Quando o gigante desdentado os encurralou num beco - obviamente - sem saída, tudo o que Alvarinho, de oito anos, se lembrou de dizer para o assustar, consistiu nisto:
«Não se meta connosco. Olhe que aqui o meu amigo é um poderoso feiticeiro...»
Idiotamente, porém, a reacção de Artur, seu companheiro, resumiu-se a:
«Qual teu amigo?!»
«Tu, Artur. És um poderoso feiticeiro, pois és?», (e piscava-lhe o olho, procurando envolvê-lo na artimanha para enganar o gigante).
«Eu?», espantou-se o inocente. O parvo.
«Sim. O senhor afaste-se de nós», mas o gigante aproximava-se, rindo com umas gargalhadas que, expelidas das entranhas, eram lançadas por aquele buraco negro, a sua bocarra sem dentes, «nem mais um passo, eu não torno a avisar», até que, por fim, definitivo, «está perdido!». E exortou: «Vá, Artur, diz as palavras mágicas!»
Nada mais ocorreu a Artur senão:
«Um, dois, três, macaquinho chinês!»
Alvarinho ficou aterrado.
Aterrado. Fora demasiado forte. Chegava a ter pena do gigante, transformado num macaquinho sem dentes e de olhos amendoados.
quarta-feira, dezembro 23, 2009
sexta-feira, dezembro 11, 2009
DA SÚBITA METAMORFOSE DO MAU EM BOM
A desculpa para as minhas madrugadas é "evitar" o trânsito.
A verdadeira razão, porém, é uma antiga neurose. A esta, associa-se o raro prazer de chegar ao local dos deveres e tarefas, quaisquer que sejam, com uma antecedência longa, sossegada, demorada.
Por estes dias, tenho vindo primeiro a um café.
O sítio é pequeno e esconso. As mesas são particularmente feias.
Há, como fundo, a rádio renascença. Nada, portanto, podia ser pior do que este conjunto de ingredientes. Ouve-se Sarsfield Cabral comentado as finanças do país, e um locutor de voz preciosa deixando «no ar» um enigma. Repito: que poderia ser pior?
Os clientes assustam-me: não tanto o cigano que me olha fixamente, mas a velha que treme, incapaz de me olhar fixamente, de fazer fixamente o que quer que seja.
E, de repente, põem-me o chá a ferver à frente. E na madrugada gelada, a chávena com que aqueço as mãos, com um estranho arrepio de calor, o líquido que sinto molhar-me a língua e descer, como fogo, pelas diversas partes do meu corpo, o jornal a que vou lançando um olhar distraído, a conversa básica, sem o menor interesse ou consequências, que mantenho com o proprietário madeirense, salvam a manhã, justificam o momento, dão um inesperado rascunho de sentido à existência, redimem-me.
Sinto-me forte. Estou salvo e feliz.
A verdadeira razão, porém, é uma antiga neurose. A esta, associa-se o raro prazer de chegar ao local dos deveres e tarefas, quaisquer que sejam, com uma antecedência longa, sossegada, demorada.
Por estes dias, tenho vindo primeiro a um café.
O sítio é pequeno e esconso. As mesas são particularmente feias.
Há, como fundo, a rádio renascença. Nada, portanto, podia ser pior do que este conjunto de ingredientes. Ouve-se Sarsfield Cabral comentado as finanças do país, e um locutor de voz preciosa deixando «no ar» um enigma. Repito: que poderia ser pior?
Os clientes assustam-me: não tanto o cigano que me olha fixamente, mas a velha que treme, incapaz de me olhar fixamente, de fazer fixamente o que quer que seja.
E, de repente, põem-me o chá a ferver à frente. E na madrugada gelada, a chávena com que aqueço as mãos, com um estranho arrepio de calor, o líquido que sinto molhar-me a língua e descer, como fogo, pelas diversas partes do meu corpo, o jornal a que vou lançando um olhar distraído, a conversa básica, sem o menor interesse ou consequências, que mantenho com o proprietário madeirense, salvam a manhã, justificam o momento, dão um inesperado rascunho de sentido à existência, redimem-me.
Sinto-me forte. Estou salvo e feliz.
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minúsculos momentos de Glória
quinta-feira, dezembro 10, 2009
BRILHANTE DISCURSO NA RECEPÇÃO DE AMIGOS A UMA CASA QUE NÃO FOI LIMPA
«Entrem, entrem, meus amigos. Não reparem, está tudo desarrumado, não aspirei a casa, esta é a minha maneira de vos dizer que sinto, realmente, que estou a receber amigos, para mim não se trata de "visitas", se me tivesse posto a limpar o pó estaria a fazer cerimónia, nada disso, estão em vossa casa, não escorregues nessa pilha de livros, espera, e tu não te sentes em cima das minhas cuecas, se quiserem arrumar vocês, estejam à vontade, a casa é vossa, meus amigos, queridos amigos meus, que saudade!»
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e como raio querem que classifique isto?
quarta-feira, novembro 18, 2009
SOBRE DOIS ASSUNTOS
Primeiro, um comentário sem importância:
Diziam-me, hoje, que Portugal iria ter um grande problema - o mau estado do relvado no estádio em que decorrerá o jogo.
Portugal tem, penso eu, um problema muito maior: que o senhor Queirós esteja a favor da selecção portuguesa.
Seguidamente, um comentário muito sério:
Afirmam pessoas de responsabilidade que não está provada a relação entre a vacinação, contra a gripe A, de mães grávidas, e a morte dos fetos. E, como não está provada essa relação, seria precipitado admiti-la.
Ando eu a ensinar, aos meus alunos do 11º ano, que existe uma falácia chamada «ad ignorantiam», cujo mecanismo consiste em argumentar assim: como ninguém conseguiu provar que isto é de uma certa forma, conclui-se que a inversa é verdadeira.
Alguém demonstrou que Deus existe? Não? Ora muito bem! Isso demonstra que não existe.
Ou:
Alguém provou que a vacina contra a gripe A em grávidas afecta os fetos? Não? Ora aí está. Quer dizer que não afecta.
Que país, caraças! Que país!
Diziam-me, hoje, que Portugal iria ter um grande problema - o mau estado do relvado no estádio em que decorrerá o jogo.
Portugal tem, penso eu, um problema muito maior: que o senhor Queirós esteja a favor da selecção portuguesa.
Seguidamente, um comentário muito sério:
Afirmam pessoas de responsabilidade que não está provada a relação entre a vacinação, contra a gripe A, de mães grávidas, e a morte dos fetos. E, como não está provada essa relação, seria precipitado admiti-la.
Ando eu a ensinar, aos meus alunos do 11º ano, que existe uma falácia chamada «ad ignorantiam», cujo mecanismo consiste em argumentar assim: como ninguém conseguiu provar que isto é de uma certa forma, conclui-se que a inversa é verdadeira.
Alguém demonstrou que Deus existe? Não? Ora muito bem! Isso demonstra que não existe.
Ou:
Alguém provou que a vacina contra a gripe A em grávidas afecta os fetos? Não? Ora aí está. Quer dizer que não afecta.
Que país, caraças! Que país!
segunda-feira, novembro 16, 2009
O QUE ME NÃO ANDA CÁ A CHEIRAR BEM
Bem sei que, para manter a prudência e não arvorar uma atitude desmoralizadora, seria exigível não dizer, ainda, mal da nova ministra da Educação.
Dou de barato que houve um equívoco, e não uma mentira, quando afirmou, de manhã, que não fora convidada para o governo e, nessa mesma tarde, se apresentava ao presidente como nova ministra.
Dou de barato que - a questão de anunciar, como tendo um mestrado (ou doutoramento) realizado numa universidade de Boston o que, pelos vistos, não foi senão um cursozeco de Verão com a duração de dois meses, seja um pormenor de somenos importância.
E agrada-me que receba os sindicalistas com uma postura agradável, distribuindo beijinhos e sentando-se diante deles, ao invés de, como fazia a anterior senhora ministra, se colocar altivamente à cabeceira da mesa.
São gestos, são sinais.
Pelos vistos, funcionam: os sindicalistas saem das reuniões muito satisfeitos, garantindo que este é «o princípio do fim do modelo», que tudo mudou, que a avaliação irá ser substituída.
No entanto, devo confessar, é precisamente essa alegria esfuziante dos sindicalistas que me preocupa. Porque, quando os oiço falar, tudo parece resolvido. Mas quando oiço a ministra, senhora dona Alçada, não detecto, não detectei por enquanto nenhum sinal que explique essa alegria.
Vejo-a simpática, mas não a oiço dizer que o modelo em causa está pronto para ir para o cesto de papéis. Pelo contrário, a senhora afirma que não se pode falar em suspensão; que há que aproveitar o que já está feito...
E, portanto, cheira-me a que, nesta história mal contada, alguém anda a fazer papel de tolo.
Serão os senhores sindicalistas? Ou eu não estou a ver bem?
Por uma vez, preferia que se viesse a perceber que o tolo era eu!
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escolices,
justificações e insinuações
domingo, novembro 15, 2009
A INVASÃO
Surgiu, primeiro, uma delas, muito negra e luzidia. Parecia atarantada. Rodava, rodava pelo soalho, e desapareceu.
Nessa tarde, já se viam duas ou três. «As batedoras», pensei.
Detestamos ter baratas em casa, mas não eram baratas. Detestamos as moscas, pelo verão: não eram moscas; detestamos as melgas, com o seu zumbido suicida, porque previnem as pessoas «Estamos aqui, vá, toca a acordar, enrola um jornal, caça-nos!». Mas também não eram melgas.
