52. pequenos-almoços em grupo: coscuvilhice, pequena política, humor;
53. óculos de sol: ainda não tenho os Ray-Ban derradeiros, os que contentarão definitivamente e porão termo a todas as buscas: mas, é claro, eles hão-de chegar;
54. ainda haver este calibre e esta intensidade de amor num homem de 53 anos;
55. revistas e jornais estrangeiros;
56. uma t-shirt com um vampiro estampado: brilha no escuro e foi-me oferecido por um grupo de amigas, no meu aniversário;
57. ter, na carteira, um cartão-brinde que me permitirá gastar uma certa quantia (que, por enquanto, desconheço), em roupa, no Corte Ingles; ter sido oferecido por um outro grupo de amigas, no meu aniversário;
e uma, suplementar: sinceramente, sinceramente: ter cinquenta e sete boas razões para me sentir de bem com a vida. Às vezes, infelizmente, não sinto. Pois que esta lista me ajude a perceber por que vale a pena viver.
A quem me seguiu até aqui, numa lista tão pessoal e, por vezes, tão pueril, obrigado pela paciência.
Boa noite.
Dei por mim, nestes dias em que parece que uma maré de azar se abateu sobre o meu mundo, a perguntar se encontraria 57 razões para estar vivo: 57 bons motivos para que, mesmo desesperada, a vida contivesse ainda, em si, o estímulo de um brilhante projecto.
Eis o que achei:
1. As sextas-feiras: dia em que me perco do mundo: e o mundo me perde de vista: e ninguém sabe de mim;
2. pegar, uma noite, num dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido (qualquer um, menos o II, que emprestei) e sentar-me, sob a luz pálida do candeeiro, folheando e ouvindo o ruído das páginas rijas a passar, enquanto me espreguiço nas palavras de Marcel, que me levam minuciosamente com elas; ler: uma frase, um parágrafo, um capítulo...
3. sair muito cedo de casa, conduzindo pela marginal a uma hora em que não há demasiados carros;
4. os olhos sobrevoando o Tejo, nessa hora em que o sol ainda é só um clarão a lutar;
5. a música que vou ouvindo, concretamente. Sobretudo agora, que descobri a rádio radar;
6. escrever um romance: sentar-me, cheio de ideias, diante do computador, e principiar a desenhá-las sob a forma de caracteres (neste momento não escrevo romance algum, mas hei-de fazê-lo de novo, em breve...);
7. certas aulas: não seguramente todas, mas algumas, muito especiais, em que me sinto voar diante dos olhares estupefactos dos meus alunos;
8. ter amigos: saber que os meus amigos são meus amigos, mesmo se os descuro;
9. o clube de cinema - mais ao princípio, um pouco menos agora, mas ainda;
10. o riso: em qualquer momento do dia ou da vida, o riso. Com um livro (raramente), num filme (raramente, porque já quase não posso ir ao cinema), com amigos (muitas vezes);
11. um copo de uísque, cheio de pedras de gelo; café forte, pela manhã (abatanado);
12. as variações em torno de Bach, por Glenn Gould;
13. Pink Floyd (há quanto tempo os não revisito?)
14. Lou Reed (Walking in the Dark Side);
15. ter blogues; escrever em blogues; descobrir que há quem me leia; multiplicar-me em heterónimos, em pseudónimos, em personagens;
16. conseguir estar absolutamente sozinho em casa;
17. sentir ainda tanto prazer na banda desenhada;
18. fazer uma banda desenhada a meias com o meu filho; juntarmos ideias, compormos os desenhos entre os dois;
19. saber que, quando me não zango com o meu filho, sou uma das poucas pessoas - se não a única - com o poder de o fazer torcer-se literalmente pelo chão, de tanto rir;
20. um abraço da minha filha; um beijo da minha filha; ouvi-la dizer, pronunciando mal: «Pai, ámo-te!»;
21. festas: bebida a correr, gargalhadas a correr, aquela euforia dos grupos em que ninguém se lembra de que, no dia seguinte, provavelmente, voltará ao serviço;
22. trabalhar numa profissão de que, por muito que me cilindrem, gosto muito: alunos que aprecio e me apreciam, colegas que aprecio e me apreciam, uma chefia com que me dou bem, bom ambiente, liberdade;
23. descobrir um livro que me interessa, numa livraria; pensar: «É caro!»; e, logo a seguir: «Que s'a lixe!»; pedir que mo embrulhem, como se fosse para oferecer, e sair rapidamente dali, com o embrulho debaixo do braço e uma agradável sensação de culpa;
24. acreditar que ainda não está tudo terminado para mim; que ainda tenho duas ou três, talvez quatro coisas fundamentais para fazer na vida;
25. saber que vou reencontrar-me com o meu primo: cá, ou lá longe, como ainda há pouco aconteceu. Recordarmos tudo, de fio a pavio, e rirmo-nos sempre por alguma coisa;
26. sonhar com viagens. Arrepender-me de não ter feito nada para as realizar. Estar certo de que, em breve, realizarei alguma;
27. não conhecer, precisamente, dois países que terei de conhecer, aqui mesmo ao lado: Itália, Grécia;
28. Paris. Saber que me espera. Que regressarei;
29. Nova Iorque: saber que estive lá, ainda que provavelmente não torne a ir tão longe;
30. gostar de escrever. Gostar do que escrevo (em geral). Gostar de escrever como escrevo;
31. ver a minha mãe melhorar, vagarosamente, no Hospital; beijá-la e tocar-lhe como já me não lembrava de fazer há muito;
32. trazer o meu irmão para almoçar em minha casa; sentir esta estranheza: Eu tenho um irmão!
33. olhar as horas no meu relógio com o rosto de Corto Maltese no mostrador e seu corpo ao longo da pulseira;
34. comprar t-shirts que as pessoas se espantam que eu seja capaz de usar: Incrível Hulk, Homem de Ferro, Homem-Aranha, Surfista Prateado;
35. lançar um fanzine com a minha amiga Ana Cristina: tanto, tanto, tanto trabalho para conseguir fazer sair dois magros números por ano: e tanto, tanto, tanto gozo;
36. concretamente, a história do Dancake, que me dá tanto prazer criar a meias com a Ana;
37. rever What's Eating Gilbert Grape?, de que nunca me fartarei;
38. as crónicas do Ricardo Araújo Pereira na Visão;
39. a rubrica do Nuno Markl, na Comercial;
40. O Chato, personagem incontornável de Os Contemporâneos;
41. Law and Order, na TV;
42. Lolita: tanto o livro de Nabokov, como o filme de Stanley Kubrick;
43. The Party, com o impagável/inapagável Peter Sellers;
44. aguardar o inverno com alguma ansiedade, por me permitir tornar a envergar o meu lindíssimo e estiloso sobretudo pêlo de camelo;
45. a filosofia: saber que tenho os livros de Pascal, Montaigne, Kierkegaard ou Nietzsche: lê-los por prazer, discutir com eles, regressar-lhes continuamente, nunca por razões de estudo ou dever de ofício;
46. ser ateu; ser amigo de (muitos) crentes (muito), poder admirar esteticamente a sua crença, mas não me sentir tentado: acreditar na liberdade que isso me confere;
47. ter nascido em Moçambique; ter a minha memória carregada de imagens e de sons. (Não de cheiros. Tenho pouca ou nula lembrança de cheiros: por que será?)
48. Mondigliani. Ter principiado por embirrar com ele, e acabar conquistado e rendido ao seu traço peculiar, deliciosamente imperfeito;
49. Velasquez: perder-me nas labirínticas e inesperadas inversões da sua pintura que o auto-retrata a si próprio no acto de retratar;
50. um livro de Umberto Eco, que me foi carinhosamente oferecido num Natal, e a cujas impressionantes imagens retorno: História do Feio;
51. já falei da banda desenhada, mas referia-me à banda desenhada em geral. Agora, em particular: os álbuns de Tintim: por tudo, absolutamente; principalmente As Jóias de Castafiore;
52. pequenos-almoços em grupo: coscuvilhice, pequena política, humor;
53. óculos de sol: ainda não tenho os Ray-Ban derradeiros, os que contentarão definitivamente e porão termo a todas as buscas: mas, é claro, eles hão-de chegar;
54. ainda haver este calibre e esta intensidade de amor num homem de 53 anos;
55. revistas e jornais estrangeiros;
56. uma t-shirt com um vampiro estampado: brilha no escuro e foi-me oferecido por um grupo de amigas, no meu aniversário;
57. ter, na carteira, um cartão-brinde que me permitirá gastar uma certa quantia (que, por enquanto, desconheço), em roupa, no Corte Ingles; ter sido oferecido por um outro grupo de amigas, no meu aniversário;
e uma, suplementar: sinceramente, sinceramente: ter cinquenta e sete boas razões para me sentir de bem com a vida. Às vezes, infelizmente, não sinto. Pois que esta lista me ajude a perceber por que vale a pena viver.
A quem me seguiu até aqui, numa lista tão pessoal e, por vezes, tão pueril, obrigado pela paciência.
Boa noite.
sábado, outubro 23, 2010
RUPTURA E REENCONTRO DE UM BMW E DE UM MERCEDES
No texto anterior, precipitei-me. Sim, sim, sim, não digam que não, sei perfeitamente que o fiz. Descaí-me, bolas! Insinuei que o Mendes e o Baptista tiveram uma zanga tremenda! Vocês lembram-se do Mendes e do Baptista, não se lembram? E agora, tenho de falar acerca da zanga. Recebi comentários, não, mentira, comentários não. Já viram que tenho até publicado, em alguns posts, os dois comentários que, por engano, me enviam em duplicado, para parecer que me comentam muito. Ora esta última história foi totalmente incomentada. Mas recebi, sei cá, aerogramas, mails, telefonemas, gente a perguntar-me pelo Mendes e pelo Baptista.
Ora, a bem dizer, a «razão» da zanga, o pomo da discórdia, o busílis da questão, passou-me. E eles próprios também já deviam ter-se esquecido. O que ficara fora o sentimento de afronta, a rotina da ofensa, o gesto, a mímica, o desencontro. Nunca mais estiveram juntos no mesmo espaço. E nunca mais os seus carros ficaram estacionados na mesma zona - porque, como eles continuaram a frequentar, até por dever de ofício, os mesmos lugares, quando um deles chegava, partia o outro: e, portanto, aparecia um dos carros, por exemplo o BMW vermelho do Mendes, zarpava o outro em menos de três segundos, digamos: o Mercedes azulão do Baptista.
Um dia, porém, ia eu entrar na Casa do Povo, quando vejo, lado a lado, como namorados carinhosos, o BMW e o Mercedes. Fiquei varado. Num primeiro instante, confesso, quase me senti desapontado: como se um dos fundamentos do movimento do universo tivesse sido quebrado. Aquela zanga fazia parte do nosso mundo. Alguém conseguiria passar sem ela? Sem tê-la como clara, certa, estável?! Nunca mais um carro a chegar e o outro a partir? Depois, lentamente, uma semente de optimismo principiou a percutir-me o peito. E pensei: Tomar um copo, um dia, com os dois juntos: inesperado mas interessante, um impossível que poderia, contudo, vir a realizar-se...
Aos primeiros passos dados, reparei de imediato nos sapatos do Baptista. Daqueles antigos, cheios de arabescos. E nuns pés de meias aos quadrados, enfiados nesses sapatos. E numas pernas magras, em calça de fazenda - tudo isto surgindo sob o Mercedes azulão, como gato escondido com rabo de fora. A princípio, achei graça. Sorri-me para com os meus botões. Mas, logo a seguir, veio-me uma onda de indignação. O Baptista a esconder-se do Mendes, debaixo do próprio carro? Mas que diabo! Precisávamos de chegar a esse ponto? Que criancice. Que parvoíce. Aproximei-me, e não me contive:
«Ó Baptista, homem, parece-lhe que tem idade para essas meninices? Deixe-se disso! Se não quer ver o Mendes, meta-se mas é no carro e pisgue-se, caraças! Como sempre fez, aliás!»
E respondeu-me o outro, numa voz lúgubre e longínqua:
«Isso queria eu! O cabrão do Mercedes não pega, estou aqui há meia hora a ver se o amanho...»
Ora, a bem dizer, a «razão» da zanga, o pomo da discórdia, o busílis da questão, passou-me. E eles próprios também já deviam ter-se esquecido. O que ficara fora o sentimento de afronta, a rotina da ofensa, o gesto, a mímica, o desencontro. Nunca mais estiveram juntos no mesmo espaço. E nunca mais os seus carros ficaram estacionados na mesma zona - porque, como eles continuaram a frequentar, até por dever de ofício, os mesmos lugares, quando um deles chegava, partia o outro: e, portanto, aparecia um dos carros, por exemplo o BMW vermelho do Mendes, zarpava o outro em menos de três segundos, digamos: o Mercedes azulão do Baptista.
Um dia, porém, ia eu entrar na Casa do Povo, quando vejo, lado a lado, como namorados carinhosos, o BMW e o Mercedes. Fiquei varado. Num primeiro instante, confesso, quase me senti desapontado: como se um dos fundamentos do movimento do universo tivesse sido quebrado. Aquela zanga fazia parte do nosso mundo. Alguém conseguiria passar sem ela? Sem tê-la como clara, certa, estável?! Nunca mais um carro a chegar e o outro a partir? Depois, lentamente, uma semente de optimismo principiou a percutir-me o peito. E pensei: Tomar um copo, um dia, com os dois juntos: inesperado mas interessante, um impossível que poderia, contudo, vir a realizar-se...
Aos primeiros passos dados, reparei de imediato nos sapatos do Baptista. Daqueles antigos, cheios de arabescos. E nuns pés de meias aos quadrados, enfiados nesses sapatos. E numas pernas magras, em calça de fazenda - tudo isto surgindo sob o Mercedes azulão, como gato escondido com rabo de fora. A princípio, achei graça. Sorri-me para com os meus botões. Mas, logo a seguir, veio-me uma onda de indignação. O Baptista a esconder-se do Mendes, debaixo do próprio carro? Mas que diabo! Precisávamos de chegar a esse ponto? Que criancice. Que parvoíce. Aproximei-me, e não me contive:
«Ó Baptista, homem, parece-lhe que tem idade para essas meninices? Deixe-se disso! Se não quer ver o Mendes, meta-se mas é no carro e pisgue-se, caraças! Como sempre fez, aliás!»
E respondeu-me o outro, numa voz lúgubre e longínqua:
«Isso queria eu! O cabrão do Mercedes não pega, estou aqui há meia hora a ver se o amanho...»
sexta-feira, outubro 22, 2010
AGOSTINHO
O sr. Tavares tivera, toda a vida, um miserável carro de duas portas. (Aquilo a que os vendedores de automóveis habitualmente chamam «um 3 portas», contando absurdamente com a da bagageira...); tornara-se complicado albergar, num veículo tão minúsculo, uma família numerosa, com crianças de chorar, velhas de bengala, cães com línguas húmidas.
Por isso, no dia em que o sr. Tavares saiu do stand («o stander», dizia ele) na sua carrinha nova, cheia de portas, muito comprida, completamente negra, sentia-se feliz. Dispôs, naquele espaço enorme, a que não estavam habituados, as suas crianças, idosos e cães, e seguiram, ainda um pouco vagarosamente, a dar uma volta pela marginal...
Mas não bastava o passeio. Tinha de ir mostrar a carrinha ao amigo Agostinho! Chegou a pensar que Agostinho, muito adoentado, com graves problemas cardíacos, tão dependente das suas botijas de oxigénio, não só teria prazer em ver o comprido carro preto, como talvez lhe apetecesse passear - distrair-se, em suma...
O Agostinho gostou, efectivamente, de ver a Wolkswagen. Mas não lhe apetecia passear. Estava cansado, cansado. Não perdiam pela demora. Na próxima volta, contassem com ele. («Mas que coisa! Tão grande! É fantástico, de facto. E que confortável. Eu ia, ó Zé, mas olha, pá, tu desculpa, passei a noite aos gritos...»)
Os Tavares foram-se. O carro cruzou-se, à saída, com o Mendes e o Baptista (que, na altura, ainda se davam: passou-se tudo isto, portanto, antes da monumental zanga que os separaria para sempre...), o Mendes e o Baptista, dizia eu: dois empreiteiros que vinham saber de que obras, afinal, carecia a casa.
Abrindo a janela para cumprimentar, o sr. Tavares espantou-se um pouco de que os dois empreiteiros, olhando fixamente a carrinha negra, se descobrissem, e um dissesse para o outro:
«Olha! O Agostinho já foi!»
Mendes e Baptista, coitados, decidiram que iam ser discretos - já imaginavam a casa num alvoroço, a viúva chorando, os gatos-pingados sem mãos a medir. Não quiseram por isso bater à porta principal. Foram pelas traseiras. Tocaram sem alarde.
Bruscamente, o Mendes ouviu um grito do Baptista.
E sacudiu-o:
- Que foi, pá? Hein? Que é que te deu, homem? Estás branco, que é isso?
Agostinho, arrastando uma botija, abria-lhes tranquilamente a porta.
Por isso, no dia em que o sr. Tavares saiu do stand («o stander», dizia ele) na sua carrinha nova, cheia de portas, muito comprida, completamente negra, sentia-se feliz. Dispôs, naquele espaço enorme, a que não estavam habituados, as suas crianças, idosos e cães, e seguiram, ainda um pouco vagarosamente, a dar uma volta pela marginal...
Mas não bastava o passeio. Tinha de ir mostrar a carrinha ao amigo Agostinho! Chegou a pensar que Agostinho, muito adoentado, com graves problemas cardíacos, tão dependente das suas botijas de oxigénio, não só teria prazer em ver o comprido carro preto, como talvez lhe apetecesse passear - distrair-se, em suma...
O Agostinho gostou, efectivamente, de ver a Wolkswagen. Mas não lhe apetecia passear. Estava cansado, cansado. Não perdiam pela demora. Na próxima volta, contassem com ele. («Mas que coisa! Tão grande! É fantástico, de facto. E que confortável. Eu ia, ó Zé, mas olha, pá, tu desculpa, passei a noite aos gritos...»)
Os Tavares foram-se. O carro cruzou-se, à saída, com o Mendes e o Baptista (que, na altura, ainda se davam: passou-se tudo isto, portanto, antes da monumental zanga que os separaria para sempre...), o Mendes e o Baptista, dizia eu: dois empreiteiros que vinham saber de que obras, afinal, carecia a casa.
Abrindo a janela para cumprimentar, o sr. Tavares espantou-se um pouco de que os dois empreiteiros, olhando fixamente a carrinha negra, se descobrissem, e um dissesse para o outro:
«Olha! O Agostinho já foi!»
Mendes e Baptista, coitados, decidiram que iam ser discretos - já imaginavam a casa num alvoroço, a viúva chorando, os gatos-pingados sem mãos a medir. Não quiseram por isso bater à porta principal. Foram pelas traseiras. Tocaram sem alarde.
Bruscamente, o Mendes ouviu um grito do Baptista.
E sacudiu-o:
- Que foi, pá? Hein? Que é que te deu, homem? Estás branco, que é isso?
Agostinho, arrastando uma botija, abria-lhes tranquilamente a porta.
segunda-feira, outubro 18, 2010
UM GAJO FARTA-SE DESTE PAÍS
Hoje, não sei bem que escrever.
A vida está cinzenta; é fantástico como principio a ver a aura das pessoas: parece uma neblina triste que as acompanha. Uma neblina portátil.
Habituei-os a que, no meu blogue, neste meu blogue, preferia fazer rir do que fazer chorar. Eu não sei fazer chorar, nunca tive jeito para isso. Mesmo quando encenava a minha tristeza, tentando ganhar qualquer coisa com ela (por exemplo: o perdão dos pais perante um grande disparate meu...), havia sempre um pormenor esquecido que tornava a tristeza cómica.
Ora a minha tristeza é cada vez menos cómica. A tristeza do país não tem graça. A senhora que, no café, almoça um galão e um pastel de bacalhau, não tem a menor piada. O ministro quer rir à minha custa? À nossa custa? Ai ele é isso?! O Teixeira quer rir? Suas excelências apreciam uma ou duas boas gargalhadas??? Vão ao circo. Eu estou farto de ser o palhaço pobre.
Ainda por cima, mais pobre do que palhaço. E, pelos vistos, cada vez mais pobre!
A vida está cinzenta; é fantástico como principio a ver a aura das pessoas: parece uma neblina triste que as acompanha. Uma neblina portátil.
Habituei-os a que, no meu blogue, neste meu blogue, preferia fazer rir do que fazer chorar. Eu não sei fazer chorar, nunca tive jeito para isso. Mesmo quando encenava a minha tristeza, tentando ganhar qualquer coisa com ela (por exemplo: o perdão dos pais perante um grande disparate meu...), havia sempre um pormenor esquecido que tornava a tristeza cómica.
Ora a minha tristeza é cada vez menos cómica. A tristeza do país não tem graça. A senhora que, no café, almoça um galão e um pastel de bacalhau, não tem a menor piada. O ministro quer rir à minha custa? À nossa custa? Ai ele é isso?! O Teixeira quer rir? Suas excelências apreciam uma ou duas boas gargalhadas??? Vão ao circo. Eu estou farto de ser o palhaço pobre.
Ainda por cima, mais pobre do que palhaço. E, pelos vistos, cada vez mais pobre!
terça-feira, outubro 05, 2010
O SENHOR QUE SE SEGUE
Não é segredo para ninguém que, porque português, porque professor do Ensino Secundário e porque homem trabalhador, odeio, com a energia máxima das minhas entranhas ideológicas, essa mediocridade política, o monstro da falsidade boçal e arrogante, que dá pelo nome de senhor engenheiro Sócrates. (Puah!).
Algo, porém, me atormenta a alma e me torna infeliz perante a possibilidade de que ele se vá embora.
E o que me deixa atormentado e infeliz em face da possibilidade de que um dia ele se vá embora é a hipótese de que o faça para ser substituído por... por...
Pelo senhor que foi marido de uma das Doce.
Poderia o país descer mais? Não há um fundo final para este descalabro? Um chão abaixo do qual já se não possa continuar a cair?
Algo, porém, me atormenta a alma e me torna infeliz perante a possibilidade de que ele se vá embora.
E o que me deixa atormentado e infeliz em face da possibilidade de que um dia ele se vá embora é a hipótese de que o faça para ser substituído por... por...
Pelo senhor que foi marido de uma das Doce.
Poderia o país descer mais? Não há um fundo final para este descalabro? Um chão abaixo do qual já se não possa continuar a cair?
quarta-feira, setembro 22, 2010
O VÍDEO
A sra. dona ministra da educação, querendo mostrar uma perfeita sincronização com a linguagem e os meios usados pelos adolescentes, colocou um vídeo no youtube, em que lhes dá umas lições.
A senhora dona Alçada, desculpar-me-ão, pôs-se a jeito. Já viram o vídeo? Não é que seja mau. Nem digo que seja disparatado. Em rigor, é péssimo - e a palavra "disparatado", no caso, seria uma espécie de eufemismo. Quase um elogio.
A ministra, com a bandeira portuguesa em fundo, ensina aos jovens que estudar é assim uma espécie de ginástica ao cérebro; que dormir faz muito bem; abre muito os olhos, para se mostrar viva e esperta, enquanto selecciona pelavras simples (e ridículas) para se dirigir à malta.
Rui Unas pegou no vídeo e dobrou-o. A senhora ministra, que queria estar sincronizada com a linguagem cool dos jovens está agora, de facto, perfeitamente sincronizada: aparece, graças à operação de Unas, a falar sobre como os portugueses devem fazer sexo.
É indecente? Era indecente no original. Uma senhora a ensinar aos miúdos que deviam estudar? «Fazer ginástica à massa cinzenta»? Ora adeus. Agora ensina que podem fazer outro tipo de ginástica. Garanto que os putos, desta feita, vão certamente visitar o vídeo. Eu cá estou ansioso por ir espreitar a versão do Unas. Talvez agora aprenda, finalmente, alguma coisa com o ministério da educação.
A senhora dona Alçada, desculpar-me-ão, pôs-se a jeito. Já viram o vídeo? Não é que seja mau. Nem digo que seja disparatado. Em rigor, é péssimo - e a palavra "disparatado", no caso, seria uma espécie de eufemismo. Quase um elogio.
A ministra, com a bandeira portuguesa em fundo, ensina aos jovens que estudar é assim uma espécie de ginástica ao cérebro; que dormir faz muito bem; abre muito os olhos, para se mostrar viva e esperta, enquanto selecciona pelavras simples (e ridículas) para se dirigir à malta.
Rui Unas pegou no vídeo e dobrou-o. A senhora ministra, que queria estar sincronizada com a linguagem cool dos jovens está agora, de facto, perfeitamente sincronizada: aparece, graças à operação de Unas, a falar sobre como os portugueses devem fazer sexo.
É indecente? Era indecente no original. Uma senhora a ensinar aos miúdos que deviam estudar? «Fazer ginástica à massa cinzenta»? Ora adeus. Agora ensina que podem fazer outro tipo de ginástica. Garanto que os putos, desta feita, vão certamente visitar o vídeo. Eu cá estou ansioso por ir espreitar a versão do Unas. Talvez agora aprenda, finalmente, alguma coisa com o ministério da educação.
domingo, setembro 19, 2010
MEIO SÉCULO + THREE YEARS OLD
Hoje, faço 53 anos, leia-se: meio-século mais 3 anos. Confesso que já começo a sentir uma impressionante e deprimente saudade dos meus 52 anos. Aquilo é que era uma idade! Aquilo é que era bom!
Tive, à meia-noite, a mensagem que me consolou. Após essa, nenhuma outra. Já rascunhei e gravei até, no telemóvel, um sms, que, daqui a mais umas horas, começarei a enviar, indiscriminada e anonimamente, aos meus amigos e às minhas amigas, lembrando-lhes: «O Gil Duarte faz hoje anos. Não te esqueças. Passa a palavra».
Mas não será descer demasiado baixo?
É verdade que o meu filho já conseguiu que eu, coração de manteiga como sou, vertesse algumas lágrimas.
Entrou-me pelo quarto adentro, mais a prima, que está passando uns dias connosco (uma eternidade, de facto...), rasgando o melhor do meu sono, aos gritos de PARABÉNS!
Vinha em cuecas, tronco nu, peúgas. A miúda, com este calor, estava num pijama de flanela.
Traziam-me um carinhoso pequeno-almoço: ovos mexidos, crus e salgadíssimos, um sumo de laranja azedo como um raio (terá sido feito com limões?) e, o pior de tudo: uma xícara de café frio. Nem sequer gelado, porque aí poderia ter-me convencido a mim mesmo de que estava bebendo um refresco de café. Mas naquela triste e irreversível temperatura que não deixa dar, ao café frio, outro nome que não este: um café frio.
Sentaram-se no chão, cheios de carinho, expectativa, como cientistas observando uma cobaia. Estampei, com arames, um sorriso de gratidão no rosto. Controlei os esgares. Os seus olhos brilhavam de alegria. Os meus brilhavam, mas de lágrimas. (Sobretudo na parte do sumo... mas o café também me fez chorar, sim!)
Há torturas que nenhum Guantánamo se lembrou de perpetrar. As bem intencionadas são seguramente as piores. E se, em face da dolorosa experiência, temos ainda por cima de mostrar um olhar doce e um sorriso querido e grato, então, são verdadeiramente insuportáveis.
O dia não acabou. Ainda mal começou. Espero um alegre grupo de gente idosa (como eu, aliás), com medicamentos e depressões. Uma senhora virá com uma botija de oxigénio sobre rodinhas. Falo a sério! Vou, portanto, ter diversão a rodos!
Estou cada vez mais cínico? Pois, pois. Gostava de vos ver no meu lugar, queridos amigos e amigas...
Tive, à meia-noite, a mensagem que me consolou. Após essa, nenhuma outra. Já rascunhei e gravei até, no telemóvel, um sms, que, daqui a mais umas horas, começarei a enviar, indiscriminada e anonimamente, aos meus amigos e às minhas amigas, lembrando-lhes: «O Gil Duarte faz hoje anos. Não te esqueças. Passa a palavra».
Mas não será descer demasiado baixo?
É verdade que o meu filho já conseguiu que eu, coração de manteiga como sou, vertesse algumas lágrimas.
Entrou-me pelo quarto adentro, mais a prima, que está passando uns dias connosco (uma eternidade, de facto...), rasgando o melhor do meu sono, aos gritos de PARABÉNS!
Vinha em cuecas, tronco nu, peúgas. A miúda, com este calor, estava num pijama de flanela.
Traziam-me um carinhoso pequeno-almoço: ovos mexidos, crus e salgadíssimos, um sumo de laranja azedo como um raio (terá sido feito com limões?) e, o pior de tudo: uma xícara de café frio. Nem sequer gelado, porque aí poderia ter-me convencido a mim mesmo de que estava bebendo um refresco de café. Mas naquela triste e irreversível temperatura que não deixa dar, ao café frio, outro nome que não este: um café frio.
Sentaram-se no chão, cheios de carinho, expectativa, como cientistas observando uma cobaia. Estampei, com arames, um sorriso de gratidão no rosto. Controlei os esgares. Os seus olhos brilhavam de alegria. Os meus brilhavam, mas de lágrimas. (Sobretudo na parte do sumo... mas o café também me fez chorar, sim!)
Há torturas que nenhum Guantánamo se lembrou de perpetrar. As bem intencionadas são seguramente as piores. E se, em face da dolorosa experiência, temos ainda por cima de mostrar um olhar doce e um sorriso querido e grato, então, são verdadeiramente insuportáveis.
O dia não acabou. Ainda mal começou. Espero um alegre grupo de gente idosa (como eu, aliás), com medicamentos e depressões. Uma senhora virá com uma botija de oxigénio sobre rodinhas. Falo a sério! Vou, portanto, ter diversão a rodos!
Estou cada vez mais cínico? Pois, pois. Gostava de vos ver no meu lugar, queridos amigos e amigas...
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em vez de fazer anos poderia desfazê-los?
terça-feira, setembro 14, 2010
FUNERAL LONGÍNQUO
A ideia foi do Jorge, e este expô-la assim que saíram da agência funerária. Mas o problema é que Jorge sempre fora um cínico e, portanto, como é evidente, não o levaram a sério.
A sua mulher deve tê-lo admoestado, com um «Jorge!», entre dentes, que significava: «Querido, há mesmo coisas com que não se brinca!»