Depois, quando ainda as não levávamos sério, deu-se a invasão. Como formigas, mas demasiado grandes para ser formigas, demasiado exactas nos seus movimentos colectivos, demasiado poderosas e seguindo ordens numa linguagem que não entendíamos.
Lição: comer na sala pode provocar uma invasão alienígena.
Nessa tarde, já se viam duas ou três. «As batedoras», pensei.
Detestamos ter baratas em casa, mas não eram baratas. Detestamos as moscas, pelo verão: não eram moscas; detestamos as melgas, com o seu zumbido suicida, porque previnem as pessoas «Estamos aqui, vá, toca a acordar, enrola um jornal, caça-nos!». Mas também não eram melgas.
Depois, quando ainda as não levávamos sério, deu-se a invasão. Como formigas, mas demasiado grandes para ser formigas, demasiado exactas nos seus movimentos colectivos, demasiado poderosas e seguindo ordens numa linguagem que não entendíamos.
Lição: comer na sala pode provocar uma invasão alienígena.
terça-feira, novembro 03, 2009
DAISY VAI AO SENHOL DOUTOL
Daisy, que tem tido sintomas gripais, foi há poucos dias ao médico.
Já agora, o grande defeito da minha filha, em termos de linguagem, reside, actualmente, na pronúncia do «r».
Durante algum tempo, no lugar do «r» havia um vazio: «Magaída» por «Margarida», «Quato» por «Quarto», «Pato» por «Prato» e, bom, parece-me que já perceberam a ideia.
Mais tarde, trocava-o por um «l»: «Qualto», por exemplo, como se fosse uma chinesinha a falar.
Agora, mais estranho e cada vez mais complicado, já ao nível do poço da morte em termos de linguagem, substitui o «r» por um... «s»; nunca tal ouvira a ninguém: «Quasto» em vez de «Quarto».
O médico, no consultório, fazia-lhe perguntas. E Daisy respondia, conversava, explicava-se - sempre com trapalhadas nos «r», ora um hiato no lugar da consoante, ora uma consoante diferente.
Até que eu, desatento mas preocupado, senti necessidade de clarificar:
- Ela não há maneira de dizer os «r», Sr. Dr...
Resposta do careca:
- Oga, oga! Não se pgeocupe, que com o tempo acabagá pog dizê-los...
Já agora, o grande defeito da minha filha, em termos de linguagem, reside, actualmente, na pronúncia do «r».
Durante algum tempo, no lugar do «r» havia um vazio: «Magaída» por «Margarida», «Quato» por «Quarto», «Pato» por «Prato» e, bom, parece-me que já perceberam a ideia.
Mais tarde, trocava-o por um «l»: «Qualto», por exemplo, como se fosse uma chinesinha a falar.
Agora, mais estranho e cada vez mais complicado, já ao nível do poço da morte em termos de linguagem, substitui o «r» por um... «s»; nunca tal ouvira a ninguém: «Quasto» em vez de «Quarto».
O médico, no consultório, fazia-lhe perguntas. E Daisy respondia, conversava, explicava-se - sempre com trapalhadas nos «r», ora um hiato no lugar da consoante, ora uma consoante diferente.
Até que eu, desatento mas preocupado, senti necessidade de clarificar:
- Ela não há maneira de dizer os «r», Sr. Dr...
Resposta do careca:
- Oga, oga! Não se pgeocupe, que com o tempo acabagá pog dizê-los...
OS ASSOCIADOS
O negócio de Gusmão consistia na prestação de serviços sexuais. Não trabalhava sozinho. Ele e sua amiga, Pepita, funcionavam em conjunto. Iam a casa - chegavam discretamente, com óculos escuros, gola levantada, às vezes bigode postiço; recebidos, começavam imediatamente a despir-se. Havia quem os quisesse ver simplesmente a actuar, em delirantes performances de sexo. Outros clientes, faziam questão de participar. Era mais caro - mas, também para eles mais interessante.
Em casa de Gusmão, o que se pensava é que o seu negócio era uma editora com florista incorporada. E quando chegava tarde, quando não vinha dormir, Gusmão justificava-se com excesso de trabalho ou demoradas reuniões com os seus sócios. Seriam cinco sócios - todos homens, segundo Gusmão que, como já perceberam, era um mentiroso bastante inventivo.
Um dia, Judite, sua esposa, fez questão de oferecer, em casa, um jantar para os sócios. Queria conhecê-los, talvez, mas, sobretudo, agradecer-lhes a consideração que mostravam pelo marido, as prendas que às vezes enviavam, as atenções de que cumulavam a família.
Gusmão teve, então, a genial ideia de contratar cinco sem-abrigo, dar-lhes banho, vesti-los, instruí-los e levá-los a jantar em sua casa, fazendo-os passar por seus associados.
Os homens seriam estranhos, admito, mas a escolha estava longe de ser infinita.
O vendedor da revista Cais gostou imediatamente da ideia, desde que pudesse ficar com o fato para si.
O cigano afligia-o - preconceituado e racista, Gusmão não conseguia deixar de pensar que ele tinha um plano para não sair de casa de mãos a abanar.
O negro, mal falava português. Mas isso podia corrigir-se. Gusmão só não sabia como.
Os gémeos siameses, na verdade árabes, tinham sido, em tempos, homens-bomba, mais tarde expulsos da congregação porque entretanto se descobrira, em meio de enorme escândalo, que não lhes apetecia morrer por nenhuma Causa: achavam, talvez estupidamente, que a bomba os não mataria e, em vez disso, poderia separá-los (estavam unidos pela anca e pelo ombro direitos, sem órgãos em comum).
O jantar correu de uma forma absolutamente bizarra.
Judite acreditou em tudo. E apreciou a sucessão de equívocos que a conversa prodigalizou, achando sempre que se tratava do exercício invulgar de humor dos associados do seu marido.
Decidiu que, uma vez por mês, daria um jantar.
E isso só não chegou a suceder porque, antes de passado o primeiro mês, Gusmão encontrou a morte, no decurso de uma acrobacia sexual que um cliente exigente quisera ver posta em prática.
Pepita, por razões compreensíveis, não pôde ir ao funeral.
Os falsos associados estiveram presentes. Havia esparguete e vinho...
Em casa de Gusmão, o que se pensava é que o seu negócio era uma editora com florista incorporada. E quando chegava tarde, quando não vinha dormir, Gusmão justificava-se com excesso de trabalho ou demoradas reuniões com os seus sócios. Seriam cinco sócios - todos homens, segundo Gusmão que, como já perceberam, era um mentiroso bastante inventivo.
Um dia, Judite, sua esposa, fez questão de oferecer, em casa, um jantar para os sócios. Queria conhecê-los, talvez, mas, sobretudo, agradecer-lhes a consideração que mostravam pelo marido, as prendas que às vezes enviavam, as atenções de que cumulavam a família.
Gusmão teve, então, a genial ideia de contratar cinco sem-abrigo, dar-lhes banho, vesti-los, instruí-los e levá-los a jantar em sua casa, fazendo-os passar por seus associados.
Os homens seriam estranhos, admito, mas a escolha estava longe de ser infinita.
O vendedor da revista Cais gostou imediatamente da ideia, desde que pudesse ficar com o fato para si.
O cigano afligia-o - preconceituado e racista, Gusmão não conseguia deixar de pensar que ele tinha um plano para não sair de casa de mãos a abanar.
O negro, mal falava português. Mas isso podia corrigir-se. Gusmão só não sabia como.
Os gémeos siameses, na verdade árabes, tinham sido, em tempos, homens-bomba, mais tarde expulsos da congregação porque entretanto se descobrira, em meio de enorme escândalo, que não lhes apetecia morrer por nenhuma Causa: achavam, talvez estupidamente, que a bomba os não mataria e, em vez disso, poderia separá-los (estavam unidos pela anca e pelo ombro direitos, sem órgãos em comum).
O jantar correu de uma forma absolutamente bizarra.
Judite acreditou em tudo. E apreciou a sucessão de equívocos que a conversa prodigalizou, achando sempre que se tratava do exercício invulgar de humor dos associados do seu marido.
Decidiu que, uma vez por mês, daria um jantar.
E isso só não chegou a suceder porque, antes de passado o primeiro mês, Gusmão encontrou a morte, no decurso de uma acrobacia sexual que um cliente exigente quisera ver posta em prática.
Pepita, por razões compreensíveis, não pôde ir ao funeral.
Os falsos associados estiveram presentes. Havia esparguete e vinho...
DIFICÍLIMOS RECOMEÇOS
Que raio queria eu?
Venho de observar os dados relativos ao número de visitantes deste meu blogue, e percebo que a quantidade caiu a pique. Em certos dias, não houve quem me espreitasse. E noutros dias terei tido um curioso, provavelmente eu mesmo, a ver se já teria postado alguma novidade.
A verdade é que as pessoas têm motivos. O meu blogue não mostra novidades há muitos meses. Preferia que as pessoas acorressem, curiosas, expectantes, para darem depois com a cara em nada?
Bem! Por acaso preferia...!
Tenho de me decidir. Não há desculpas para não escrever. Uma nota, uma mensagem, uma palavra. Literalmente: ao menos uma palavra.
Vou dedicar-me à escrita telegráfica para os dias em que esteja pouco inspirado ou muito ocupado.
Vou recomeçar a escrever.