Alípio, por acaso, riu. Podia, às vezes, não apreciar o humor negro e corrosivo do seu irmão, mas, naquele momento, aceitou a piada como uma forma de, palavras suas, «desdramatizar a situação».
Porém, a ideia de Jorge não era brincadeira alguma. Na agência funerária haviam-lhes exigido centenas de euros para conduzir o corpo frio de dona Hermengarda até ao cemitério de Pedrão Velho do Sul, aonde a senhora queria ser enterrada, como sempre dissera, ao lado do defunto.
Centenas de euros, para lá de seiscentos, isso não podia ser. Não que dona Hermengarda não merecesse: mas, em vida, coitadita, viajara muito. Chegara a ir à Terra Santa, numa daquelas peregrinações, meio doidas, do Padre Dinis; fora de avião à Polónia, para observar a Virgem de Cszwicz, que chorava lágrimas autênticas; estivera muitas vezes em Paris («Para ver as igrejas», como repetia, ecoando, tardiamente, o Raposão de Eça de Queirós), de forma que, ao morrer, morria limpinha, como nascera. Não deixava um vintém. Os rapazes, por outro lado, não tinham dinheiro que se não esgotasse todo na família e na casa. (Alípio, aliás, estava desempregado). Seiscentos e tantos euros? Tirados de onde? Como?!
A estranha ideia de Jorge - enrolarem a senhora numa carpete e levá-la, na capota do automóvel - era uma solução que sempre permitia colocá-la no cemitério de Pedrão Velho do Sul. (Lá muito para o Norte!). A alternativa seria enterrá-la nos Prazeres. Coitada.
E, portanto, quando, não se sabe como nem porquê, a ideia começou a ser tratada a sério, Jorge dispôs-se de imediato a dirigir a operação.
E em certa manhã de Dezembro, já muito fria, arrancaram, muito cedo, num Fiat Panda, com uma respeitável e fúnebre carpete fixada ao alto.
Comeram chouriço no carro, durante a viagem. E água, beberam muita água. Só pararam às seis horas da tarde para fazer chichi e tomar café, numa estação de serviço. Choraram de saudades, comeram empadas, muito boas, aliás, a esposa de Jorge bebeu uma meia de leite e, refeitos e satisfeitos, prepararam-se para tornar ao automóvel.
O automóvel lá estava. A carpete, bonita, vistosa, não. Haviam-na levado. Escória. Se querem saber já o fim da história, devo dizer-vos que nunca, nunca, nunca mais voltaram a encontrar a carpete - ou o corpo!
Em si mesma, claro, está história é trágica.
Não impede que Alípio - e mesmo Rosa - tivessem soltado algumas gargalhadas, não muitas, mas uma ou duas, quando Jorge comentou, à laia de consolo:
«Eu só gostava de ver a cara dos larápios, quando desenrolaram a carpete e deram com o corpo da mãe!»
A sua mulher deve tê-lo admoestado, com um «Jorge!», entre dentes, que significava: «Querido, há mesmo coisas com que não se brinca!»
Alípio, por acaso, riu. Podia, às vezes, não apreciar o humor negro e corrosivo do seu irmão, mas, naquele momento, aceitou a piada como uma forma de, palavras suas, «desdramatizar a situação».
Porém, a ideia de Jorge não era brincadeira alguma. Na agência funerária haviam-lhes exigido centenas de euros para conduzir o corpo frio de dona Hermengarda até ao cemitério de Pedrão Velho do Sul, aonde a senhora queria ser enterrada, como sempre dissera, ao lado do defunto.
Centenas de euros, para lá de seiscentos, isso não podia ser. Não que dona Hermengarda não merecesse: mas, em vida, coitadita, viajara muito. Chegara a ir à Terra Santa, numa daquelas peregrinações, meio doidas, do Padre Dinis; fora de avião à Polónia, para observar a Virgem de Cszwicz, que chorava lágrimas autênticas; estivera muitas vezes em Paris («Para ver as igrejas», como repetia, ecoando, tardiamente, o Raposão de Eça de Queirós), de forma que, ao morrer, morria limpinha, como nascera. Não deixava um vintém. Os rapazes, por outro lado, não tinham dinheiro que se não esgotasse todo na família e na casa. (Alípio, aliás, estava desempregado). Seiscentos e tantos euros? Tirados de onde? Como?!
A estranha ideia de Jorge - enrolarem a senhora numa carpete e levá-la, na capota do automóvel - era uma solução que sempre permitia colocá-la no cemitério de Pedrão Velho do Sul. (Lá muito para o Norte!). A alternativa seria enterrá-la nos Prazeres. Coitada.
E, portanto, quando, não se sabe como nem porquê, a ideia começou a ser tratada a sério, Jorge dispôs-se de imediato a dirigir a operação.
E em certa manhã de Dezembro, já muito fria, arrancaram, muito cedo, num Fiat Panda, com uma respeitável e fúnebre carpete fixada ao alto.
Comeram chouriço no carro, durante a viagem. E água, beberam muita água. Só pararam às seis horas da tarde para fazer chichi e tomar café, numa estação de serviço. Choraram de saudades, comeram empadas, muito boas, aliás, a esposa de Jorge bebeu uma meia de leite e, refeitos e satisfeitos, prepararam-se para tornar ao automóvel.
O automóvel lá estava. A carpete, bonita, vistosa, não. Haviam-na levado. Escória. Se querem saber já o fim da história, devo dizer-vos que nunca, nunca, nunca mais voltaram a encontrar a carpete - ou o corpo!
Em si mesma, claro, está história é trágica.
Não impede que Alípio - e mesmo Rosa - tivessem soltado algumas gargalhadas, não muitas, mas uma ou duas, quando Jorge comentou, à laia de consolo:
«Eu só gostava de ver a cara dos larápios, quando desenrolaram a carpete e deram com o corpo da mãe!»
domingo, setembro 05, 2010
AMERICA'S NOTEBOOK IV
1. Num dos primeiros dias que passámos nos states, primo & Andy (sua esposa) levaram-nos a uma encantadora e típica aldeia, Fayetteville. É uma terra que vive da preservação de uma certa imagem: parece que entramos numa vilória dos "Good Old Times" americanos: alpendres em madeira, picket fences, cadeiras de balanço; um sótão, camas de época, quadros. Não existem grandes negócios: a aldeia vive de arrendar essas casas a turistas que queiram sentir-se como Huckleberry Finn; lojas de "antiques" (com vestidos e chapéus, malas, sapatos, polainas); restaurantes; um drugstore; um museu de comboios.
2. Eis um aspecto em que os americanos são verdadeiramente fabulosos: com uma história tão curta, e tão ciosos dela. Num parque de Houston, por exemplo, encontram-se transplantadas as casas de madeira onde viveram alguns pioneiros.
3. Encontro livros, de autores europeus, que seriam pouco acessíveis na Europa. A minha grande compra é uma tradução inglesa de Nietzsche - na verdade, os textos preparatórios de uma série de aulas que este leccionou, acerca dos filósofos pré-platónicos, e que sucessivos tradutores europeus negligenciaram ou ignoraram.
2. Eis um aspecto em que os americanos são verdadeiramente fabulosos: com uma história tão curta, e tão ciosos dela. Num parque de Houston, por exemplo, encontram-se transplantadas as casas de madeira onde viveram alguns pioneiros.
3. Encontro livros, de autores europeus, que seriam pouco acessíveis na Europa. A minha grande compra é uma tradução inglesa de Nietzsche - na verdade, os textos preparatórios de uma série de aulas que este leccionou, acerca dos filósofos pré-platónicos, e que sucessivos tradutores europeus negligenciaram ou ignoraram.
PSIQUIATRIA POLITICAMENTE CORRECTA
A experiência mostra-me que nada é tão terrível, para um jovem e recém formado psiquiatra, «politicamente correcto», do que ouvir chamar maluco a um maluco.
quinta-feira, setembro 02, 2010
AMERICA'S NOTEBOOK III
1. Lembro-me de ter ficado profundamente surpreendido quando, à minha chegada ao aeroporto de Houston, ouvi, em todos os altifalantes, uma voz feminina que, delicadamente, nos advertia: «Please, be carefull with unnapropriate jokes and remarks!»
2. Meu filho, de quinze anos, tinha, dos states, a ideia de um país racista, rasgado por situações em que polícias brancos espancam, por todo o lado, jovens negros ou latino-americanos, cuja culpa não fora provada; já eu, pelo contrário, transportava a ideia do país «politicamente correcto», desprezando e rejeitando, como racista, qualquer referência ao facto de haver pessoas diferentes. Esta estranha - e, é verdade, ridícula - forma de me receberem no aeroporto vinha dar-me razão. Por algum motivo os EUA são os inventores do "politicamente correcto".
3. É indiscutível e é evidente, a cada passo, que os EUA se tornaram uma verdadeira manta multirracial e multi-cultural. Vejo, numa cerimónia universitária, como, na enorme quantidade dos estudantes que, entrando em medicina, recebem a sua bata branca - ou, por enquanto, enquanto estudantes, o seu curto "casaco branco" (nisso mesmo consiste "the white coat cerimony") - existem brancos, negros, sul-americanos, indianos, chineses.
4. Deste ponto de vista, começo a entender a filosofia do "politicamente correcto", com os seus medos, preconceitos e complexos, como, mais do que uma corrente entre as diversas correntes culturais da América do Norte, a possibilidade oficial de as reconciliar todas, evitar tensões, suprimir mal-entendidos, ignorar diferenças, numa "igualdade" institucional a que as almas românticas são imediatamente sensíveis.
5. Dizem-me alguns brancos, com os quais conversei, que a única forma de racismo natural e generalizada, nos EUA, é a da comunidade negra. Limito-me a registar.
2. Meu filho, de quinze anos, tinha, dos states, a ideia de um país racista, rasgado por situações em que polícias brancos espancam, por todo o lado, jovens negros ou latino-americanos, cuja culpa não fora provada; já eu, pelo contrário, transportava a ideia do país «politicamente correcto», desprezando e rejeitando, como racista, qualquer referência ao facto de haver pessoas diferentes. Esta estranha - e, é verdade, ridícula - forma de me receberem no aeroporto vinha dar-me razão. Por algum motivo os EUA são os inventores do "politicamente correcto".
3. É indiscutível e é evidente, a cada passo, que os EUA se tornaram uma verdadeira manta multirracial e multi-cultural. Vejo, numa cerimónia universitária, como, na enorme quantidade dos estudantes que, entrando em medicina, recebem a sua bata branca - ou, por enquanto, enquanto estudantes, o seu curto "casaco branco" (nisso mesmo consiste "the white coat cerimony") - existem brancos, negros, sul-americanos, indianos, chineses.
4. Deste ponto de vista, começo a entender a filosofia do "politicamente correcto", com os seus medos, preconceitos e complexos, como, mais do que uma corrente entre as diversas correntes culturais da América do Norte, a possibilidade oficial de as reconciliar todas, evitar tensões, suprimir mal-entendidos, ignorar diferenças, numa "igualdade" institucional a que as almas românticas são imediatamente sensíveis.
5. Dizem-me alguns brancos, com os quais conversei, que a única forma de racismo natural e generalizada, nos EUA, é a da comunidade negra. Limito-me a registar.
quarta-feira, setembro 01, 2010
AMERICA'S NOTEBOOK II
1. Os europeus habituaram-se a olhar para os americanos como para uma súcia de primitivos ricos. Aparentemente, toda a sofisticação teria ficado guardada na Europa. (Duvido que em Portugal...); os EUA seriam, portanto, um país de gordos, alimentados a McDonald's, Schwarzenegger e Simpsons.
2. Os europeus menos centrados sobre si próprios e menos iludidos, já sabiam que não é bem assim. Reconheciam o papel dos judeus norte-americanos, na literatura ou no cinema, como inteligente, inovador, culto e subtil. (Philip Roth, por exemplo, ou Woody Allen). Mas os judeus, mesmo os norte-americanos, são sempre uma espécie de europeus. E a judaica Nova Iorque parece-nos ser, no seio dos EUA, um luminoso enclave quasi-europeu...
3. Tudo isto é errado. Venho de Houston, no Estado do Texas, onde visitei um museu extraordinário, o Museum of Houston Fine Arts, que me apresentou, a par de pintores norte-americanos que gostei de descobrir, alguns quadros de Van Gogh, alguns de Cézanne, um Mondigliani de me fazer vir as lágrimas aos olhos, diversos Picassos, obras do sublime Pizarro, com os seus inesperados ângulos e a sua cor discreta, como sob neblina...
4. Podemos dar um salto da arte para a culinária? Hambúrgueres? Muito bem, pois falemos de hambúrgueres. Comi, em Houston, os melhores da minha vida - num restaurante médio, ou seja, não talvez dos mais caros, mas, certamente não, também, um fast-food. Com uma arquitectura impressionante, misturando paredes de tijolos vermelhos, de beco, e lustres resplandecentes, mesas de boa madeira, empregados risonhos, simpáticos, cocktails de se chorar por mais...
5. Ainda em torno da comida, reflicto, por comparação, que em Portugal não há restaurantes italianos. Vá lá, sejamos sérios. Esse é, entre nós, o nome que damos a umas casas que se especializam em pizzas pré-congeladas e massas. Mas em Las Vegas, para referir um exemplo, os restaurantes italianos onde comi são verdadeiros e puros restaurantes italianos, com empregados italianos, vinho italiano, pratos confeccionados por profissionais a sério, competentes no detalhe e refinados. Não existe assim tão italiano em toda a Europa. Talvez na Itália? Ora, ora. Suspeito que nem aí!
2. Os europeus menos centrados sobre si próprios e menos iludidos, já sabiam que não é bem assim. Reconheciam o papel dos judeus norte-americanos, na literatura ou no cinema, como inteligente, inovador, culto e subtil. (Philip Roth, por exemplo, ou Woody Allen). Mas os judeus, mesmo os norte-americanos, são sempre uma espécie de europeus. E a judaica Nova Iorque parece-nos ser, no seio dos EUA, um luminoso enclave quasi-europeu...
3. Tudo isto é errado. Venho de Houston, no Estado do Texas, onde visitei um museu extraordinário, o Museum of Houston Fine Arts, que me apresentou, a par de pintores norte-americanos que gostei de descobrir, alguns quadros de Van Gogh, alguns de Cézanne, um Mondigliani de me fazer vir as lágrimas aos olhos, diversos Picassos, obras do sublime Pizarro, com os seus inesperados ângulos e a sua cor discreta, como sob neblina...
4. Podemos dar um salto da arte para a culinária? Hambúrgueres? Muito bem, pois falemos de hambúrgueres. Comi, em Houston, os melhores da minha vida - num restaurante médio, ou seja, não talvez dos mais caros, mas, certamente não, também, um fast-food. Com uma arquitectura impressionante, misturando paredes de tijolos vermelhos, de beco, e lustres resplandecentes, mesas de boa madeira, empregados risonhos, simpáticos, cocktails de se chorar por mais...
5. Ainda em torno da comida, reflicto, por comparação, que em Portugal não há restaurantes italianos. Vá lá, sejamos sérios. Esse é, entre nós, o nome que damos a umas casas que se especializam em pizzas pré-congeladas e massas. Mas em Las Vegas, para referir um exemplo, os restaurantes italianos onde comi são verdadeiros e puros restaurantes italianos, com empregados italianos, vinho italiano, pratos confeccionados por profissionais a sério, competentes no detalhe e refinados. Não existe assim tão italiano em toda a Europa. Talvez na Itália? Ora, ora. Suspeito que nem aí!
segunda-feira, agosto 30, 2010
AMERICA'S NOTEBOOK
1. Passe o pretensiosismo do nome, o meu objectivo é extremamente simples; longe de fazer teoria acerca dos Estados Unidos da América, o que retenho é somente o conjunto de surpresas, ideias feitas que se desfizeram, o que observei aqui, o que me chocou ali. Nada de muito fundamentado. Mas, pelo menos a mim, estas descobertas mínimas ensinam-me a penetrar no país.
2. Meu primo, que é o meu Virgílio na visita aos círculos do inferno capitalista, diz-me que, aqui, se define a pobreza como a incapacidade para se manter mais do que um carro. É evidente que muitos americanos nem um automóvel possuem. E, contudo, é certo que vi passar um "homeless", vasculhando no lixo, longas e sujas barbas, roupa estafada... mas com um i-pod!
3. Tudo o que é bom e é mau converge nesta bizarra e contraditória Las Vegas, terra do prazer sem limites, como numa gigantesca Disneyworld para adultos. Luzes intensas, cores por todo o lado, ruído, gente, um grupo de chinesas histéricas numa despedida de solteiro, tipos mascarados de Elvis Presley, restaurantes italianos soberbos, hotéis temáticos (Treasure Island, Circus, Venician, oferecendo uma espectacular Veneza...), onde tudo é falso e, ao mesmo tempo, absolutamente real...
4. Falso porque se diria encenado, como num gigantesco cenário de papel; verdadeiro, porque, efectivamente, o mármore é mármore, a pedra é sólida, os fundamentos revelam-se firmes. (E, numa terceira abordagem, tudo é novamente falso, porque imita, reproduz, reconstitui...).
5. E diz-me, ao jantar, um americano interessante, mas muito contraditório, a que o meu primo me apresentou: "O facto é que, vendo o que quer que se veja da América, fica-se ainda longe de se conhecer a América. Porque qualquer ponto dos EUA é mais diferente de um outro ponto da América, do que, possivelmente, de um qualquer ponto da Europa..."
6. Sei que assim é. Viajando de Houston a Las Vegas, ou de Las Vegas (Nevada) até essas pequenas localidades, em torno dos canyons de Zion, no Estado de Utah, maioritariamente mormon, nada tem que ver com nada: mudamos certamente de paisagem, mas também de ética, mudamos de planeta, passamos de um universo para outro.
2. Meu primo, que é o meu Virgílio na visita aos círculos do inferno capitalista, diz-me que, aqui, se define a pobreza como a incapacidade para se manter mais do que um carro. É evidente que muitos americanos nem um automóvel possuem. E, contudo, é certo que vi passar um "homeless", vasculhando no lixo, longas e sujas barbas, roupa estafada... mas com um i-pod!
3. Tudo o que é bom e é mau converge nesta bizarra e contraditória Las Vegas, terra do prazer sem limites, como numa gigantesca Disneyworld para adultos. Luzes intensas, cores por todo o lado, ruído, gente, um grupo de chinesas histéricas numa despedida de solteiro, tipos mascarados de Elvis Presley, restaurantes italianos soberbos, hotéis temáticos (Treasure Island, Circus, Venician, oferecendo uma espectacular Veneza...), onde tudo é falso e, ao mesmo tempo, absolutamente real...
4. Falso porque se diria encenado, como num gigantesco cenário de papel; verdadeiro, porque, efectivamente, o mármore é mármore, a pedra é sólida, os fundamentos revelam-se firmes. (E, numa terceira abordagem, tudo é novamente falso, porque imita, reproduz, reconstitui...).
5. E diz-me, ao jantar, um americano interessante, mas muito contraditório, a que o meu primo me apresentou: "O facto é que, vendo o que quer que se veja da América, fica-se ainda longe de se conhecer a América. Porque qualquer ponto dos EUA é mais diferente de um outro ponto da América, do que, possivelmente, de um qualquer ponto da Europa..."
6. Sei que assim é. Viajando de Houston a Las Vegas, ou de Las Vegas (Nevada) até essas pequenas localidades, em torno dos canyons de Zion, no Estado de Utah, maioritariamente mormon, nada tem que ver com nada: mudamos certamente de paisagem, mas também de ética, mudamos de planeta, passamos de um universo para outro.
quinta-feira, agosto 12, 2010
EU, VERDADEIRO ÍCONE DA MORAL
O local é o infame Oeiras Parque, que já deito pelos olhos.
Sozinho com a Daisy, enquanto o irmão faz uma espécie de vida de jet-set, entre praia, cinema, festas-karaoke, e a mãe dos miúdos continua presa ao trabalho, opto, à hora do almoço, por repartir com ela uma lasanha.
Não o faço por razões financeiras. Poderia ser, mas não. Tão-só por motivos logísticos, se é que a palavra está bem escolhida. Não posso carregar para a mesa dois pratos, que não cabem num tabuleiro, nem dois tabuleiros com um prato cada um. Por outro lado, custa-me deixar a garota sozinha numa mesa, já a comer, enquanto procuro a minha própria refeição. De modo que trago dois pares de talheres, divido a lasanha no prato, que é imensa, Tu comes isto, eu como aquilo!
Faço-o sempre (não é a primeira vez) com alguma vergonha. Não gostaria que me tomassem pelo rei dos somíticos, nem que achassem que roubo restos ao prato da minha filha.
Estamos precisamente ao lado de uma família: pai de braços peludos e óculos à moda, mãe com túnica de praia e chinelos, olhos verdes, miúda de uns dez anos, gorda, de caracóis; percebo, embaraçadíssimo, que seguem a minha operação: logo que a Daisy choraminga «Nã qué maij», deslizo o prato para o pé de mim, desembrulho os meus talheres, manjo, com alguma fome que a minha voracidade deve revelar.
Mas, nessa mesa ao lado, ocorre uma «situação»: a menina está com um prato cheio de bife, batatas fritas, arroz. Não come. E vejo, com estranheza, que os pais é que se envergonham perante mim, perante o meu espírito de economia. Estão furiosos com a filha, que já afirmou, peremptória, que não lhe apetecia mais. Devem estar a pensar «Isto é estragar comida», «Os meninos de Àfrica», «Mimada», esse género de coisas.
- És pior que os pequenitos!, atira-lhe a mãe, num mal contido acesso de fúria.
- Eu não sabia que era assim - lamenta-se a petiza. - Se eu soubesse que o prato era assim, não tinha pedido!
A mãe não sabe o que há-de fazer. O pai finge desaparecer. Estou, pela minha simples existência em torno de um prato de lasanha, representando uma lição de moral. Fico sem saber como me comportar.
Quase me apetecia, para resolver o problema, sentar-me à mesa deles. E, como alguns prisioneiros, no refeitório, perguntar à gorda:
- Não vais comer isso...? Importas-te?
Atirando-me imediatamente ao seu bife com batas fritas...
Sozinho com a Daisy, enquanto o irmão faz uma espécie de vida de jet-set, entre praia, cinema, festas-karaoke, e a mãe dos miúdos continua presa ao trabalho, opto, à hora do almoço, por repartir com ela uma lasanha.
Não o faço por razões financeiras. Poderia ser, mas não. Tão-só por motivos logísticos, se é que a palavra está bem escolhida. Não posso carregar para a mesa dois pratos, que não cabem num tabuleiro, nem dois tabuleiros com um prato cada um. Por outro lado, custa-me deixar a garota sozinha numa mesa, já a comer, enquanto procuro a minha própria refeição. De modo que trago dois pares de talheres, divido a lasanha no prato, que é imensa, Tu comes isto, eu como aquilo!
Faço-o sempre (não é a primeira vez) com alguma vergonha. Não gostaria que me tomassem pelo rei dos somíticos, nem que achassem que roubo restos ao prato da minha filha.
Estamos precisamente ao lado de uma família: pai de braços peludos e óculos à moda, mãe com túnica de praia e chinelos, olhos verdes, miúda de uns dez anos, gorda, de caracóis; percebo, embaraçadíssimo, que seguem a minha operação: logo que a Daisy choraminga «Nã qué maij», deslizo o prato para o pé de mim, desembrulho os meus talheres, manjo, com alguma fome que a minha voracidade deve revelar.
Mas, nessa mesa ao lado, ocorre uma «situação»: a menina está com um prato cheio de bife, batatas fritas, arroz. Não come. E vejo, com estranheza, que os pais é que se envergonham perante mim, perante o meu espírito de economia. Estão furiosos com a filha, que já afirmou, peremptória, que não lhe apetecia mais. Devem estar a pensar «Isto é estragar comida», «Os meninos de Àfrica», «Mimada», esse género de coisas.
- És pior que os pequenitos!, atira-lhe a mãe, num mal contido acesso de fúria.
- Eu não sabia que era assim - lamenta-se a petiza. - Se eu soubesse que o prato era assim, não tinha pedido!
A mãe não sabe o que há-de fazer. O pai finge desaparecer. Estou, pela minha simples existência em torno de um prato de lasanha, representando uma lição de moral. Fico sem saber como me comportar.
Quase me apetecia, para resolver o problema, sentar-me à mesa deles. E, como alguns prisioneiros, no refeitório, perguntar à gorda:
- Não vais comer isso...? Importas-te?
Atirando-me imediatamente ao seu bife com batas fritas...
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minúsculos momentos de Glória
terça-feira, agosto 10, 2010
ACERCA DE ASSUMIR OU NÃO ASSUMIR: ISTO SOU EU A PENSAR
Eis uma confissão inaceitável do ponto de vista de quem oficializa o que se deve aceitar:
Se eu fosse gay, nunca me assumiria. Por vergonha? Não! Unicamente por não tolerar que um pormenor, no conjunto do que sou, condicionasse o meu modo de olhar o mundo e o modo de os outros me olharem.
Respondem-me: «Aí é que está! Só um não-homossexual poderia considerar a homossexualidade um pormenor. Na sociedade em que vivemos, ser homossexual está longe de constituir meramente um pormenor!»
E, então, reformulo. Sem prejuízo da coragem que penso que essa assunção requer, não me assumiria porque não é tolerável que um pormenor, no conjunto do que sou, fosse tratado como mais do que um pormenor no conjunto do que sou.
Mas isto sou eu a pensar fora da minha realidade, não sou eu a dar lições.
Se eu fosse gay, nunca me assumiria. Por vergonha? Não! Unicamente por não tolerar que um pormenor, no conjunto do que sou, condicionasse o meu modo de olhar o mundo e o modo de os outros me olharem.
Respondem-me: «Aí é que está! Só um não-homossexual poderia considerar a homossexualidade um pormenor. Na sociedade em que vivemos, ser homossexual está longe de constituir meramente um pormenor!»
E, então, reformulo. Sem prejuízo da coragem que penso que essa assunção requer, não me assumiria porque não é tolerável que um pormenor, no conjunto do que sou, fosse tratado como mais do que um pormenor no conjunto do que sou.
Mas isto sou eu a pensar fora da minha realidade, não sou eu a dar lições.
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argumentando ao contrário das minorias
terça-feira, agosto 03, 2010
MAIS UM DISPARATE ANUNCIADO
A mim, não parece estranho o clamor que se tem feito ouvir como consequência da anunciada intenção, da Ministra de Educação, de chumbar os chumbos dos alunos; parece-me estranho, pelo contrário, que as associações de pais e encarregados de educação fossem tão rápidas na aclamação da ideia. Que fossem tão previsíveis! Como se, de facto, uma associação de pais não ousasse considerar, e aprovar ou desaprovar, a não ser pela medida do que apetece aos miúdos e do seu aparente interesse imediato.
Não é que eu faça muito gosto no chumbo. Não é que, bem vistas as coisas, não poderia ser preferível um sistema onde os alunos não tivessem de chumbar. Pessoalmente, como professor, odeio auxiliar na decisão de que um aluno tenha de repetir o ano. Como eu próprio, enquanto aluno, chumbei umas quantas vezes, tenho conhecimento, por dentro, do que isso significa de porrada na autoestima (embora, como dizia Bénard da Costa, também eu seja do tempo em que essa palavra não tinha sido inventada). Mas, dito isto, o problema é o da irresponsabilidade de uma ideia que surge sem se perceberem as consequências e - tanto quanto se diz - por razões fundamentalmente económicas.
A grande questão é a de saber se um aluno está preparado para "passar de ano"; se aprendeu e esgotou o que é importante, nesse ano, como base para futuras aprendizagens. E, tal como o vejo, não há volta a dar a este busílis. É claro que se o aluno transita sem essa aquisição de "saberes" prévios, sem o minimum indispensável, não vai poder dar sentido ao conjunto de novos "saberes" com que terá de lidar. A não ser - ah, a não ser que se façam diferentes turmas para um universo de transitados: turmas de meninos mais lentos, turmas de alunos que, tendo passado, de facto nada sabem, turmas de meninos incompetentes (ou seja: sem as necessárias "competências" adquiridas) e, depois, turmas de alunos mais velozes, mais sábios e mais competentes...
É já um pouco isso, de resto, que se passa - em Inglaterra ou nos EUA -, ao nível das escolas e das universidades. Ninguém fica de fora. Mas nem todos têm habilitação para frequentar as melhores escolas e universidades. Multiplicam-se escolas e universidades para os fracos, para os que não sabem, para os que não compreendem, escolas e universidades que, obviamente, mais tarde, no curriculum dos que por lá passaram, não são nenhum convite a que os contratem...
A pura ideia de fazer, por um passe de magia, desaparecer a reprovação é uma fraude. Uma dessas ideias politicamente correctas, aparentemente para democratizar o sistema e oferecer as mesmas oportunidades a todos, que, na prática, na verdade, dão diferentes oportunidades (só aparentemente iguais) ao universo inteiro. É uma ideia que agrada às crianças e aos pais e permite poupar algum dinheiro, portanto, é claro, está destinada a vencer. É sempre tão mais fácil proporcionar satisfação a curto prazo, mesmo que seja à custa da formação dos jovens do país...
Não é que eu faça muito gosto no chumbo. Não é que, bem vistas as coisas, não poderia ser preferível um sistema onde os alunos não tivessem de chumbar. Pessoalmente, como professor, odeio auxiliar na decisão de que um aluno tenha de repetir o ano. Como eu próprio, enquanto aluno, chumbei umas quantas vezes, tenho conhecimento, por dentro, do que isso significa de porrada na autoestima (embora, como dizia Bénard da Costa, também eu seja do tempo em que essa palavra não tinha sido inventada). Mas, dito isto, o problema é o da irresponsabilidade de uma ideia que surge sem se perceberem as consequências e - tanto quanto se diz - por razões fundamentalmente económicas.
A grande questão é a de saber se um aluno está preparado para "passar de ano"; se aprendeu e esgotou o que é importante, nesse ano, como base para futuras aprendizagens. E, tal como o vejo, não há volta a dar a este busílis. É claro que se o aluno transita sem essa aquisição de "saberes" prévios, sem o minimum indispensável, não vai poder dar sentido ao conjunto de novos "saberes" com que terá de lidar. A não ser - ah, a não ser que se façam diferentes turmas para um universo de transitados: turmas de meninos mais lentos, turmas de alunos que, tendo passado, de facto nada sabem, turmas de meninos incompetentes (ou seja: sem as necessárias "competências" adquiridas) e, depois, turmas de alunos mais velozes, mais sábios e mais competentes...