Se calhar, mesmo recomeçando a haver texto, não tornará contudo a haver leitores tão cedo.
Mas é bem feito.
Venho de observar os dados relativos ao número de visitantes deste meu blogue, e percebo que a quantidade caiu a pique. Em certos dias, não houve quem me espreitasse. E noutros dias terei tido um curioso, provavelmente eu mesmo, a ver se já teria postado alguma novidade.
A verdade é que as pessoas têm motivos. O meu blogue não mostra novidades há muitos meses. Preferia que as pessoas acorressem, curiosas, expectantes, para darem depois com a cara em nada?
Bem! Por acaso preferia...!
Tenho de me decidir. Não há desculpas para não escrever. Uma nota, uma mensagem, uma palavra. Literalmente: ao menos uma palavra.
Vou dedicar-me à escrita telegráfica para os dias em que esteja pouco inspirado ou muito ocupado.
Vou recomeçar a escrever.
Se calhar, mesmo recomeçando a haver texto, não tornará contudo a haver leitores tão cedo.
Mas é bem feito.
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há que me apressar,
mas apresso-me devagarzinho
domingo, outubro 25, 2009
PALHAÇOS-ASSASSINOS
Um amigo de meu filho revelou-me qual é o seu maior terror:
Os palhaços-assassinos!
Não sei muito bem o que seja um Palhaço-assassino. Para mim, seria sempre um palhaço tão engraçado, tão engraçado, tão engraçado, que acabasse por matar o público de riso. Seria um autêntico serial-killer.
Devo dizer que o tal rapaz se arrependeu amargamente da sua confissão. Fiz-lhe desenhos de palhaços-assassinos, inventei anedotas em redor do tema, disparatei indecentemente a propósito do seu medo. Sou um péssimo educador. Às vezes, estou ao nível do Homer Simpson.
Acontece que eu tenho um peixe cujos companheiros de aquário não duram.
Teve sempre peixinhos mais pequeninos - nunca mais do que um de cada vez; vi-o, algumas vezes, às cabeçadas ao colega da altura, ou perseguindo-o, por causa da comida.
E a verdade é que já lá vão três: apareciam muito mortos em belas manhãs, esticadinhos, de ventre para o ar...
E este malandro prossegue. Envelhece bem. Está gordinho e, a não ser que eu o junte a um tubarão, não acho que seja boa ideia continuar a trazer-lhe companhia.
O que me faz pensar, é que... é um peixe-palhaço.
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e como raio querem que classifique isto?
sábado, outubro 24, 2009
SILÊNCIOS QUE JÁ NÃO VÃO DURAR
Meu blogue tem estado desesperadamente abandonado por estas semanas, não sei se meses.
Oiço-o chorar baixinho. Ou será que sou eu que choro baixinho, de saudades?
Mas deixemo-nos de pieguices. Não me zanguei com ninguém. Acontece que que há amarras que se têm cortado sozinhas. E aproveito para dizer, a quem, no meu aniversário, tenha deixado uma mensagem a que não respondi, que não foi por frieza ou por esquecimento - mas porque esse telemóvel deu o berro; comprei outro, da vodafone; e a tmn levantou tantos obstáculos a que eu mantivesse o seu número, que acabei por desistir, mandar a tmn à outra parte, prescindindo de uma parte substancial de contactos, que não consegui recuperar, e do meu passado.
Também este blogue me exige uma disponibilidade que não tenho tido.
Mas não desisto. Nem por sombras. Só compreendo e admitirei que me venha a faltar tempo para escrever, quando me vierem convidar para ser ministro da Educação.
Não do Sócrates, já se sabe. Esse convite, recusei. (Foi por isso que foram buscar, à última da hora, coitada, a sra. D. Isabel Alçada, que, por causa disso, teve de passar por mentirosa...)
Oiço-o chorar baixinho. Ou será que sou eu que choro baixinho, de saudades?
Mas deixemo-nos de pieguices. Não me zanguei com ninguém. Acontece que que há amarras que se têm cortado sozinhas. E aproveito para dizer, a quem, no meu aniversário, tenha deixado uma mensagem a que não respondi, que não foi por frieza ou por esquecimento - mas porque esse telemóvel deu o berro; comprei outro, da vodafone; e a tmn levantou tantos obstáculos a que eu mantivesse o seu número, que acabei por desistir, mandar a tmn à outra parte, prescindindo de uma parte substancial de contactos, que não consegui recuperar, e do meu passado.
Também este blogue me exige uma disponibilidade que não tenho tido.
Mas não desisto. Nem por sombras. Só compreendo e admitirei que me venha a faltar tempo para escrever, quando me vierem convidar para ser ministro da Educação.
Não do Sócrates, já se sabe. Esse convite, recusei. (Foi por isso que foram buscar, à última da hora, coitada, a sra. D. Isabel Alçada, que, por causa disso, teve de passar por mentirosa...)
quinta-feira, setembro 10, 2009
QUE MAIS PODERIA SIGNIFICAR?
Acordo numa cama. Estou sem memória alguma. Escapa-me quem sou, ou que me aconteceu.
Estou com os olhos enfaixados por ligaduras.
Percebo, por um indefinível ruído, que corre um fio de soro para a minha veia.
É, certamente, um hospital.
Perto, oiço vozes em surdina.
Quando alguém acorda sem memória, num hospital, de olhos cegados por ligaduras,
e escuta vozes que discutem em surdina, isso só pode significar que estão a planear matá-lo.
Estou com os olhos enfaixados por ligaduras.
Percebo, por um indefinível ruído, que corre um fio de soro para a minha veia.
É, certamente, um hospital.
Perto, oiço vozes em surdina.
Quando alguém acorda sem memória, num hospital, de olhos cegados por ligaduras,
e escuta vozes que discutem em surdina, isso só pode significar que estão a planear matá-lo.
terça-feira, setembro 01, 2009
O CEGO E A BÊBEDA
O cego não teve tempo para dar nem quatro ou cinco passos, riscando a sua bengala ao longo do muro, quando tropeçou na velha agachada diante dele.
«Cruzes! Que é isto?», perguntou.
«Bolas! Já não se pode baixar uma pessoa sossegada.»
«Ó minha senhora! Mas que faz aí toda torcida? Está maldisposta? Deu-lhe algum fanico?»
«Não», respondeu a velha. «Só queria fazer chichi.»
«Pelo amor de Deus! Aqui não, minha senhora. Venha a minha casa. É mesmo aqui ao pé. Venha daí!»
Seguiram. A velha era levada da breca. Perguntou ao cego, depois de se lhe ter servido do wc, se ele não teria qualquer coisa que se bebesse. Estava um calor..!
O cego dispensou-lhe o que tinha: uma garrafa de uísque.
E a mulher, que começou por utilizar um copo, afeiçoou-se de tal modo à garrafa que, por fim, já bebia pelo gargalo. Despachou a beberagem num ápice.
Depois, completamente bêbeda, atirou-se para o sofá.
«Ah! Que isto é muito confortável! Olhe, se não se importa, fico por aqui. Durmo cá em casa...»
E já quase roncava na sua bebedeira absurda, quando o cego se impôs. Tanto, não! Não podia ser! Tinha família - a mulher ciumenta, a filha pequenita - de modo que, se já mijara, se já bebera, que se fosse...
Mas não foi fácil, porque a mulher estava completamente embriagada. O cego é que teve praticamente de a levar aos ombros. Ele sem ver coisa alguma (como é óbvio), tropeçando amiúde, ela esparramando-se-lhe em cima, abrindo os braços, rouquejando umas canções brejeiras, assim sairam, num estranhíssimo pacote humano, e foram caindo até a um banco de jardim, onde ele a depositou - e deixou!
«Cruzes! Que é isto?», perguntou.
«Bolas! Já não se pode baixar uma pessoa sossegada.»
«Ó minha senhora! Mas que faz aí toda torcida? Está maldisposta? Deu-lhe algum fanico?»
«Não», respondeu a velha. «Só queria fazer chichi.»
«Pelo amor de Deus! Aqui não, minha senhora. Venha a minha casa. É mesmo aqui ao pé. Venha daí!»
Seguiram. A velha era levada da breca. Perguntou ao cego, depois de se lhe ter servido do wc, se ele não teria qualquer coisa que se bebesse. Estava um calor..!
O cego dispensou-lhe o que tinha: uma garrafa de uísque.
E a mulher, que começou por utilizar um copo, afeiçoou-se de tal modo à garrafa que, por fim, já bebia pelo gargalo. Despachou a beberagem num ápice.
Depois, completamente bêbeda, atirou-se para o sofá.
«Ah! Que isto é muito confortável! Olhe, se não se importa, fico por aqui. Durmo cá em casa...»
E já quase roncava na sua bebedeira absurda, quando o cego se impôs. Tanto, não! Não podia ser! Tinha família - a mulher ciumenta, a filha pequenita - de modo que, se já mijara, se já bebera, que se fosse...
Mas não foi fácil, porque a mulher estava completamente embriagada. O cego é que teve praticamente de a levar aos ombros. Ele sem ver coisa alguma (como é óbvio), tropeçando amiúde, ela esparramando-se-lhe em cima, abrindo os braços, rouquejando umas canções brejeiras, assim sairam, num estranhíssimo pacote humano, e foram caindo até a um banco de jardim, onde ele a depositou - e deixou!
sexta-feira, agosto 21, 2009
QUALQUER COISA COMO UM AFORISMO TRÁGICO
Pode suceder - e é até, talvez, mais frequente do que se pensaria - possuir-se talento para se ser excelente, mas não se ter vocação para isso.