É já um pouco isso, de resto, que se passa - em Inglaterra ou nos EUA -, ao nível das escolas e das universidades. Ninguém fica de fora. Mas nem todos têm habilitação para frequentar as melhores escolas e universidades. Multiplicam-se escolas e universidades para os fracos, para os que não sabem, para os que não compreendem, escolas e universidades que, obviamente, mais tarde, no curriculum dos que por lá passaram, não são nenhum convite a que os contratem...
A pura ideia de fazer, por um passe de magia, desaparecer a reprovação é uma fraude. Uma dessas ideias politicamente correctas, aparentemente para democratizar o sistema e oferecer as mesmas oportunidades a todos, que, na prática, na verdade, dão diferentes oportunidades (só aparentemente iguais) ao universo inteiro. É uma ideia que agrada às crianças e aos pais e permite poupar algum dinheiro, portanto, é claro, está destinada a vencer. É sempre tão mais fácil proporcionar satisfação a curto prazo, mesmo que seja à custa da formação dos jovens do país...
segunda-feira, agosto 02, 2010
SOBRE O CASAMENTO GAY E SOBRE NÃO QUERER CASAR
Estou totalmente a favor do casamento gay: compreendo que se trata da necessidade e da possibilidade de se institucionalizar a relação, de forma a que, depois de anos de comunhão de bens, nenhum dos dois seja penalizado ou traído por famílias invejosas, que nunca aceitaram o "companheiro" do seu menino; e, sobretudo, compreendo a razão da semântica: tratando-se de assumir perante a sociedade uma relação, então por que haveria de se inventar um outro nome, como se "casamento" fosse demasiado sério e demasiado digno para eles?
Não deixa de perturbar, porém. Para mim, que não sou gay e me recusei sempre casar, porque achava a oficialização do nó um gesto fútil e burguês; que o não fiz, consciente e deliberadamente, quando podia ter dado, com esse passo, um enorme prazer à família, é estranho verificar que a atitude revolucionária seja, agora, um certo tipo de casamento.
Não deixa de perturbar, porém. Para mim, que não sou gay e me recusei sempre casar, porque achava a oficialização do nó um gesto fútil e burguês; que o não fiz, consciente e deliberadamente, quando podia ter dado, com esse passo, um enorme prazer à família, é estranho verificar que a atitude revolucionária seja, agora, um certo tipo de casamento.
domingo, agosto 01, 2010
OS PRIMEIROS MINUTOS DE ROBINSON CRUSUOÉ NA ILHA
Eis que lenta, lenta, lenta, lentamente desperta a consciência de Robinson Crusuoé.
Parte do rosto está mergulhado em água; doem-lhe as pernas, os braços: o que teve de nadar para chegar ali, ao princípio da ilha, àquela areia húmida, àquelas rochas aguçadas!
Robinson sabe, ou calcula mas esse cálculo é como um íntimo saber, que ninguém mais sobreviveu no naufrágio.
Soergue-se, vagaroso. Tudo são músculos duros, presos, ineficazes. Olha o céu imenso, de um imenso azul, riscado de pássaros.
Põe-se de pé, obsreva em redor. É quando, pela primeira vez, lhe passa pela cabeça que vai ter de viver sozinho, como um divorciado, recolher despojos, como um trapeiro - despojos do navio naufragado que as ondas lhe entregam. Há madeiras, há ferros, há utensílios. Começa a pensar num universo que terá de construir a partir de nada, ou de quase nada, começa a pensar numa casa que terá de erguer do zero, que o proteja, que o anime, que o abrigue.
Aproxima-se, preso de uma súbita euforia, da costa aonde continuam a chegar materiais vindos do barco afundado. Tenho de me animar, pensa. tenho de trabalhar, pensa.
E, repentinamente, percebe.
«Oh, caraças, estou tramado! Isto vai ter de ser tudo montado ao calhas», soluça, «é tão difícil, nunca se consegue à primeira», chora, infeliz, adivinhando o trabalho que lhe vão dar as peças que lhe chegam à costa, «Nunca conseguirei», chora ele, «Oh, que horror!»
Que trabalho insano, que dias duros, que dificuldades impossíveis...
«Esta merda é toda do IKEA!!!»
Parte do rosto está mergulhado em água; doem-lhe as pernas, os braços: o que teve de nadar para chegar ali, ao princípio da ilha, àquela areia húmida, àquelas rochas aguçadas!
Robinson sabe, ou calcula mas esse cálculo é como um íntimo saber, que ninguém mais sobreviveu no naufrágio.
Soergue-se, vagaroso. Tudo são músculos duros, presos, ineficazes. Olha o céu imenso, de um imenso azul, riscado de pássaros.
Põe-se de pé, obsreva em redor. É quando, pela primeira vez, lhe passa pela cabeça que vai ter de viver sozinho, como um divorciado, recolher despojos, como um trapeiro - despojos do navio naufragado que as ondas lhe entregam. Há madeiras, há ferros, há utensílios. Começa a pensar num universo que terá de construir a partir de nada, ou de quase nada, começa a pensar numa casa que terá de erguer do zero, que o proteja, que o anime, que o abrigue.
Aproxima-se, preso de uma súbita euforia, da costa aonde continuam a chegar materiais vindos do barco afundado. Tenho de me animar, pensa. tenho de trabalhar, pensa.
E, repentinamente, percebe.
«Oh, caraças, estou tramado! Isto vai ter de ser tudo montado ao calhas», soluça, «é tão difícil, nunca se consegue à primeira», chora, infeliz, adivinhando o trabalho que lhe vão dar as peças que lhe chegam à costa, «Nunca conseguirei», chora ele, «Oh, que horror!»
Que trabalho insano, que dias duros, que dificuldades impossíveis...
«Esta merda é toda do IKEA!!!»
sábado, julho 31, 2010
DAISY, OS DUENDES, OS PORQUÊS.
Daisy começou bem, com uma pergunta que me pareceu particularmente interessante:
DAISY: Pai, por que é que os duendes do Noddy são maus?
EU: Porque gostam de fazer partidas.
DAISY: Porquê?
EU: Porque se divertem assim...
DAISY: Porquê?
EU: Porque ninguém gosta deles.
DAISY: Porquê?
Já percebi que não tenho saída. Está, flagrantemente, na fase dos «porquês?». Porquê? Não sei; sei que estou farto. Mas sinto-me inteligente. Opto por uma solução que me parece engenhosa, ehehe.
EU: Daisy, os duendes são maus porque as mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães das mães deles eram más.
Divirto-me, mas ela percebeu que não saímos disto. Zanga-se. Inicia uma birra. Pede-me que não continue a responder com as mães.
EU: Sim, Daisy. Então, deixa-me explicar de outra maneira. Isto não tem que ver com as mães, de facto. Os duendes do Noddy são maus porque os pais deles eram maus.
DAISY: Porquê?
EU: Porque os pais dos pais deles eram maus.
Daisy percebe imediatamente o meu caminho. Grita. Já estou irritado.
EU: Pronto. Daisy. Então vou-te dar uma resposta definitiva. Mas não podes perguntar-me porquê. Ficas-te com ela. É isto: os duendes do Noddy são maus porque todos os duendes são maus. Porque é da natureza dos duendes serem maus.
DAISY [furiosa]: Mas isso é uma grande mentira, pai. Os duendes do Pai Natal não são maus. São bons. E ajudam o Pai Natal a dar prendas a todos os meninos. Não são maus, são bons.
Calo-me. E calo-me. E calo-me.
DAISY: Pai, por que é que os duendes do Noddy são maus?
EU: Porque gostam de fazer partidas.
DAISY: Porquê?
EU: Porque se divertem assim...
DAISY: Porquê?
EU: Porque ninguém gosta deles.
DAISY: Porquê?
Já percebi que não tenho saída. Está, flagrantemente, na fase dos «porquês?». Porquê? Não sei; sei que estou farto. Mas sinto-me inteligente. Opto por uma solução que me parece engenhosa, ehehe.
EU: Daisy, os duendes são maus porque as mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães deles eram más.
DAISY: Porquê?
EU: Porque as mães das mães das mães deles eram más.
Divirto-me, mas ela percebeu que não saímos disto. Zanga-se. Inicia uma birra. Pede-me que não continue a responder com as mães.
EU: Sim, Daisy. Então, deixa-me explicar de outra maneira. Isto não tem que ver com as mães, de facto. Os duendes do Noddy são maus porque os pais deles eram maus.
DAISY: Porquê?
EU: Porque os pais dos pais deles eram maus.
Daisy percebe imediatamente o meu caminho. Grita. Já estou irritado.
EU: Pronto. Daisy. Então vou-te dar uma resposta definitiva. Mas não podes perguntar-me porquê. Ficas-te com ela. É isto: os duendes do Noddy são maus porque todos os duendes são maus. Porque é da natureza dos duendes serem maus.
DAISY [furiosa]: Mas isso é uma grande mentira, pai. Os duendes do Pai Natal não são maus. São bons. E ajudam o Pai Natal a dar prendas a todos os meninos. Não são maus, são bons.
Calo-me. E calo-me. E calo-me.
ANTÓNIO FEIO
Era bom e generoso. Como actor, foi capaz de fazer coisas muito más, valha a verdade, mas também do melhor. Os diálogos que mantinha com José Pedro Gomes, como Zezé e Toni, dois pintas típicos, cheios de filosofia barata e espírito de observação contundente, eram verdadeiramente impagáveis. E nunca esqueçamos que Feio, na companhia do mesmo José Pedro Gomes, se abalançou a representar O Que Diz Molero, de Dinis Machado, obra difícil e maior da Literatura Portuguesa.
Agarrava-se à vida com unhas e dentes, uma esperança desesperada, uma obstinação e uma teimosia que lhe eram próprias. Não ganhou.
O país, que não só o perdeu como, ainda por cima, continua com Sócrates e Queirós, está deprimidíssimo.
quinta-feira, julho 22, 2010
O CONCURSO DE VERÃO
DN e JN estão ambos publicando, em conjunto, às 3ªs, 5ªs, sábados e domingos, aquilo a que chamam um conjunto de Autores Clássicos da Literatura.
Poderíamos dizer que, simultaneamente, a lista desses autores seleccionados, e de que vão editando obras-primas, tem de ser encarada como um teste, um passatempo, qualquer coisa ao género de «Descubra o Intruso» ou «Que Objecto Não Pertence a esta Série?».
Poderia explicar melhor, mas basta-me apresentar a série:
Lewis Carroll
Oscar Wilde
Eduardo Pitta
Prosper Mérimée
Machado de Assis
Victor Hugo
Carlos Quiroga
Patrick Süskind
Walter Scott
Eça de Queirós
R. L. Stevenson
Marguerite Duras
Leão Tolstoi
Alexandre Herculano
Enid Meadowcroft
Sheridan Le Fanu
Joseph Conrad
Fialho de Almeida
Herman Broch
Arthur Schnitzler
Fiodor Dostoievski
Antoine Saint-Exupéry
D.H. Lawrence
Edgar Allan Poe
Jorge Luís Borges
Henry James
Bram Stoker.
Se quisermos excluir à partida os autores estrangeiros, ficamos com os seguintes portugueses: Eduardo Pitta, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida. O único contemporâneo ou, pelo menos, o autor vivo que consta é, portanto, um senhor chamado Eduardo Pitta. Não Gonçalo M. Tavares (que poderia já ser considerado um «clássico»), não José Luís Peixoto - ou, entre os mais antigos, Mário de Carvalho. (Já não falo de Agustina). Não: Eduardo Pitta. Por que diabo!? A que propósito!? Segundo que critério? Com que argumento!?
Fico indignado. Tento explicar, ao meu filho, a razão desta indignação. «Não vejo outra explicação, senão que o homem tenha sido o próprio responsável pela lista, ou seja amigo ou amante de alguém...»
Meu filho ainda ensaia: «Mas, pai, não pode ser uma questão de gosto? Tu não gostares, mas o senhor que decidiu, achar que é muito bom, tal como tu admitirias o Gonçalo Tavares, que o senhor pode achar que é muito mau?»
Como explicar-lhe que, se o critério é uma lista de "clássicos", Eduardo Pitta não cabe de jeito nenhum, por muitas voltas que se dêem, por critérios dúbios que se inventem? Como explicar-lhe que não faz sentido juntar-se, numa lista de "clássicos" da Literatura, Eduardo Pitta e, por exemplo, Victor Hugo?
«Victor Hugo Cardinalli?», pergunta-me o miúdo. «O dos circos? Olha, eu nem sabia que esse escrevia "clássicos"...»
E eu, frustrado e vencido, calo-me. Calo-me!
Poderíamos dizer que, simultaneamente, a lista desses autores seleccionados, e de que vão editando obras-primas, tem de ser encarada como um teste, um passatempo, qualquer coisa ao género de «Descubra o Intruso» ou «Que Objecto Não Pertence a esta Série?».
Poderia explicar melhor, mas basta-me apresentar a série:
Lewis Carroll
Oscar Wilde
Eduardo Pitta
Prosper Mérimée
Machado de Assis
Victor Hugo
Carlos Quiroga
Patrick Süskind
Walter Scott
Eça de Queirós
R. L. Stevenson
Marguerite Duras
Leão Tolstoi
Alexandre Herculano
Enid Meadowcroft
Sheridan Le Fanu
Joseph Conrad
Fialho de Almeida
Herman Broch
Arthur Schnitzler
Fiodor Dostoievski
Antoine Saint-Exupéry
D.H. Lawrence
Edgar Allan Poe
Jorge Luís Borges
Henry James
Bram Stoker.
Se quisermos excluir à partida os autores estrangeiros, ficamos com os seguintes portugueses: Eduardo Pitta, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida. O único contemporâneo ou, pelo menos, o autor vivo que consta é, portanto, um senhor chamado Eduardo Pitta. Não Gonçalo M. Tavares (que poderia já ser considerado um «clássico»), não José Luís Peixoto - ou, entre os mais antigos, Mário de Carvalho. (Já não falo de Agustina). Não: Eduardo Pitta. Por que diabo!? A que propósito!? Segundo que critério? Com que argumento!?
Fico indignado. Tento explicar, ao meu filho, a razão desta indignação. «Não vejo outra explicação, senão que o homem tenha sido o próprio responsável pela lista, ou seja amigo ou amante de alguém...»
Meu filho ainda ensaia: «Mas, pai, não pode ser uma questão de gosto? Tu não gostares, mas o senhor que decidiu, achar que é muito bom, tal como tu admitirias o Gonçalo Tavares, que o senhor pode achar que é muito mau?»
Como explicar-lhe que, se o critério é uma lista de "clássicos", Eduardo Pitta não cabe de jeito nenhum, por muitas voltas que se dêem, por critérios dúbios que se inventem? Como explicar-lhe que não faz sentido juntar-se, numa lista de "clássicos" da Literatura, Eduardo Pitta e, por exemplo, Victor Hugo?
«Victor Hugo Cardinalli?», pergunta-me o miúdo. «O dos circos? Olha, eu nem sabia que esse escrevia "clássicos"...»
E eu, frustrado e vencido, calo-me. Calo-me!