Acredito que pareça terrível. É, contudo, certamente muito menos dramático do que:
ter-se vocação para se ser excelente
mas não ter talento para isso...
Acredito que pareça terrível. É, contudo, certamente muito menos dramático do que:
ter-se vocação para se ser excelente
mas não ter talento para isso...
sábado, agosto 15, 2009
O FEITIÇO PELA CULATRA III: O «TWIST» FINAL
O homem não era um pedófilo, nem um louco, nem um assassino em série.
Era um cidadão pacato, um pouco nervoso, já careca no alto da cabeça. Era Delegado de Propaganda Médica, não tinha mais do que dois pares de sapatos, uns castanhos e outros negros. Detestava que o confundissem com uma Testemunha de Jeová. O que, regularmente, acontecia: já sucedera, ao todo, mais do que três vezes.
O homem era simplesmente isto. Enervara-se com a chamada. Primeiro, assustara-se: Quem será, e a querer falar-me nesta aflição, a pedir-me que pague o telefonema...? Depois, percebera que eram miúdos. A brincar. E pensou: Vou dar-lhes uma lição!
Só isto. Quando percebeu que o número em causa se mantinha permanentemente desligado, que já o não atendiam, sentiu a alma rejubilar. «Apanharam um susto!» Mas não resistiu - e continuou.
O homem era somente isto.
Como sei?
É que o homem sou eu. De voz cortês. Cidadão pacato.
Mas como prová-lo!? Como prová-lo, agora que me prenderam porque um jovem chamado Nuno se suicidou - por enforcamento, o que é pouco vulgar em jovens - e, investigando no seu telemóvel, deram com as minhas mensagens, dezenas, centenas para não dizer milhares..., perseguindo, ameaçando, terríveis, «Estou perto», «Hoje estaremos frente a frente...», «Apanhei-te»?
Como provar que sou unicamente um homem que não quer da vida senão, para já, um terceiro par de sapatos?
Era um cidadão pacato, um pouco nervoso, já careca no alto da cabeça. Era Delegado de Propaganda Médica, não tinha mais do que dois pares de sapatos, uns castanhos e outros negros. Detestava que o confundissem com uma Testemunha de Jeová. O que, regularmente, acontecia: já sucedera, ao todo, mais do que três vezes.
O homem era simplesmente isto. Enervara-se com a chamada. Primeiro, assustara-se: Quem será, e a querer falar-me nesta aflição, a pedir-me que pague o telefonema...? Depois, percebera que eram miúdos. A brincar. E pensou: Vou dar-lhes uma lição!
Só isto. Quando percebeu que o número em causa se mantinha permanentemente desligado, que já o não atendiam, sentiu a alma rejubilar. «Apanharam um susto!» Mas não resistiu - e continuou.
O homem era somente isto.
Como sei?
É que o homem sou eu. De voz cortês. Cidadão pacato.
Mas como prová-lo!? Como prová-lo, agora que me prenderam porque um jovem chamado Nuno se suicidou - por enforcamento, o que é pouco vulgar em jovens - e, investigando no seu telemóvel, deram com as minhas mensagens, dezenas, centenas para não dizer milhares..., perseguindo, ameaçando, terríveis, «Estou perto», «Hoje estaremos frente a frente...», «Apanhei-te»?
Como provar que sou unicamente um homem que não quer da vida senão, para já, um terceiro par de sapatos?
quinta-feira, agosto 13, 2009
O FEITIÇO PELA CULATRA - II
Mas, repentinamente, Mateus tinha de se ir embora. E a conversa de despedida entre os dois marcou-o profundamente.
- Cê tá frito! - disse-lhe o amigo, ao sair, como se o abandonasse. - Desta vez cê pôs a pata na poça.
«Cê está»!? «Cê Pôs!»? Onde raio estava então o «nós»?
-Cê sabe que agora eu tenho de ir -, rematou Mateus.
Nuno desligou o telemóvel, é claro. Mas, num certo sentido, nunca o telemóvel estivera tão ligado, tão presente, tão aceso como agora. É que ele não podia pensar em nada mais, nada mais. Seria possível que o seu número estivesse «sob vigilância»? De quem? Tinha um cartão vulgar, não associado a nenhum proprietário; quem o vigiaria, e como? Por outro lado, hoje, pensou, existem novos aparelhos, detectores sofisticados: sabia de mulheres que compravam dispositivos certeiros para saber onde se encontravam exactamente os maridos infiéis, ou vice-versa...
A mãe protestou:
- Nuno, estás com o móvel fechado? Sabes que isso me preocupa, quero saber sempre de ti...
Preocupava-se? Ai sim? Pois bem, agora tinha sérias razões para se preocupar. E ele nada lhe podia dizer: nada...
Quando tornou a ligar, no dia seguinte, a medo, viu o seu medo justificado: tinha a caixa cheia de mensagens - escritas e de voz, «Não me escapas», «Vou apanhar-te», «Estou perto, muito perto», «Esconde-te!», «Não adormeças de noite, estarei a ver-te!»
Um pedófilo? Um louco? Um assassino em série?
Chorou.
- Cê tá frito! - disse-lhe o amigo, ao sair, como se o abandonasse. - Desta vez cê pôs a pata na poça.
«Cê está»!? «Cê Pôs!»? Onde raio estava então o «nós»?
-Cê sabe que agora eu tenho de ir -, rematou Mateus.
Nuno desligou o telemóvel, é claro. Mas, num certo sentido, nunca o telemóvel estivera tão ligado, tão presente, tão aceso como agora. É que ele não podia pensar em nada mais, nada mais. Seria possível que o seu número estivesse «sob vigilância»? De quem? Tinha um cartão vulgar, não associado a nenhum proprietário; quem o vigiaria, e como? Por outro lado, hoje, pensou, existem novos aparelhos, detectores sofisticados: sabia de mulheres que compravam dispositivos certeiros para saber onde se encontravam exactamente os maridos infiéis, ou vice-versa...
A mãe protestou:
- Nuno, estás com o móvel fechado? Sabes que isso me preocupa, quero saber sempre de ti...
Preocupava-se? Ai sim? Pois bem, agora tinha sérias razões para se preocupar. E ele nada lhe podia dizer: nada...
Quando tornou a ligar, no dia seguinte, a medo, viu o seu medo justificado: tinha a caixa cheia de mensagens - escritas e de voz, «Não me escapas», «Vou apanhar-te», «Estou perto, muito perto», «Esconde-te!», «Não adormeças de noite, estarei a ver-te!»
Um pedófilo? Um louco? Um assassino em série?
Chorou.
quarta-feira, agosto 12, 2009
O FEITIÇO PELA CULATRA - I
Chegou a ser divertido por um instante.
Estavam os dois, ele e Mateus. A ideia poderia ter sido dele ou de Mateus, seu amigo brasileiro: era indiferente; na verdade, as ideias de um e de outro misturavam-se numa confusão de rios onde se perdia a origem e o proprietário.
Inventaram um número de telemóvel (vodafone), partindo do princípio de que pertenceria certamente a alguém, e recorreram ao serviço vodafone para pedir que o dono do telemóvel aceitasse pagar a chamada.
O homem do número em causa aceitou.
Tinha uma voz máscula, pausada, cortês.
- Sim? - perguntou de lá, másculo, pausado, cortês.
- Como é que o senhor se chama? - inquiriu Nuno.
- Eu!? Essa agora! Diga-me você quem é, por favor. E depressa, que eu estou a pagar...
- Como é que o senhor se chama? - insistiu Nuno, enquanto o amigo Mateus escondia a cabeça sob a almofada para que o não ouvissem rir.
-Oiça - respondeu o homem. - Não me macem. Deve ser engano. Com licença.
E desligou.
Também se tornava difícil recordar quem decidira que deveriam continuar a brincadeira.
Mas, vez após vez, o homem aceitava sempre a chamada e, quando a operadora procedia à ligação, Nuno e Mateus não atendiam.
Uma vez. Duas, três vezes.
Depois, perceberam que o senhor lhes telefonava já por sua própria inciativa.
Não atendiam.
O homem insistia. Tornava à carga.
Quando atenderam, por fim, preparados para responder com vozes de monstro e guinchos, ouviram simplesmente isto:
- Sabe que o seu telefone está sob vigilância?
- Desliga essa porcaria, desliga essa porcaria! - gritou Mateus.
Ainda lhes chegou a voz, menos pausada, mais máscula, absolutamente descortês:
- Eu vou chegar aí. Juro que chego!
Estavam os dois, ele e Mateus. A ideia poderia ter sido dele ou de Mateus, seu amigo brasileiro: era indiferente; na verdade, as ideias de um e de outro misturavam-se numa confusão de rios onde se perdia a origem e o proprietário.
Inventaram um número de telemóvel (vodafone), partindo do princípio de que pertenceria certamente a alguém, e recorreram ao serviço vodafone para pedir que o dono do telemóvel aceitasse pagar a chamada.
O homem do número em causa aceitou.
Tinha uma voz máscula, pausada, cortês.
- Sim? - perguntou de lá, másculo, pausado, cortês.
- Como é que o senhor se chama? - inquiriu Nuno.
- Eu!? Essa agora! Diga-me você quem é, por favor. E depressa, que eu estou a pagar...
- Como é que o senhor se chama? - insistiu Nuno, enquanto o amigo Mateus escondia a cabeça sob a almofada para que o não ouvissem rir.
-Oiça - respondeu o homem. - Não me macem. Deve ser engano. Com licença.
E desligou.
Também se tornava difícil recordar quem decidira que deveriam continuar a brincadeira.
Mas, vez após vez, o homem aceitava sempre a chamada e, quando a operadora procedia à ligação, Nuno e Mateus não atendiam.
Uma vez. Duas, três vezes.
Depois, perceberam que o senhor lhes telefonava já por sua própria inciativa.
Não atendiam.
O homem insistia. Tornava à carga.
Quando atenderam, por fim, preparados para responder com vozes de monstro e guinchos, ouviram simplesmente isto:
- Sabe que o seu telefone está sob vigilância?
- Desliga essa porcaria, desliga essa porcaria! - gritou Mateus.
Ainda lhes chegou a voz, menos pausada, mais máscula, absolutamente descortês:
- Eu vou chegar aí. Juro que chego!
domingo, agosto 02, 2009
BLOGUES & BLOGUES
É qualquer coisa assim:
Gaston pede a um amigo que lhe tome conta do ratinho. Mas, explica, tomar conta do ratinho implica não perder de vista o gato, que vigia, atento e esfomeado, o inocente roedor. Por outro lado, há que fazer atenção à gaivota, que inveja o mesmo rato, podendo, ainda por cima, entrar em luta com o gato de quem tem ciúmes. Em todo o caso, a gaivota tem uma alternativa: o peixinho vermelho; se ela se cansar de vigiar o rato, poderá interessar-se perigosamente pelo peixinho vermelho, chamando, aliás, para este, a atenção do gato. «Percebeste? Tudo bem? Ficas então a tomar conta do meu ratinho, como prometeste?»
Às vezes, a rede de blogues em que me teci recorda-me esta história. Por um lado, porque está aqui o Kaostico. Va bene! Mas, entretanto, dei em participar com grande empenho e prazer no blogue do clube de cinema. Agrada-me que os leitores do kaostico, se ainda os há, espreitem o Gostos Discutem-se, mas não o inverso: afinal, é enquanto professor civilizado e sério que me dedico ao cinema, e não me parece bem que os alunos com quem partilho a feitura do Gostos Discutem-se descubram as minhas facetas kaosticas. Não contente com isso, iniciei o Profissão: Leitor, sobre livros. Que os meus alunos do Clube de Cinema tenham, deste, um link para o Profissão: Leitor, parece-me aceitável. Mas, uma vez mais, não pode haver deste nenhum link para o Kaostico. E quem quero eu que me visite ao blogue de poesia? Bem, não certamente todos os leitores do Kaostico, porque me tem parecido que os há pouco dados a poetices, porque os não quero incomodar e porque me sinto demasiado exposto nos meus poemas. Do Kaostico, gostaria que quem quisesse fosse ao Cara Danjo. Mas, evidentemente, não do Clube de Cinema, não do Profissão: Leitor, não...
Enfim, acaba por se tornar exasperante possuir todas estas facetas que se envergonham umas das outras.
Bem me prevenia o psiquiatra!
quarta-feira, julho 29, 2009
terça-feira, julho 28, 2009
AMOR É DIVINO. SEXO É ANIMAL
Kaostico, como o próprio nome anuncia, foi, de certa forma, o caos original, o húmus primordial, o início de tudo.
Tendo agora começado a multiplicar-me em diversos avatares, em blogues que respectivamente se centram em interesses muito específicos, um de poesia, um de literatura, um de cinema, perguntei-me se não estaria, paulatinamente, a esvaziar o kaostico. Se, daqui para a frente, se me apetecesse falar sobre cinema não iria antes àquele, ou a um outro heterónimo bloguista para publicar um poema...
E, de repente, percebo que não. Que, por alguma razão, nos outros blogues tendo a ser bem-comportado. Que, para falar de livros, me civilizo. Quase a ponto de me tornar aborrecidamente snob. Percebo que, se quero realmente continuar a ser eu, no que tenho de mais instintivo, animal, incorrecto, desagradável, infantil, tempestuoso e irascível, o kaostico será onde desaguo.
E, mais, se nos outros me torno mais instruído, recorrendo às modernas tecnologias, ao que vou aprendendo, dou-me ao luxo de, no kaostico, prescindir de quaisquer meios. Ou quase: é assim que o aprecio, sem preliminares nem açúcar, forte, negro e bom como um abatanado pela manhã.
Nos outros blogues, descubro e partilho amores. É da esfera do Bem.
Neste, faço sexo. É da esfera do Bom.
Ali, sou divino. (Modéstia à parte...!)
Aqui, animal. Como canta Rita Lee.
Tendo agora começado a multiplicar-me em diversos avatares, em blogues que respectivamente se centram em interesses muito específicos, um de poesia, um de literatura, um de cinema, perguntei-me se não estaria, paulatinamente, a esvaziar o kaostico. Se, daqui para a frente, se me apetecesse falar sobre cinema não iria antes àquele, ou a um outro heterónimo bloguista para publicar um poema...
E, de repente, percebo que não. Que, por alguma razão, nos outros blogues tendo a ser bem-comportado. Que, para falar de livros, me civilizo. Quase a ponto de me tornar aborrecidamente snob. Percebo que, se quero realmente continuar a ser eu, no que tenho de mais instintivo, animal, incorrecto, desagradável, infantil, tempestuoso e irascível, o kaostico será onde desaguo.
E, mais, se nos outros me torno mais instruído, recorrendo às modernas tecnologias, ao que vou aprendendo, dou-me ao luxo de, no kaostico, prescindir de quaisquer meios. Ou quase: é assim que o aprecio, sem preliminares nem açúcar, forte, negro e bom como um abatanado pela manhã.
Nos outros blogues, descubro e partilho amores. É da esfera do Bem.
Neste, faço sexo. É da esfera do Bom.
Ali, sou divino. (Modéstia à parte...!)
Aqui, animal. Como canta Rita Lee.
sábado, julho 25, 2009
DONA MARIANA
A Dona Mariana caçou-me num cafezito sem portas secretas nem saídas de emergência, isto é, onde eu não tinha escapatória possível.
Diz a Dona Mariana que me acha mais gordinho.
E pergunto-me eu por que raio se dizem coisas destas às pessoas. Para as manter informadas sobre as notícias vitais? Para fazer conversa, como antes se falava do tempo a quem se não tinha absolutamente mais nada para dizer? Porque eu terei efectivamente engordado tanto que o comentário lhe sai, irresistível e incontrolável como certos arrotos? Ou simplesmente para chatear?
A Dona Mariana tem um cão com um abajur, uma espécie de funil em cartão à roda do pescoço. Para se não coçar nem arranhar numa ferida.
A Dona Mariana diz que o sobrinho está em casa, engripado. Apetece-me logo vingar-me. Mas seria uma crueldade de gordo, não cheguei a esse ponto. Chego só ao ponto, a que também não resisto, de perguntar se tem tido dor de cabeça ou vómitos. E deixo escapar que «eles» aconselham a que se lave muito as mãos. Sinto que ela não percebe o que quero dizer, deixo morrer a conversa.
A Dona Mariana prepara-se para se despedir de mim com beijos estalados, daqueles que me repugnam.
Digo-lhe:
«Está a ver? Sempre há vantagens no engordar: agora fico com mais espaço para os seus beijinhos...»
Desejo-lhe as melhoras ao neto. Que não seja nada de cuidado. E piro-me!
Diz a Dona Mariana que me acha mais gordinho.
E pergunto-me eu por que raio se dizem coisas destas às pessoas. Para as manter informadas sobre as notícias vitais? Para fazer conversa, como antes se falava do tempo a quem se não tinha absolutamente mais nada para dizer? Porque eu terei efectivamente engordado tanto que o comentário lhe sai, irresistível e incontrolável como certos arrotos? Ou simplesmente para chatear?
A Dona Mariana tem um cão com um abajur, uma espécie de funil em cartão à roda do pescoço. Para se não coçar nem arranhar numa ferida.
A Dona Mariana diz que o sobrinho está em casa, engripado. Apetece-me logo vingar-me. Mas seria uma crueldade de gordo, não cheguei a esse ponto. Chego só ao ponto, a que também não resisto, de perguntar se tem tido dor de cabeça ou vómitos. E deixo escapar que «eles» aconselham a que se lave muito as mãos. Sinto que ela não percebe o que quero dizer, deixo morrer a conversa.
A Dona Mariana prepara-se para se despedir de mim com beijos estalados, daqueles que me repugnam.
Digo-lhe:
«Está a ver? Sempre há vantagens no engordar: agora fico com mais espaço para os seus beijinhos...»
Desejo-lhe as melhoras ao neto. Que não seja nada de cuidado. E piro-me!
sexta-feira, julho 24, 2009
quinta-feira, julho 23, 2009
LUA-DE-MEL A SÓS
O padrinho do meu quase casamento era um homem de posses. Oferecera-nos, para a lua-de-mel, uma viagem de sonho a Kashbarrah, onde possuía o único hotel, um hotel de cinco estrelas.
Como não chegou a haver casamento, com aquela vergonha da noiva ter fugido para se casar com outro, o quase-padrinho, condoído, disse-me:
- Ficas na mesma com o meu presente. Não será lua-de-mel, pode ser uma viagem para te esqueceres da vergonha. Formas lá um harém e não pensas mais nessa traidora!