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quarta-feira, julho 21, 2010
MENTIROSOS
Haroldo P. Frutuoso publicou, em Brasília, nos anos oitenta, uma dissertação académica, na área da sociologia (mas com inescapáveis implicações psicológicas e éticas), acerca da mentira.
A tese é comprometedora. H. P. Frutuoso pega numa afirmação de Kant, segundo a qual «a mentira nunca poderia ser o imperativo categórico», porque uma sociedade «guiada pela mentira», pelo «espírito da mentira», pela aceitação do mentir, como lei absoluta, rapidamente soçobraria. Nunca, numa tal sociedade, se poderia crer numa promessa ou num juramento; nenhum contrato faria sentido ou teria o menor valor. Pega nessa afirmação e inverte-a, perguntando-se: como poderia uma sociedade - qualquer sociedade -, pelo contrário, sobreviver sem a mentira?
A tese faz pensar. Haroldo não defende, naturalmente, que a mentira possa ser aceite como lei. «Isso», escreve na página 130, «seria uma contradição. A natureza da mentira é ser não-lei: sua natureza é, justamente, "enganar", decepcionar a regra, não de frente, mas de modo oculto.»
O que ele, sim, defende, é que um ser que exige, como fundamento último da sua existência, a mentira de um deus que o houvesse criado e o receba em seus braços imateriais após a morte, é um ser que nunca suportaria viver sem a mentira nos diferentes departamentos do seu quotidiano.
Harolodo sustenta que o próprio eu é, reparem, uma "mentira": não existe "eu" senão como mito pessoal de cada um - a consciência que o "sujeito" toma como sendo seu centro e sua sede mais não é do que o frágil bote, mais aparente do que real, em que a pessoa se não sente à mercê de forças inconscientes, a natureza em fúria, o mar agitado. Pede, se estão lembrados, esta imagem emprestada a Schopenhauer.
Mas em termos sociais, pretende Haroldo, todas as relações carecem de um grau maior ou menor de mentira, mais ou menos consciente, para se poderem manter. A verdade é anti-social. A verdade é anti-humana. Se a humanidade inteira coincidisse no cumprimento da regra de "dizer a verdade", e a respeitasse escrupulosamente durante um certo tempo, um instante que fosse, terrível seria o tsunami de catástrofes, suicídios, homicídios que daí adviria...
Espanta-me que se tenha a coragem de publicar uma tese assim. Penso que, a ser o seu conteúdo verdadeiro, preferível seria que nos mentissem acerca disso...
A tese é comprometedora. H. P. Frutuoso pega numa afirmação de Kant, segundo a qual «a mentira nunca poderia ser o imperativo categórico», porque uma sociedade «guiada pela mentira», pelo «espírito da mentira», pela aceitação do mentir, como lei absoluta, rapidamente soçobraria. Nunca, numa tal sociedade, se poderia crer numa promessa ou num juramento; nenhum contrato faria sentido ou teria o menor valor. Pega nessa afirmação e inverte-a, perguntando-se: como poderia uma sociedade - qualquer sociedade -, pelo contrário, sobreviver sem a mentira?
A tese faz pensar. Haroldo não defende, naturalmente, que a mentira possa ser aceite como lei. «Isso», escreve na página 130, «seria uma contradição. A natureza da mentira é ser não-lei: sua natureza é, justamente, "enganar", decepcionar a regra, não de frente, mas de modo oculto.»
O que ele, sim, defende, é que um ser que exige, como fundamento último da sua existência, a mentira de um deus que o houvesse criado e o receba em seus braços imateriais após a morte, é um ser que nunca suportaria viver sem a mentira nos diferentes departamentos do seu quotidiano.
Harolodo sustenta que o próprio eu é, reparem, uma "mentira": não existe "eu" senão como mito pessoal de cada um - a consciência que o "sujeito" toma como sendo seu centro e sua sede mais não é do que o frágil bote, mais aparente do que real, em que a pessoa se não sente à mercê de forças inconscientes, a natureza em fúria, o mar agitado. Pede, se estão lembrados, esta imagem emprestada a Schopenhauer.
Mas em termos sociais, pretende Haroldo, todas as relações carecem de um grau maior ou menor de mentira, mais ou menos consciente, para se poderem manter. A verdade é anti-social. A verdade é anti-humana. Se a humanidade inteira coincidisse no cumprimento da regra de "dizer a verdade", e a respeitasse escrupulosamente durante um certo tempo, um instante que fosse, terrível seria o tsunami de catástrofes, suicídios, homicídios que daí adviria...
Espanta-me que se tenha a coragem de publicar uma tese assim. Penso que, a ser o seu conteúdo verdadeiro, preferível seria que nos mentissem acerca disso...
terça-feira, julho 20, 2010
NÃO TEMOS CHEIRO!? AI NÃO!
Por que razão a nossa percepção é, quase automaticamente, imediatamente - racista?
Porque tende a ocultar, de nós mesmos, as nossas próprias características: é o que torna tão evidentes as características dos outros.
Por outras palavras: habituamo-nos à nossa pele, tal como, na casa de banho, nos habituamos ao nosso mau-cheiro, e não temos consciência deste. Porém, o cheiro dos outros impõe-se-nos.
Duvido que pudéssemos ser ainda racistas, se fizéssemos alguma ideia de como realmente cheiramos ao nariz alheio.
Porque tende a ocultar, de nós mesmos, as nossas próprias características: é o que torna tão evidentes as características dos outros.
Por outras palavras: habituamo-nos à nossa pele, tal como, na casa de banho, nos habituamos ao nosso mau-cheiro, e não temos consciência deste. Porém, o cheiro dos outros impõe-se-nos.
Duvido que pudéssemos ser ainda racistas, se fizéssemos alguma ideia de como realmente cheiramos ao nariz alheio.
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segunda-feira, julho 19, 2010
ANARQUISTA, GRAÇAS A DEUS
Porque não sei de nenhum outro nome para qualificar uma pessoa que defende o que defendo, aceito que me considerem anarquista.
Sou um anarquista heterodoxo, claro. (Pensando bem: se me revisse em alguma ortodoxia, dificilmente faria sentido que me intitulasse "anarquista"). Para começar, porque não prescindo da autoridade - no sentido de autoritas, ou seja, não de um poder que se impõe de cima para baixo, mas de um outro que se manifesta a partir de dentro, emanando do sujeito como expressão do que o dignifica e torna respeitável aos olhos dos outros.
O meu anarquismo não projecta a sua existência em qualquer futuro longínquo. Exerce-se agora e aqui. Não preciso de defrontar o poder do Estado ou combater a força da escola ou da igreja. Não sei nem me interessa saber se o anarquismo é viável como política social. O meu anarquismo é realizado diariamente em microclima. Daí que despreze tanto a acéfala tentativa de se esvaziar os micro-contextos. O universo do meu anarquismo é o grupo - os alunos, os colegas, os amigos. Os clubes, os movimentos. Que triste sina a deste micro-anarquismo, de resto, em tempos de se preferir a cultura dos Mega e do Global à cultura do micro...
O meu anarquismo é só indirectamente uma forma de política. É, primária e directamente, uma forma de ética e de cultura. Consiste nisto: em contexto de grupo, turma, comunidade, procuro que não haja um poder formal, que amesquinhe ou submeta os outros. Uma aula de filosofia é um claro exemplo de anarquia - não porque eu não seja o professor, não porque me não assuma como tal, mas porque todo o meu trabalho se dirige à liberdade de cada um, chama por ela, entende-se com ela, procura-a num terreno de convivência entre liberdades.
Dir-me-ão, e justamente, que, em última análise, as notas existem, e que eu as atribuo. E que se trata, de facto, de um exercício de poder. Dir-me-ão que sou eu quem corrige - nem que seja, afinal, os erros de sintaxe. Dir-me-ão que, portanto, aquilo que designo por "anarquismo" encapota, afinal, um poder. Será, então, uma forma de manipulação.
Mas entenda-se que, nas minhas contradições, na medida em que me cinjo ao sistema, estou, no interior do mesmo, como o moscardo socrático, que não deixa descansar, como o elemento que corrói o sistema ou que, pelo menos, procura fazer crescer a consciência para além do que o sistema pode suportar. Não espero, com isso, que o sistema venha, a prazo, a explodir. Não tenho, repito, um projecto a longo prazo. Mas sou, no sistema, uma consciência extra-sistema. Sou, no planeta Terra, um extra-terrestre. Aponto, indico, abro, rasgo. Exerço. Contesto, critico. Exerço. Não estou, senão aparentemente, ao serviço do Ministério. Na realidade, crio cultura. É o que exerço. Nada de especial, é o que qualquer professor pode fazer, se nem todos o fazem. E onde a cultura não está submetida a lógicas de poder - seja a lógica do Estado, a lógica dos bons-costumes, a lógica, sequer, do mercado -, o que existe é uma sociedade insubmissa, espaço da fruição anarquista.
Eis a minha proposta.
Sou um anarquista heterodoxo, claro. (Pensando bem: se me revisse em alguma ortodoxia, dificilmente faria sentido que me intitulasse "anarquista"). Para começar, porque não prescindo da autoridade - no sentido de autoritas, ou seja, não de um poder que se impõe de cima para baixo, mas de um outro que se manifesta a partir de dentro, emanando do sujeito como expressão do que o dignifica e torna respeitável aos olhos dos outros.
O meu anarquismo não projecta a sua existência em qualquer futuro longínquo. Exerce-se agora e aqui. Não preciso de defrontar o poder do Estado ou combater a força da escola ou da igreja. Não sei nem me interessa saber se o anarquismo é viável como política social. O meu anarquismo é realizado diariamente em microclima. Daí que despreze tanto a acéfala tentativa de se esvaziar os micro-contextos. O universo do meu anarquismo é o grupo - os alunos, os colegas, os amigos. Os clubes, os movimentos. Que triste sina a deste micro-anarquismo, de resto, em tempos de se preferir a cultura dos Mega e do Global à cultura do micro...
O meu anarquismo é só indirectamente uma forma de política. É, primária e directamente, uma forma de ética e de cultura. Consiste nisto: em contexto de grupo, turma, comunidade, procuro que não haja um poder formal, que amesquinhe ou submeta os outros. Uma aula de filosofia é um claro exemplo de anarquia - não porque eu não seja o professor, não porque me não assuma como tal, mas porque todo o meu trabalho se dirige à liberdade de cada um, chama por ela, entende-se com ela, procura-a num terreno de convivência entre liberdades.
Dir-me-ão, e justamente, que, em última análise, as notas existem, e que eu as atribuo. E que se trata, de facto, de um exercício de poder. Dir-me-ão que sou eu quem corrige - nem que seja, afinal, os erros de sintaxe. Dir-me-ão que, portanto, aquilo que designo por "anarquismo" encapota, afinal, um poder. Será, então, uma forma de manipulação.
Mas entenda-se que, nas minhas contradições, na medida em que me cinjo ao sistema, estou, no interior do mesmo, como o moscardo socrático, que não deixa descansar, como o elemento que corrói o sistema ou que, pelo menos, procura fazer crescer a consciência para além do que o sistema pode suportar. Não espero, com isso, que o sistema venha, a prazo, a explodir. Não tenho, repito, um projecto a longo prazo. Mas sou, no sistema, uma consciência extra-sistema. Sou, no planeta Terra, um extra-terrestre. Aponto, indico, abro, rasgo. Exerço. Contesto, critico. Exerço. Não estou, senão aparentemente, ao serviço do Ministério. Na realidade, crio cultura. É o que exerço. Nada de especial, é o que qualquer professor pode fazer, se nem todos o fazem. E onde a cultura não está submetida a lógicas de poder - seja a lógica do Estado, a lógica dos bons-costumes, a lógica, sequer, do mercado -, o que existe é uma sociedade insubmissa, espaço da fruição anarquista.
Eis a minha proposta.
domingo, julho 18, 2010
SMALL IS BEAUTIFULL
De que signo serão as pessoas que "reflectem", no Ministério da Educação?
De onde surge este manancial de ideias grotescas, sem estudo, aprofundamento nenhum, entre um "eduquês" ultrapassado em toda a parte e a obsessão da estatística? De onde vem esta gente? Como se faz ouvir e singra? Com que direito liquida, destrói, desconsidera, esvazia, em nome de uns resultados falsos ou de não sei que raio!?
A minha escola, entre erros e insuficiências, defeitos e conflitos, construiu, ao longo de trinta anos, uma cultura singular, uma dinâmica própria, um projecto vivo. Promove a democracia nas relações entre os órgãos e nos laços entre todas as pessoas, os líderes, os professores, os alunos, os funcionários. Une docentes e discentes em torno de projectos que vingam pela sua força, não pela imagem nem para "fazer bonito" em qualquer tipo de avaliação. Tem, há muitos anos, uma revista premiada, recebeu, ao longo do tempo, intelectuais como Agualusa, Gastão Cruz, Gonçalo M. Tavares, Jorge Leitão Ramos, Pedro Mexia. Há um Clube de Cinema, há um fanzine. Convida políticos. Há professores que entusiasmam os rapazes e as raparigas a cultivarem hortas, das quais consumimos os produtos frescos, e professores de matemática empenhados em ideias e projectos para agarrar alunos e auxiliá-los na difícil aprendizagem das matemáticas.
Com que direito se iria fundir este oásis de espírito e cultura num Mega-Agrupamento, sob uma direcção única, abstracta e desconhecedora, segundo um projecto anónimo e desatento às particularidades e às diferenças?
Com que direito, e por que razão, e com que justificação, se encaixariam vários pequenos viveiros numa massa global, inculta, cumprindo objectivos meramente economicistas ou servindo sedes políticas? A que propósito desfazer a virtude do "micro", dos pequenos universos de sentido, em prol de um Sentido Único, devorador, imposto de cima para baixo, numa imparável e cega marcha de agregação?
Recordando Talleyrand: «É que isso é pior do que um crime! É um erro!»
De onde surge este manancial de ideias grotescas, sem estudo, aprofundamento nenhum, entre um "eduquês" ultrapassado em toda a parte e a obsessão da estatística? De onde vem esta gente? Como se faz ouvir e singra? Com que direito liquida, destrói, desconsidera, esvazia, em nome de uns resultados falsos ou de não sei que raio!?
A minha escola, entre erros e insuficiências, defeitos e conflitos, construiu, ao longo de trinta anos, uma cultura singular, uma dinâmica própria, um projecto vivo. Promove a democracia nas relações entre os órgãos e nos laços entre todas as pessoas, os líderes, os professores, os alunos, os funcionários. Une docentes e discentes em torno de projectos que vingam pela sua força, não pela imagem nem para "fazer bonito" em qualquer tipo de avaliação. Tem, há muitos anos, uma revista premiada, recebeu, ao longo do tempo, intelectuais como Agualusa, Gastão Cruz, Gonçalo M. Tavares, Jorge Leitão Ramos, Pedro Mexia. Há um Clube de Cinema, há um fanzine. Convida políticos. Há professores que entusiasmam os rapazes e as raparigas a cultivarem hortas, das quais consumimos os produtos frescos, e professores de matemática empenhados em ideias e projectos para agarrar alunos e auxiliá-los na difícil aprendizagem das matemáticas.
Com que direito se iria fundir este oásis de espírito e cultura num Mega-Agrupamento, sob uma direcção única, abstracta e desconhecedora, segundo um projecto anónimo e desatento às particularidades e às diferenças?