Fiz, portanto, a viagem e, no barco que se destinava a Bagdechd (porto de onde, seguidamente, apanharíamos uma raríssima camioneta para Kashbarrah), primeiro com um sobressalto de irritação e inveja, depois com uma distensão de alívio e regozijo por não ser eu naquela situação, conheci um casal que viajava em lua-de-mel.
Ele era um tipo muito jovem, profundamente antipático, com um cabelo gorduroso, dentes grandes e óculos grossos. Ela, uma rapariga de ar tresloucado, com um princípio de calvície demasiado evidente e brincos de plástico. Mas deste casal fazia ainda parte uma mulher que cedo identifiquei como sendo a mãe dele. A cumplicidade da velha em relação ao rapaz, com quem confereciava constantemente, em surdina, não dava lugar a dúvidas. Eu assistia, intruso miserável e despudorado, a uma enorme discussão entre o recém-marido e a recém-esposa, com gritos de uma agressividade extrema, como berros de gaivota e, depois, quando ela se retirava, humilhada, via o rapaz a queixar-se à mãe, começando sempre da mesma maneira a sua lamúria:
- Já viste isto? «Ela» diz que...
E a velha a acalmá-lo.
Quando chegámos a Bagdeschd, devo confessá-lo, atrelei-me ao casal tridimensional. Não só por curiosidade e por poder banhar-me na permanente alegria de me ter, afinal de contas, libertado de um casamento que não acabaria muito melhor, mas porque o capitão do barco nos pusera de sobreaviso contra os ladrões. Por outro lado, tornava-se importante não perdermos a camioneta: a solução aconselhada passava por não nos perdermos uns dos outros.
Na paragem, iniciou-se outra discussão. À minha frente, como se eu tivesse já passado a fazer parte do casal e, portanto, nada houvesse a esconder-me, notei como passavam a pente fino tópicos de há semanas atrás, frases ditas há muito tempo e que não tinham tido resposta na altura, esquecimentos, faltas, falhas. Ele estava quase à beira de uma apoplexia, mas ela não se calava, com a sua calvície, parecia-me, a ganhar terreno, umas sandálias horrorosas que lhe deixavam marcas e feridas nos calcanhares.
E, nisto, apareceu a camioneta.
Entraram.
Reparei, contudo, que a recém-casada se esquecera, atrás, de um saco de carcaças.
Preocupado, temendo que pudesse ser um tópico mais para acirrar a discussão, desci do degrau em que já me encontrava na camioneta e fui apanhar o saco.
De saco na mão, vi a porta fechar-se. Apressei-me, mas a camioneta arrancava, diante dos meus olhos, fazendo uma poeira na qual me perdia e dissolvia.
Corri, gritando. Iam ouvir-me. O casal ia dar pela minha falta. Alguém me veria, acenando com um saco de carcaças. Não era possível. Não era possível.
Foi possível. Foi assim.
Perguntei a um árabe, que me queria vender um «timex», quando haveria outra camioneta.
Riu, mostrando-me exasperantes dentes de ouro. A próxima, só no mês seguinte.
Como não chegou a haver casamento, com aquela vergonha da noiva ter fugido para se casar com outro, o quase-padrinho, condoído, disse-me:
- Ficas na mesma com o meu presente. Não será lua-de-mel, pode ser uma viagem para te esqueceres da vergonha. Formas lá um harém e não pensas mais nessa traidora!
Fiz, portanto, a viagem e, no barco que se destinava a Bagdechd (porto de onde, seguidamente, apanharíamos uma raríssima camioneta para Kashbarrah), primeiro com um sobressalto de irritação e inveja, depois com uma distensão de alívio e regozijo por não ser eu naquela situação, conheci um casal que viajava em lua-de-mel.
Ele era um tipo muito jovem, profundamente antipático, com um cabelo gorduroso, dentes grandes e óculos grossos. Ela, uma rapariga de ar tresloucado, com um princípio de calvície demasiado evidente e brincos de plástico. Mas deste casal fazia ainda parte uma mulher que cedo identifiquei como sendo a mãe dele. A cumplicidade da velha em relação ao rapaz, com quem confereciava constantemente, em surdina, não dava lugar a dúvidas. Eu assistia, intruso miserável e despudorado, a uma enorme discussão entre o recém-marido e a recém-esposa, com gritos de uma agressividade extrema, como berros de gaivota e, depois, quando ela se retirava, humilhada, via o rapaz a queixar-se à mãe, começando sempre da mesma maneira a sua lamúria:
- Já viste isto? «Ela» diz que...
E a velha a acalmá-lo.
Quando chegámos a Bagdeschd, devo confessá-lo, atrelei-me ao casal tridimensional. Não só por curiosidade e por poder banhar-me na permanente alegria de me ter, afinal de contas, libertado de um casamento que não acabaria muito melhor, mas porque o capitão do barco nos pusera de sobreaviso contra os ladrões. Por outro lado, tornava-se importante não perdermos a camioneta: a solução aconselhada passava por não nos perdermos uns dos outros.
Na paragem, iniciou-se outra discussão. À minha frente, como se eu tivesse já passado a fazer parte do casal e, portanto, nada houvesse a esconder-me, notei como passavam a pente fino tópicos de há semanas atrás, frases ditas há muito tempo e que não tinham tido resposta na altura, esquecimentos, faltas, falhas. Ele estava quase à beira de uma apoplexia, mas ela não se calava, com a sua calvície, parecia-me, a ganhar terreno, umas sandálias horrorosas que lhe deixavam marcas e feridas nos calcanhares.
E, nisto, apareceu a camioneta.
Entraram.
Reparei, contudo, que a recém-casada se esquecera, atrás, de um saco de carcaças.
Preocupado, temendo que pudesse ser um tópico mais para acirrar a discussão, desci do degrau em que já me encontrava na camioneta e fui apanhar o saco.
De saco na mão, vi a porta fechar-se. Apressei-me, mas a camioneta arrancava, diante dos meus olhos, fazendo uma poeira na qual me perdia e dissolvia.
Corri, gritando. Iam ouvir-me. O casal ia dar pela minha falta. Alguém me veria, acenando com um saco de carcaças. Não era possível. Não era possível.
Foi possível. Foi assim.
Perguntei a um árabe, que me queria vender um «timex», quando haveria outra camioneta.
Riu, mostrando-me exasperantes dentes de ouro. A próxima, só no mês seguinte.
quarta-feira, julho 22, 2009
UM TEXTO QUE POUCO SERVE E NADA TRAZ. PARA QUE CONSTE
Como o meu computador apanhou certa virose cujo efeito, que eu veja, consiste unicamente em que os acentos das palavras caem fora das palavras, estou a tentar o desafio de escrever um texto que evite todos os acentos. Se repararem bem, os acentos foram total e sabiamente evitados neste texto. Se eu fosse mais moderno e escrevesse de acordo com o Novo Acordo, suspeito que mais facilmente, ainda, conseguiria escolher palavras sem acentos. Reparem que, de acordo com o Novo Acordo, nem, por exemplo, o termo «cagado» se acentua, ficando-se no entanto na incerteza, caso eu escrevesse «vejo o cagado debaixo da cadeira», acerca do referente da palavra utilizada: estaria a referir-me a um animal, de casa sobre o dorso, oculto sob a cadeira, ou teria acabado de descobrir, sob a mesma cadeira, o produto de um animal irracional - ou de uma pessoa tornada irracional por dar com o wc ocupado? Mas para prescindir mesmo de acentos, melhor do que escrever de acordo com o Novo Acordo, seria escrever de acordo com a senhora dona margarida moreira, que penso que saibam quem seja, e tenho notado tratar-se de uma mulher de tal forma independente, que depende muito, muito, muito pouco do que a escrita portuguesa em geral determina ou aconselha...
Certo, este texto deixa um bocado a desejar. Falta-lhe, porventura, profundidade. Ou interesse. O seu motivo parece fraco. Em todo o caso, como desafio, tem graça. Pouca, mas, enfim, alguma: conseguimos escrever um texto longo - e, chegados aqui, o desafio pode dar-se por vencido: quem escreveu estas inanidades, poderia certamente escrever mais trezentas e cinquenta posts assim... - sem precisar de um acento que fosse.
Isto consola-me um pouco. Porque, a verdade, resume-se a isto: estou furioso!
Certo, este texto deixa um bocado a desejar. Falta-lhe, porventura, profundidade. Ou interesse. O seu motivo parece fraco. Em todo o caso, como desafio, tem graça. Pouca, mas, enfim, alguma: conseguimos escrever um texto longo - e, chegados aqui, o desafio pode dar-se por vencido: quem escreveu estas inanidades, poderia certamente escrever mais trezentas e cinquenta posts assim... - sem precisar de um acento que fosse.
Isto consola-me um pouco. Porque, a verdade, resume-se a isto: estou furioso!
quinta-feira, julho 16, 2009
CRÍTICOS SEM CRITÉRIO
Os quatro vagabundos estavam sentados lado a lado, num banco corrido. Um deles era negro e tinha um boné. Outro era indiano, não tinha boné. Os dois restantes, brancos, embora muito sujos, estavam de calções.
Fixavam atentamente o anão que, diante deles, subiu para cima da mesa de bilhar e, sem uma palavra, desatou a fazer um sapateado.
Depois, saltou para o chão e foi-se embora. Os seus sapatos, próprios para fazer sapateado, ecoavam pelo chão num cada vez mais longínquo toc-toc-toc-toc.