Com que direito, e por que razão, e com que justificação, se encaixariam vários pequenos viveiros numa massa global, inculta, cumprindo objectivos meramente economicistas ou servindo sedes políticas? A que propósito desfazer a virtude do "micro", dos pequenos universos de sentido, em prol de um Sentido Único, devorador, imposto de cima para baixo, numa imparável e cega marcha de agregação?
Recordando Talleyrand: «É que isso é pior do que um crime! É um erro!»
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UM DEFEITO DO VIZINHO PERFEITO
Há pessoas, não sei, que parece que, para melhor exibir a luz das suas qualidades, têm de diminuir os outros.
Assim sucede com o meu vizinho M., à parte isso, de facto, muito boa pessoa e homem prestativo.
Porém, quando o apresento a alguém - à minha tia, a algum amigo, a certa visita -, se tenho necessidade de lembrar que é uma «espécie de Salvador da Pátria», e recordar como «foi ele que subiu, por uma escada de madeira, ao primeiro andar, para arrancar à casa de banho a minha filha, que se tinha fechado por dentro à chave», etc, etc, etc, raramente não recebo por resposta qualquer coisa a sublinhar um defeito, uma incompetência, um falhanço meus.
No outro dia, apresentava-o à minha mãe, com o sorriso e as fórmulas do costume, Salvador da Pátria, Um vizinho cheio de recursos, etc, etc, etc - e responde-me ele, mirando com desconfiança os pneus do meu automovelzeco:
«Está com os pneus muito em baixo, vizinho. Tem de ver isso, o vizinho não se preocupa com o carro!? Olhe que eu, o meu...!»
Mas a melhor foi de uma vez em que o apresentava já me nem lembro a quem. Blá, blá, blá, Sempre que estou em apuros, aqui o vizinho, e blá, blá, blá.
E ele, estudando-me fixamente o rosto:
«Ó vizinho. O vizinho não sabe fazer a barba!»
Assim sucede com o meu vizinho M., à parte isso, de facto, muito boa pessoa e homem prestativo.
Porém, quando o apresento a alguém - à minha tia, a algum amigo, a certa visita -, se tenho necessidade de lembrar que é uma «espécie de Salvador da Pátria», e recordar como «foi ele que subiu, por uma escada de madeira, ao primeiro andar, para arrancar à casa de banho a minha filha, que se tinha fechado por dentro à chave», etc, etc, etc, raramente não recebo por resposta qualquer coisa a sublinhar um defeito, uma incompetência, um falhanço meus.
No outro dia, apresentava-o à minha mãe, com o sorriso e as fórmulas do costume, Salvador da Pátria, Um vizinho cheio de recursos, etc, etc, etc - e responde-me ele, mirando com desconfiança os pneus do meu automovelzeco:
«Está com os pneus muito em baixo, vizinho. Tem de ver isso, o vizinho não se preocupa com o carro!? Olhe que eu, o meu...!»
Mas a melhor foi de uma vez em que o apresentava já me nem lembro a quem. Blá, blá, blá, Sempre que estou em apuros, aqui o vizinho, e blá, blá, blá.
E ele, estudando-me fixamente o rosto:
«Ó vizinho. O vizinho não sabe fazer a barba!»
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sexta-feira, julho 16, 2010
A SUBTILEZA DOS DINOSSAUROS
Alguns leitores tomarão certamente este título por ironia. Não é o caso.
Há que não subestimar o valor dos dinossauros. Os garotos amam-nos; pedem que lhos comprem em miniaturas maravilhosas, com que encenam terríveis combates; não perdem um filme com os simpáticos monstros pré-históricos. Há miúdos que conhecem os seus variados nomes. Os quartos de todos os putos exibem-nos em posters impressionantes. E não é por obra do acaso que os dinossauros irradiam esse fascínio todo.
Considero-os uma autêntica civilização. Criaram, do ponto de vista da anatomia ou das "competências", quase tudo o que as mais variadas espécies ostentam, hoje, pelo ar, pela terra, pelas águas. Uns quantos puseram-se a voar e, simplifiquemos!, inventaram assim os pássaros; mas havia-os para todos os gostos, até do ponto de vista político, ideológico e filosófico: vegetarianos e carnívoros, senhores e escravos, obesos e anorécticos, com instrumentos e aptidões contrários, aleatoriamente distribuídos, num contínuo teste à adaptação.
Civilizacionalmente, fazem-me lembrar os Antigos Gregos que, no seu tempo, também foram e também inventaram praticamente tudo: sejamos nós cínicos, idealistas, materialistas, sensualistas, atomistas, individualistas ou colectivistas, caramba!, não estamos a fazer nada - como lembra o Adriano de Marguerite Yourcenar - que não tivesse sido, primeiro, uma escolha de algum Antigo Grego.
É por isso que me parece que a evolução não é sempre correcta. Se o progresso tende a simplificar, não estou certo de que essa simplificação seja uma vantagem real: e sei, sobretudo, que aquilo que aparenta ser "demasiado" gigantesco e complicado, como um dinossauro, contém em si uma subtileza, um génio, que a pura eliminação desse todo, ou a sua simplificação, necessariamente farão desaparecer.
Alguém acredita que a música tenha evoluído, de Bach a Luís Represas?
Alguém crê, para além dos criminosos do costume, que a tendência para se acabar com o estudo do Latim, mais os seus casos complicados, que, todavia, apuram e treinam a inteligência e o conhecimento mais profundo da mecânica das línguas vivas, suas herdeiras, pode ser ocupada pelo estudo do Espanhol, agora em voga nas áreas de Línguas e Literaturas?
Alguém está realmente convencido de que, poupar-se, aos jovens estudantes, a leitura obrigatória dos Clássicos da Literatura Portuguesa, na disciplina de Português, seja uma evolução, uma adaptação vantajosa, um progresso real?
Ou que, em resumo, progredimos com a a simplificação rasteira consubstanciada por um acordo ortográfico como este?
Qualquer dinossauro perceberia a estupidez! Mas esses eram mais subtis do que parece. Por isso, em última análise, aliás, desapareceram...
Há que não subestimar o valor dos dinossauros. Os garotos amam-nos; pedem que lhos comprem em miniaturas maravilhosas, com que encenam terríveis combates; não perdem um filme com os simpáticos monstros pré-históricos. Há miúdos que conhecem os seus variados nomes. Os quartos de todos os putos exibem-nos em posters impressionantes. E não é por obra do acaso que os dinossauros irradiam esse fascínio todo.
Considero-os uma autêntica civilização. Criaram, do ponto de vista da anatomia ou das "competências", quase tudo o que as mais variadas espécies ostentam, hoje, pelo ar, pela terra, pelas águas. Uns quantos puseram-se a voar e, simplifiquemos!, inventaram assim os pássaros; mas havia-os para todos os gostos, até do ponto de vista político, ideológico e filosófico: vegetarianos e carnívoros, senhores e escravos, obesos e anorécticos, com instrumentos e aptidões contrários, aleatoriamente distribuídos, num contínuo teste à adaptação.
Civilizacionalmente, fazem-me lembrar os Antigos Gregos que, no seu tempo, também foram e também inventaram praticamente tudo: sejamos nós cínicos, idealistas, materialistas, sensualistas, atomistas, individualistas ou colectivistas, caramba!, não estamos a fazer nada - como lembra o Adriano de Marguerite Yourcenar - que não tivesse sido, primeiro, uma escolha de algum Antigo Grego.
É por isso que me parece que a evolução não é sempre correcta. Se o progresso tende a simplificar, não estou certo de que essa simplificação seja uma vantagem real: e sei, sobretudo, que aquilo que aparenta ser "demasiado" gigantesco e complicado, como um dinossauro, contém em si uma subtileza, um génio, que a pura eliminação desse todo, ou a sua simplificação, necessariamente farão desaparecer.
Alguém acredita que a música tenha evoluído, de Bach a Luís Represas?
Alguém crê, para além dos criminosos do costume, que a tendência para se acabar com o estudo do Latim, mais os seus casos complicados, que, todavia, apuram e treinam a inteligência e o conhecimento mais profundo da mecânica das línguas vivas, suas herdeiras, pode ser ocupada pelo estudo do Espanhol, agora em voga nas áreas de Línguas e Literaturas?
Alguém está realmente convencido de que, poupar-se, aos jovens estudantes, a leitura obrigatória dos Clássicos da Literatura Portuguesa, na disciplina de Português, seja uma evolução, uma adaptação vantajosa, um progresso real?
Ou que, em resumo, progredimos com a a simplificação rasteira consubstanciada por um acordo ortográfico como este?
Qualquer dinossauro perceberia a estupidez! Mas esses eram mais subtis do que parece. Por isso, em última análise, aliás, desapareceram...
quarta-feira, julho 14, 2010
HÁ QUEM NÃO MEREÇA SER DONO DE UM CAFÉ
«Quanto mais cedo vem, menos faz», rosna a senhora de bom aspecto, co-proprietária do cafézito onde, às vezes, pequeno-almoço. Tem bom ar, a senhora, desde que não fale durante muito tempo: se lhe prestamos atenção, percebemos os "fizestes" e os "prontos" com que tudo estraga.
O tipo a que se refere, o tal que «quanto mais cedo vem, menos faz», é o marido: um trombudo desinteressante, careca e com o nariz cheio de peles de uma psoríase (é assim?) galopante. Quando está só ele, serve-me rapidamente, irritado de que o incomodem, e torna a sentar-se a uma das suas mesas fazendo palavras cruzadas.
As palavras da senhora vieram-me à memória. Faltava-me uma bica, eram praí já umas dez horas, e o café fechado.
Fui a outro, num primeiro andar, com uma varanda-esplanada e uma outra senhora que arranja as sandes de queijo com as mãos nuas.
E quem vejo, sentado na varanda-esplanada, lendo vários jornais, chupando o seu galão e fumando cigarros?
Nem mais. O «Zé». Que não gosta, realmente, de trabalhar - prefere gastar: então, com um café próprio, e vai tomar café a outro lado?
O tipo a que se refere, o tal que «quanto mais cedo vem, menos faz», é o marido: um trombudo desinteressante, careca e com o nariz cheio de peles de uma psoríase (é assim?) galopante. Quando está só ele, serve-me rapidamente, irritado de que o incomodem, e torna a sentar-se a uma das suas mesas fazendo palavras cruzadas.
As palavras da senhora vieram-me à memória. Faltava-me uma bica, eram praí já umas dez horas, e o café fechado.
Fui a outro, num primeiro andar, com uma varanda-esplanada e uma outra senhora que arranja as sandes de queijo com as mãos nuas.
E quem vejo, sentado na varanda-esplanada, lendo vários jornais, chupando o seu galão e fumando cigarros?
Nem mais. O «Zé». Que não gosta, realmente, de trabalhar - prefere gastar: então, com um café próprio, e vai tomar café a outro lado?
sexta-feira, julho 02, 2010
A CONSPIRAÇÃO
«A mim não me enganam», jura-nos, num café, certa mulher de alguma idade, os óculos refulgindo lúcida e severamente. Não fala com ninguém em particular, pelo que, queira eu ou não, tenho de me considerar, como os demais, um interlocutor em potência. Faço o meu sorriso estúpido destas ocasiões e vou assentindo com a cabeça.
«O Queirós», prossegue ela, «tem qualquer coisa contra Portugal. Aquilo é vingança antiga. Ou então estão a pagar-lhe. Ou as duas coisas, estão a pagar-lhe, e bem!, porque ele estava de candeias às avessas com o país; pagaram-lhe para ele conseguir que a selecção não fosse longe. Não viram os disparates todos que o homem fez? Mandou embora o Deco, pôs o Ronaldo a jogar sempre fora do lugar, quase não metia o levezinho do Sporting, trocou o Hugo Almeida quando ele estava no melhor...»
Pondero, com uma súbita atenção nos ouvidos. E ela, deduzindo com rigor toda a trama da maquiavélica traição de Queirós:
«E eles sabem isso tudo, eles lá sabem uns dos outros, não se lembram de que o Mourinho veio dizer que a selecção não ganhava nem com o Ronaldo a correr a mil a hora? Ora aí está. O Mourinho sabe o que diz, por alguma razão o disse, ele lá sabia qualquer coisa...»
Não deixa de ser uma explicação. E, pensando bem, é talvez mais lógica do que a ideia de que alguém possa, sem qualquer razão, por si só, ser tão mau, tão mau, tão mau como o Queirós foi. Enfim, alguém que ganhe algo com esta derrota!
Eu ando adormecido. Felizmente que, às vezes, aparece um português lúcido para me abrir os olhinhos.
«O Queirós», prossegue ela, «tem qualquer coisa contra Portugal. Aquilo é vingança antiga. Ou então estão a pagar-lhe. Ou as duas coisas, estão a pagar-lhe, e bem!, porque ele estava de candeias às avessas com o país; pagaram-lhe para ele conseguir que a selecção não fosse longe. Não viram os disparates todos que o homem fez? Mandou embora o Deco, pôs o Ronaldo a jogar sempre fora do lugar, quase não metia o levezinho do Sporting, trocou o Hugo Almeida quando ele estava no melhor...»
Pondero, com uma súbita atenção nos ouvidos. E ela, deduzindo com rigor toda a trama da maquiavélica traição de Queirós:
«E eles sabem isso tudo, eles lá sabem uns dos outros, não se lembram de que o Mourinho veio dizer que a selecção não ganhava nem com o Ronaldo a correr a mil a hora? Ora aí está. O Mourinho sabe o que diz, por alguma razão o disse, ele lá sabia qualquer coisa...»
Não deixa de ser uma explicação. E, pensando bem, é talvez mais lógica do que a ideia de que alguém possa, sem qualquer razão, por si só, ser tão mau, tão mau, tão mau como o Queirós foi. Enfim, alguém que ganhe algo com esta derrota!
Eu ando adormecido. Felizmente que, às vezes, aparece um português lúcido para me abrir os olhinhos.
terça-feira, junho 29, 2010
CHIPS, SÓ NOS CÃES!
A quem interesse a minha pindérica e desinformada perspectiva, devo dizer que sou avesso a essa ideia de começar a apoiar tecnologicamente as decisões do árbitro. Televisões e chips para ter a certeza de que a bola entrou ou de que um "atleta" (como diria Scolari) está fora-de-jogo? Valha-me Deus! Começa-se assim e, já agora, eliminem o árbitro. Põe-se um tipo sentado diante de um ecrã, com um computador, a fazer cálculos de trajectórias e de intersecções e a estabelecer medidas irrefutáveis. Epá, não sejam ridículos!
E agora vem o contra-argumento que os amigos da tecnologia têm por irrefutável. Os árbitros cometem erros.
Sim, já sabemos. Sim, temos visto. Alguns deles até são comprados, mas, e depois!? Encarem a coisa assim: os erros dos árbitros fazem parte do jogo, são algumas das incontáveis probabilidades de que ganhe A ou B: são tão apaixonantes como os erros dos jogadores, a bola que foi à trave, o guarda-redes que teve uma crise de estrabismo no momento em que devia saltar para a esquerda.
Um computador? E, nesse caso, a quem chamávamos nomes? Ao computador!?!? «Vê-se mesmo que a tua mãe computa!»? E perdíamos a possibilidade de ver o espectáculo divertido que é um homenzinho, às vezes de alguma idade e de alguma barriga, mas também de calçõezitos, a tirar, do bolso, cartões de cores? E a apitar!?