Um dos vagabundos, talvez o negro, perante o silêncio que se instalou, gritou para algures:
«Então e agora? Já podemos ir embora?»
Outro deles tentou a sua sorte:
«E não há aí um naco de pão para o pessoal, chefe?!»
«Com um bocadinho de manteiga?», acrescentou mais um.
Só o silêncio por resposta.
Desandando do estranho palacete, o indiano ainda se voltou para trás:
«Então e um cigarrito? Ao menos um cigarrito, ein, chefe?»
Foram para a rua.
Um dos vagabundos comentou:
«Claro que não é todos os dias que temos direito a um espectáculo destes...»
Algum deles respondeu:
«Pois não. Mesmo assim, acho que preferia uma carcaça com manteiga».
Concordaram.
«Ou um cigarrito...»
Fixavam atentamente o anão que, diante deles, subiu para cima da mesa de bilhar e, sem uma palavra, desatou a fazer um sapateado.
Depois, saltou para o chão e foi-se embora. Os seus sapatos, próprios para fazer sapateado, ecoavam pelo chão num cada vez mais longínquo toc-toc-toc-toc.
Um dos vagabundos, talvez o negro, perante o silêncio que se instalou, gritou para algures:
«Então e agora? Já podemos ir embora?»
Outro deles tentou a sua sorte:
«E não há aí um naco de pão para o pessoal, chefe?!»
«Com um bocadinho de manteiga?», acrescentou mais um.
Só o silêncio por resposta.
Desandando do estranho palacete, o indiano ainda se voltou para trás:
«Então e um cigarrito? Ao menos um cigarrito, ein, chefe?»
Foram para a rua.
Um dos vagabundos comentou:
«Claro que não é todos os dias que temos direito a um espectáculo destes...»
Algum deles respondeu:
«Pois não. Mesmo assim, acho que preferia uma carcaça com manteiga».
Concordaram.
«Ou um cigarrito...»
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sinto aqui um cheirinho a david lynch
domingo, julho 12, 2009
GLÓRIAS NACIONAIS
Afinal, há que lembrar que temos, num país tão pequenininho, dois portugueses de envergadura internacional.
Dois nobéis contemporâneos: o Saramago (Nobel da Literatura) e o Cristiano Ronaldo (Nobel do Futebol).
E, até, mais parecidos um com o outro do que se diria à primeira vista. E se não é no futebol (porque nunca vi o sr. Saramago jogar à bola), é certamente na escrita!
Dois nobéis contemporâneos: o Saramago (Nobel da Literatura) e o Cristiano Ronaldo (Nobel do Futebol).
E, até, mais parecidos um com o outro do que se diria à primeira vista. E se não é no futebol (porque nunca vi o sr. Saramago jogar à bola), é certamente na escrita!
terça-feira, julho 07, 2009
HISTORINHA
Daisy, fingindo de gatinho, deu no outro dia, contra uma estátua em ferro forjado, a maior das cabeçadas que se pode imaginar.
Conclusão: o gatinho pariu um ganda galo!
Conclusão: o gatinho pariu um ganda galo!
sexta-feira, junho 26, 2009
terça-feira, junho 23, 2009
EM BUSCA DO NIRVANA
Realizo penosos exercícios em demanda urgente de um nirvana.
Eis, aliás, uma porta de entrada: por que serei eu este corpo sentado sobre uma cadeira e não esta cadeira sobre a qual pesa um corpo?
Sou uma cadeira. Sou uma cadeira. Sou uma cadeira. Sinto como minha esta perna cinzenta de ferro. O meu coração bate algures no assento de madeira. Aquele pé humano não é o meu. Aquele pé que enverga uma sapatilha castanha comprada numa promoção do Lidl não me pertence. Porque eu sou uma cadeira. Mas o pé humano não deixa de ser vaga e preguiçosamente interessante. A sapatilha tem pontinhos. Serei capaz de os contar? Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, dezasseis, vinte e cinco, trinta e sete. Ora. Estou a aldrabar. Já não me apetece contar. Oiço o tiquetaque de um relógio. Lento, lento, lento. Lento, lento, lento. Não se trata do meu relógio porque, como já assentámos, sou uma cadeira. «Assentámos» é, pois, o mot juste. (Devo ser uma cadeira poligolota.) A menos que tenha deixado de ser cadeira. Sou o tiquetaque. Meu Deus, sou um tiquetaque: é então assim que se sente um tiquetaque: nada de corpo, nada de olhos ou de cabelo, nenhuma comichão nem eczemas ou outras doenças de pele, nenhum sono ou fome, nem pés dormentes...
Uma folha. Se calhar sou uma folha.
Hã?! Folha...?
O quê? Há um diabo de um aluno, na porra interminável que é este exame que estou precisamente a vigiar, que me pede nova folha?
Ainda falta uma hora para o exame acabar? Hora e meia?
Ah! Quem me dera ser tiquetaque...!
Eis, aliás, uma porta de entrada: por que serei eu este corpo sentado sobre uma cadeira e não esta cadeira sobre a qual pesa um corpo?
Sou uma cadeira. Sou uma cadeira. Sou uma cadeira. Sinto como minha esta perna cinzenta de ferro. O meu coração bate algures no assento de madeira. Aquele pé humano não é o meu. Aquele pé que enverga uma sapatilha castanha comprada numa promoção do Lidl não me pertence. Porque eu sou uma cadeira. Mas o pé humano não deixa de ser vaga e preguiçosamente interessante. A sapatilha tem pontinhos. Serei capaz de os contar? Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, dezasseis, vinte e cinco, trinta e sete. Ora. Estou a aldrabar. Já não me apetece contar. Oiço o tiquetaque de um relógio. Lento, lento, lento. Lento, lento, lento. Não se trata do meu relógio porque, como já assentámos, sou uma cadeira. «Assentámos» é, pois, o mot juste. (Devo ser uma cadeira poligolota.) A menos que tenha deixado de ser cadeira. Sou o tiquetaque. Meu Deus, sou um tiquetaque: é então assim que se sente um tiquetaque: nada de corpo, nada de olhos ou de cabelo, nenhuma comichão nem eczemas ou outras doenças de pele, nenhum sono ou fome, nem pés dormentes...
Uma folha. Se calhar sou uma folha.
Hã?! Folha...?
O quê? Há um diabo de um aluno, na porra interminável que é este exame que estou precisamente a vigiar, que me pede nova folha?
Ainda falta uma hora para o exame acabar? Hora e meia?
Ah! Quem me dera ser tiquetaque...!
segunda-feira, junho 22, 2009
quinta-feira, junho 18, 2009
E A ESPANHA AQUI TÃO PERTO
Coisa estranha, a memória. Que partidas nos não prega, confundindo ou recriando, obnubilando ou seleccionando, sublinhando ou ocultando.
A minha intervenção, assídua, num blogue de cinema tem-me feito pesquisar as minhas recordações, à procura dos filmes que vi na infância, na adolescência, ou na maturidade (que chegará um dia: portanto, esta última palavra diz menos respeito à memória do que à profecia...)
E, de repente, um destes dias surgiu-me na cabeça um certo filme. Curiosamente, a película parecia enterrar os pés numa zona onírica da minha memória, como se o tivesse visto numa outra vida. Fui totalmente incapaz de me lembrar, por exemplo, que idade teria quando o vi. Podia ser criança, mas, por um simples e eficaz exercício de dedução, calculei que não fosse criança. E onde o vi? Em Moçambique? Já em Portugal? Com amigos? Sozinho? Por que raio esse contexto está como que imerso numa sala onde todos fumam e o fumo enevoa por completo o ambiente...?
Contudo, conversando com uma amiga acerca disto, atirei-lhe à cara com algumas referências de uma precisão impressionante.
Em primeiro lugar, o nome do filme. Cria Cuervos. (Que significa Cria Cuervos? Sei lá!); em segundo lugar, o realizador: Carlos Saura. Em terceiro lugar, uma actriz: Geraldine Chaplin, a filha de Charles Chaplin. Em quarto lugar, que havia crianças e, certamente, tudo se desenrolava em torno de uma menina de seis ou sete anos com um rosto muito triste. Em quinto lugar que, provavelmente logo no início do filme, essa menina coloca um disco de vinil num gira-discos. Em sexto lugar, que das espiras do disco rodando sai uma música que nunca mais esqueci. Não sei de quem era, quem a cantava, se um grupo, se uma cançonetista, não sei. Mas trauteei-a toda. Acerca do filme, nada mais: um policial? um drama? que outras personagens haveria...? Mistério. Silêncio. Nevoeiro.
Deixo-vos com a música em causa...
A minha intervenção, assídua, num blogue de cinema tem-me feito pesquisar as minhas recordações, à procura dos filmes que vi na infância, na adolescência, ou na maturidade (que chegará um dia: portanto, esta última palavra diz menos respeito à memória do que à profecia...)
E, de repente, um destes dias surgiu-me na cabeça um certo filme. Curiosamente, a película parecia enterrar os pés numa zona onírica da minha memória, como se o tivesse visto numa outra vida. Fui totalmente incapaz de me lembrar, por exemplo, que idade teria quando o vi. Podia ser criança, mas, por um simples e eficaz exercício de dedução, calculei que não fosse criança. E onde o vi? Em Moçambique? Já em Portugal? Com amigos? Sozinho? Por que raio esse contexto está como que imerso numa sala onde todos fumam e o fumo enevoa por completo o ambiente...?
Contudo, conversando com uma amiga acerca disto, atirei-lhe à cara com algumas referências de uma precisão impressionante.