O futebol que evolua para onde quiser. Mas não substituam os árbitros por instrumentos sofisticados. Um árbitro quer-se assim: sem sofisticação nenhuma e a errar grosseiramente, que é para dar mais alma ao futebol.
E agora vem o contra-argumento que os amigos da tecnologia têm por irrefutável. Os árbitros cometem erros.
Sim, já sabemos. Sim, temos visto. Alguns deles até são comprados, mas, e depois!? Encarem a coisa assim: os erros dos árbitros fazem parte do jogo, são algumas das incontáveis probabilidades de que ganhe A ou B: são tão apaixonantes como os erros dos jogadores, a bola que foi à trave, o guarda-redes que teve uma crise de estrabismo no momento em que devia saltar para a esquerda.
Um computador? E, nesse caso, a quem chamávamos nomes? Ao computador!?!? «Vê-se mesmo que a tua mãe computa!»? E perdíamos a possibilidade de ver o espectáculo divertido que é um homenzinho, às vezes de alguma idade e de alguma barriga, mas também de calçõezitos, a tirar, do bolso, cartões de cores? E a apitar!?
O futebol que evolua para onde quiser. Mas não substituam os árbitros por instrumentos sofisticados. Um árbitro quer-se assim: sem sofisticação nenhuma e a errar grosseiramente, que é para dar mais alma ao futebol.
domingo, junho 27, 2010
É A ECONOMIA, ESTÚPIDO!
Nunca fui um incondicional adepto de Isabel Alçada. Já me vinha dos seus livros, de que não era grande apreciador. Mas a verdade é que, quando a vi no cargo novo, não pude deixar de pensar para mim próprio: Vai ser outra loiça! É uma escritora! É uma intelectual!
Ao estilo de argumentação do engenheiro Sócrates já me habituara. Dali não se espera a verdade, mas a falácia eficaz, ou seja, sem especiais preocupações de subtileza. Julguei que, pelo menos nesse aspecto, a ministra da Educação viesse a ser diferente.
Descubro que não. Que, no governo, existe uma espécie de contaminação. Que um certo estilo de argumentar, que não hesita em distorcer ou esconder as razões mais óbvias, se impõe rapidamente a todos os membros, com tiques idênticos e quase as mesmas palavras.
A questão não é, aqui, a da política que escolhem. A política parece-me péssima, mas se é a que têm para dar ao povo português, certamente será por um certo número de razões: não precisam de as esconder, apresentem-nas. Deixem que as discutam. São motivos económicos? Digam isso! Dizem respeito à crise? Há que poupar? Digam-no - mas não façam passar essas razões económicas por outras de outra ordem: políticas, éticas, pedagógicas. É feio. É falso.
Já ouviram o discurso da senhora ministra acerca do que a motiva a fechar escolas? É um primor de falácia e falsidade. É uma obra-prima de manipulação.
Ao estilo de argumentação do engenheiro Sócrates já me habituara. Dali não se espera a verdade, mas a falácia eficaz, ou seja, sem especiais preocupações de subtileza. Julguei que, pelo menos nesse aspecto, a ministra da Educação viesse a ser diferente.
Descubro que não. Que, no governo, existe uma espécie de contaminação. Que um certo estilo de argumentar, que não hesita em distorcer ou esconder as razões mais óbvias, se impõe rapidamente a todos os membros, com tiques idênticos e quase as mesmas palavras.
A questão não é, aqui, a da política que escolhem. A política parece-me péssima, mas se é a que têm para dar ao povo português, certamente será por um certo número de razões: não precisam de as esconder, apresentem-nas. Deixem que as discutam. São motivos económicos? Digam isso! Dizem respeito à crise? Há que poupar? Digam-no - mas não façam passar essas razões económicas por outras de outra ordem: políticas, éticas, pedagógicas. É feio. É falso.
Já ouviram o discurso da senhora ministra acerca do que a motiva a fechar escolas? É um primor de falácia e falsidade. É uma obra-prima de manipulação.
QUASE TUDO PODE SER UM BOM MOTIVO DE OPTIMISMO
Levo o lixo para reciclar.
Observo que a caixa em que transporto as garrafas (de cerveja e de vinho, principalmente) pesa menos do que aquela em que levo o papel.
Presumo que seja um bom sinal.
Observo que a caixa em que transporto as garrafas (de cerveja e de vinho, principalmente) pesa menos do que aquela em que levo o papel.
Presumo que seja um bom sinal.
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ao que um gajo se agarra em tempos de crise
ENTRE TALENTO E INSENSATEZ
Duarte dependurou, do gradeamento da varanda, duas gravatas minhas, às quais amarrou um banco de crianças - e assim inventou um baloiço de bonecas para a irmã.
Ainda não decidi se o elogie, se lhe ralhe.
Ainda não decidi se o elogie, se lhe ralhe.
quinta-feira, junho 24, 2010
SARAMAGO & CAVACO
Tão simples como isto: Cavaco não compareceu no funeral de Saramago.
Falo com toda a sinceridade de que disponho: acho bem.
Sucede que, neste caso, Cavaco Silva escolheu sem constrangimentos porque já sabia que, qualquer que fosse a sua decisão, acabaria sendo crucificado em nome dela.
Pôde, assim, optar sem peso, guiando-se unicamente pelos seus motivos e pelas suas razões.
Dir-me-ão: um Presidente da República é mais do que o cidadão concreto Aníbal Cavaco Silva. E a sua ausência enquanto presidente constituiu um derradeiro insulto ao Nobel português.
Não estou de acordo. Primeiramente, porque essa separação não pode ser feita. Quando o presidente comparece a uma cerimónia, não deixou o cidadão Aníbal Cavaco Silva sozinho em casa. Leva-o junto, como certos pais que não têm com quem deixar os filhos. Segundamente, porque não vejo na sua ausência uma diatribe, um acto de desprezo. Mais facilmente veria o cumprimento da úlima vontade do falecido. Pois não fora o próprio Saramago a dizer que, a partir da afronta que lhe haviam feito, nunca mais estaria onde Cavaco estivesse, e cuidaria de fazer com que Cavaco não fosse aonde ele estaria?
Cavaco Silva ter ido ao funeral seria, isso sim, um desrespeito. E um oportunismo. Seria o espectáculo infame de um presidente a usar, como bandeira, e para sua glória pessoal, o nome de uma pessoa que o não suportava.
Não vejo na ausência do Presidente um acto de desprezo. Vejo, pelo contrário, um acto de respeito. Este senhor não gostava de mim, pois não me terá a ensombrar-lhe o funeral.
Cavaco fez bem. Não perdeu com isso o país, não perdeu Saramago, não perdeu Pilar.
E, vá, que a vida continue!
Falo com toda a sinceridade de que disponho: acho bem.
Sucede que, neste caso, Cavaco Silva escolheu sem constrangimentos porque já sabia que, qualquer que fosse a sua decisão, acabaria sendo crucificado em nome dela.
Pôde, assim, optar sem peso, guiando-se unicamente pelos seus motivos e pelas suas razões.
Dir-me-ão: um Presidente da República é mais do que o cidadão concreto Aníbal Cavaco Silva. E a sua ausência enquanto presidente constituiu um derradeiro insulto ao Nobel português.
Não estou de acordo. Primeiramente, porque essa separação não pode ser feita. Quando o presidente comparece a uma cerimónia, não deixou o cidadão Aníbal Cavaco Silva sozinho em casa. Leva-o junto, como certos pais que não têm com quem deixar os filhos. Segundamente, porque não vejo na sua ausência uma diatribe, um acto de desprezo. Mais facilmente veria o cumprimento da úlima vontade do falecido. Pois não fora o próprio Saramago a dizer que, a partir da afronta que lhe haviam feito, nunca mais estaria onde Cavaco estivesse, e cuidaria de fazer com que Cavaco não fosse aonde ele estaria?
Cavaco Silva ter ido ao funeral seria, isso sim, um desrespeito. E um oportunismo. Seria o espectáculo infame de um presidente a usar, como bandeira, e para sua glória pessoal, o nome de uma pessoa que o não suportava.
Não vejo na ausência do Presidente um acto de desprezo. Vejo, pelo contrário, um acto de respeito. Este senhor não gostava de mim, pois não me terá a ensombrar-lhe o funeral.
Cavaco fez bem. Não perdeu com isso o país, não perdeu Saramago, não perdeu Pilar.
E, vá, que a vida continue!
quarta-feira, junho 16, 2010
QUEIROZ
Sejamos justos:
O Queiroz tem tido algum azar.
Tem, basicamente, o azar de ser ele o seleccionador nacional.
O Queiroz tem tido algum azar.
Tem, basicamente, o azar de ser ele o seleccionador nacional.
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TRISTEZAS DE PORTUGAL NO MUNDO
quarta-feira, junho 09, 2010
NADA DE NOVO SOB O SOL
Esta noite, sonhei que escrevia no Kaostico.
E, juro-vos, todas as ideias que me vinham à mente eram puramente brilhantes.
Quando acordei, lembrava-me de uma ou duas.
E, juro-vos, nenhuma delas era grande coisa.
Conclusão: o sonho acrescenta fé.
Tive outros sonhos. O sonho não sobrevive à transição para a realidade. Recordo-me, acordado, do que em sonho me entusiasmara tanto, e pergunto-me: O quê, era só isto?
Conclusão: a realidade retira fé.
Talvez não fosse mau vivermos no sonho e, à noite, acordarmos um tempo para repousar.
E, juro-vos, todas as ideias que me vinham à mente eram puramente brilhantes.
Quando acordei, lembrava-me de uma ou duas.
E, juro-vos, nenhuma delas era grande coisa.
Conclusão: o sonho acrescenta fé.
Tive outros sonhos. O sonho não sobrevive à transição para a realidade. Recordo-me, acordado, do que em sonho me entusiasmara tanto, e pergunto-me: O quê, era só isto?
Conclusão: a realidade retira fé.
Talvez não fosse mau vivermos no sonho e, à noite, acordarmos um tempo para repousar.
quinta-feira, junho 03, 2010
VISITANDO UMA CASA
Ao vivo, a cores, a moradia pareceu-me imediatamente mais bonita - o que é um caso raro - do que nas fotografias da agência. Se chegássemos a acordo, seria a primeira casa a sério onde moraríamos juntos, eu, Marta e a criança que, por enquanto, morava gratuitamente em Marta: no interior de seu ventre arredondado.
O senhor da agência, ridículo na minúscula gravata de canários, no suor e na ânsia de agradar, ia desvendando qualidades invisíveis, apontando oportunidades em cada recanto.
A dona da casa lembrava uma estaca, seguindo-nos, colada a nós, como se perguntasse «Será agora? Será desta?»; só o dono, em camisola interior e capachinho, se diria deprimido: era um homem magro e triste, que sorria pouco e a quem a vida pouco devia ter sorrido.
De repente, disse, com uma voz inesperadamente aguda:
- Os senhores fazem um mau negócio. A casa está cheia de humidade. Nem é preciso olhar para as manchas, basta sentir. Não vêem, ou não sentem, que estas paredes são blocos de humidade com uma demão de cal?
Fez-se um silêncio demorado.
Podíamos ter tomado as suas palavras como uma piada, mas não nos atrevemos; ou podíamos simplesmente ter fingido não as haver ouvido, como quando alguém solta um incómodo e inconveniente flato. Todavia, aquele silêncio não deixava dúvidas: ouvíramos bem.
O senhor da agência prosseguiu a caminhada. Os seus sapatos, com solas de borracha, chiavam no chão. Optou, quanto a mim bem - embora através de uma série de disparates - por ir diminuindo o que fora dito pelo outro:
- A humidade é até uma vantagem. As pessoas pensam que não. Era como quando se dizia que o azeite fazia mal, e agora já se percebeu que é um fio de saúde. Pois cada vez mais se sabe que os climas húmidos são os mais saudáveis. E olhem, hã? Que tal? Esta vista!? Que me dizem? Venham, venham, deixem-me abrir... ham... ui... esta janela e, hã?, que vos dizia? Gozem esta paisagem única...
- Não se deixem enganar -, aflautou o dono. - Vão construir prédios à volta! A vista vai desaparecer daqui mais depressa do que uma lebre.
- Desculpe lá, mas não entendo -, agrediu o senhor da agência. - Por acaso enlouqueceu?
- Mário! .- admoestava a mulher, com nítido atraso.
- Se continua nisso, vou-me embora. Assim não posso trabalhar. Nunca vi uma coisa destas. Quer vender? Quer vender? Quer vender ou não? Quer vender?
Novo silêncio.
E o homem, na sua flauta teimosa, mais forte do que ele próprio:
- A casa está mal-assombrada. Nunca consegui cá dormir uma noite completa. Nem pensar. Gostam de fantasmas? Isto está cheio de fantasmas, toda a noite, toda a noite. Fantasmas, fantasmas, fantasmas...
O senhor da agência, ridículo na minúscula gravata de canários, no suor e na ânsia de agradar, ia desvendando qualidades invisíveis, apontando oportunidades em cada recanto.
A dona da casa lembrava uma estaca, seguindo-nos, colada a nós, como se perguntasse «Será agora? Será desta?»; só o dono, em camisola interior e capachinho, se diria deprimido: era um homem magro e triste, que sorria pouco e a quem a vida pouco devia ter sorrido.
De repente, disse, com uma voz inesperadamente aguda:
- Os senhores fazem um mau negócio. A casa está cheia de humidade. Nem é preciso olhar para as manchas, basta sentir. Não vêem, ou não sentem, que estas paredes são blocos de humidade com uma demão de cal?
Fez-se um silêncio demorado.
Podíamos ter tomado as suas palavras como uma piada, mas não nos atrevemos; ou podíamos simplesmente ter fingido não as haver ouvido, como quando alguém solta um incómodo e inconveniente flato. Todavia, aquele silêncio não deixava dúvidas: ouvíramos bem.
O senhor da agência prosseguiu a caminhada. Os seus sapatos, com solas de borracha, chiavam no chão. Optou, quanto a mim bem - embora através de uma série de disparates - por ir diminuindo o que fora dito pelo outro:
- A humidade é até uma vantagem. As pessoas pensam que não. Era como quando se dizia que o azeite fazia mal, e agora já se percebeu que é um fio de saúde. Pois cada vez mais se sabe que os climas húmidos são os mais saudáveis. E olhem, hã? Que tal? Esta vista!? Que me dizem? Venham, venham, deixem-me abrir... ham... ui... esta janela e, hã?, que vos dizia? Gozem esta paisagem única...
- Não se deixem enganar -, aflautou o dono. - Vão construir prédios à volta! A vista vai desaparecer daqui mais depressa do que uma lebre.
- Desculpe lá, mas não entendo -, agrediu o senhor da agência. - Por acaso enlouqueceu?
- Mário! .- admoestava a mulher, com nítido atraso.
- Se continua nisso, vou-me embora. Assim não posso trabalhar. Nunca vi uma coisa destas. Quer vender? Quer vender? Quer vender ou não? Quer vender?
Novo silêncio.
E o homem, na sua flauta teimosa, mais forte do que ele próprio:
- A casa está mal-assombrada. Nunca consegui cá dormir uma noite completa. Nem pensar. Gostam de fantasmas? Isto está cheio de fantasmas, toda a noite, toda a noite. Fantasmas, fantasmas, fantasmas...
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