Em primeiro lugar, o nome do filme. Cria Cuervos. (Que significa Cria Cuervos? Sei lá!); em segundo lugar, o realizador: Carlos Saura. Em terceiro lugar, uma actriz: Geraldine Chaplin, a filha de Charles Chaplin. Em quarto lugar, que havia crianças e, certamente, tudo se desenrolava em torno de uma menina de seis ou sete anos com um rosto muito triste. Em quinto lugar que, provavelmente logo no início do filme, essa menina coloca um disco de vinil num gira-discos. Em sexto lugar, que das espiras do disco rodando sai uma música que nunca mais esqueci. Não sei de quem era, quem a cantava, se um grupo, se uma cançonetista, não sei. Mas trauteei-a toda. Acerca do filme, nada mais: um policial? um drama? que outras personagens haveria...? Mistério. Silêncio. Nevoeiro.
Deixo-vos com a música em causa...
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cinematografias misteriosas
sábado, junho 13, 2009
SUPORTEM-ME UM MINUTO DE SNOBISMO, POR FAVOR
Gosto muitíssimo de poesia.
Considero, contra o Espírito do Tempo, a experiência poética, quer como poetante, quer como leitor de poesia, uma das experiências inúteis mais gratas que há. Em parte, porque diz respeito às palavras e eu tenho um bom «ouvido da língua», por analogia com aquelas pessoas de quem se diz terem um bom «ouvido musical».
De certa forma, aliás, a poesia tem ainda que ver com música: quando se trata do poema, o «ouvido da língua» é mesmo uma espécie de «ouvido musical», tornando clara e indiscutível, neste caso, a afirmação de Walter Pater, segundo a qual «toda a Arte aspira à condição de música».
Mas, mais do que a sonoridade, mais do que essa musicalidade contida num verso feliz, a poesia interessa-me como campo fértil ao jogo das palavras, à surpresa e ao espanto que elas possibilitam sempre que se trata de fugir ao lugar comum e ao modo de falar anónimo, de toda a gente, todos os dias: sempre que se trata de a levar a dizer o que ainda há um instante era o indizível. Ao que era somente um pressentimento. Era um sentimento. Era uma visão. (Chamei, estranhamente, Ouvisões ao projecto que, na Biblioteca da minha escola, animei em torno da «experiência poética»...)
Um dos meus poetas predilectos é Leopardi.
Poderia dizer que me encanta a conciliação entre a forma clássica, belíssima, bebida em Homero, Píndaro ou Anacreonte, e um pessimismo a que sou muito sensível, romanticamente triste e negro.
Há um poema seu que se chama O Infinito. Não vou transcrevê-lo, vou relê-lo.
Principia por falar de algo tão simples como «esta erma colina» e uma sebe que retira ao seu olhar a possibilidade de alcançar o extremo do horizonte. E tudo isto são palavras e expressões lindíssimas, a «sebe que, por diversos lados, ao olhar exclui» o que este buscaria, ou, por exemplo, esse «extremo do horizonte» que é, literalmente, o «último horizonte» (Dell'ultimo orizzonte).
E, depois, diz-nos como, olhando «intermináveis espaços para além dela», da sebe (e hesito, esperando pela ajuda tradutora de quem saiba mais italiano do que eu: «interminati» será realmente «intermináveis» ou, por exemplo, «intermitentes»?), intermináveis espaços e «sobre-humanos silêncios» (não é belo? não é belo? eu não dizia...?), sente, bruscamente, um baque. Ou quase. Não chega a sê-lo. «Ove per poco il cor non si spaura»: então por pouco o coração não se sobressalta. Ouve o sussurrar do vento sobre o infinito silêncio, o silêncio como absoluto fundo desse murmúrio - e é o silêncio mal quebrado, mais o pressentimento intermitente do vasto horizonte (que, no entanto, lhe está excluído, roubado ao olhar), o que lhe dá a ideia de uma vastidão, de uma imensidão sem fim.
E termina, musicalmente, com a perturbadora expressão do prazer de um naufrágio:
Cosi tra questa immensità s'annega il pensier mio: E il naufragar m'è dolce in questo mare.
«Assim, no meio desta imensidade se afoga o pensamento [ou: o pensar?] meu: e o naufragar me é doce neste mar.»
Então? Então? Eu não vos dizia?
Considero, contra o Espírito do Tempo, a experiência poética, quer como poetante, quer como leitor de poesia, uma das experiências inúteis mais gratas que há. Em parte, porque diz respeito às palavras e eu tenho um bom «ouvido da língua», por analogia com aquelas pessoas de quem se diz terem um bom «ouvido musical».
De certa forma, aliás, a poesia tem ainda que ver com música: quando se trata do poema, o «ouvido da língua» é mesmo uma espécie de «ouvido musical», tornando clara e indiscutível, neste caso, a afirmação de Walter Pater, segundo a qual «toda a Arte aspira à condição de música».
Mas, mais do que a sonoridade, mais do que essa musicalidade contida num verso feliz, a poesia interessa-me como campo fértil ao jogo das palavras, à surpresa e ao espanto que elas possibilitam sempre que se trata de fugir ao lugar comum e ao modo de falar anónimo, de toda a gente, todos os dias: sempre que se trata de a levar a dizer o que ainda há um instante era o indizível. Ao que era somente um pressentimento. Era um sentimento. Era uma visão. (Chamei, estranhamente, Ouvisões ao projecto que, na Biblioteca da minha escola, animei em torno da «experiência poética»...)
Um dos meus poetas predilectos é Leopardi.
Poderia dizer que me encanta a conciliação entre a forma clássica, belíssima, bebida em Homero, Píndaro ou Anacreonte, e um pessimismo a que sou muito sensível, romanticamente triste e negro.
Há um poema seu que se chama O Infinito. Não vou transcrevê-lo, vou relê-lo.
Principia por falar de algo tão simples como «esta erma colina» e uma sebe que retira ao seu olhar a possibilidade de alcançar o extremo do horizonte. E tudo isto são palavras e expressões lindíssimas, a «sebe que, por diversos lados, ao olhar exclui» o que este buscaria, ou, por exemplo, esse «extremo do horizonte» que é, literalmente, o «último horizonte» (Dell'ultimo orizzonte).
E, depois, diz-nos como, olhando «intermináveis espaços para além dela», da sebe (e hesito, esperando pela ajuda tradutora de quem saiba mais italiano do que eu: «interminati» será realmente «intermináveis» ou, por exemplo, «intermitentes»?), intermináveis espaços e «sobre-humanos silêncios» (não é belo? não é belo? eu não dizia...?), sente, bruscamente, um baque. Ou quase. Não chega a sê-lo. «Ove per poco il cor non si spaura»: então por pouco o coração não se sobressalta. Ouve o sussurrar do vento sobre o infinito silêncio, o silêncio como absoluto fundo desse murmúrio - e é o silêncio mal quebrado, mais o pressentimento intermitente do vasto horizonte (que, no entanto, lhe está excluído, roubado ao olhar), o que lhe dá a ideia de uma vastidão, de uma imensidão sem fim.
E termina, musicalmente, com a perturbadora expressão do prazer de um naufrágio:
Cosi tra questa immensità s'annega il pensier mio: E il naufragar m'è dolce in questo mare.
«Assim, no meio desta imensidade se afoga o pensamento [ou: o pensar?] meu: e o naufragar me é doce neste mar.»
Então? Então? Eu não vos dizia?
sexta-feira, junho 12, 2009
IMPREVISÃO ou CEGO SURDO E FELIZ
Serei eu uma daquelas sociedades em que a elite brindava ainda ao futuro e à alegria, sem escutar os ensurdecedores sinais do cancro que as extinguiria? a revolução sangrenta a latejar-lhes nas veias? um karakatoa ou um vesúvio prestes a desintegrá-los? uma bomba atómica assobiando dos céus - enquanto a elite (eu, neste caso) ergue ingénua e tolamente aos mesmos céus a flute de champanhe?
quarta-feira, junho 10, 2009
ÀS VEZES PERGUNTO-ME SE, COMO EDUCADOR...
Pois eu, que tenho vizinhos tão antipáticos, descubro naquele meu vizinho simpático e que cheira mal da boca uma personagem deliciosa, embora, por razões diferentes, mas óbvias, me vá procurando manter afastado de todos eles...
Estou com os meus dois rebentos no carro. O vizinho surge do nada, debruça-se sobre a janela do veículo, num gesto generoso de que depois se salvará limpando-se e sacudindo vigorosamente o cotovelo (porque, confesso, o meu bólide tem sempre um ar muito sujo; e é que talvez não seja só o ar, talvez, aqui, o ar corresponda mesmo aos factos...) .
Ele tem, coitado, sob a halitose que empesta o cubículo da viatura em que enfiou a cabeça e parte do tronco, um cravo que estende à minha Daisy.
Daisy recebe o cravinho. Não agradece. Amua. Emburra. Embirra.
Enquanto, ao volante, no fundo aguardando uma sucessão de vergonhas, vou, porém, retoricamente teimando, «Então, Daisy? Não agradeces ao vizinho? Diz obrigado, filha...», ao lado dela, o mano Dudu, furioso com a reacção da menina, lhe arranca das mãos a flor e bate uma, outra e outra vez com ela no joelho nu da petiza. Está a discipliná-la. Diz obrigado, diz obrigado, diz obrigado, insiste. O vizinho afastou-se da janela, já nervoso, já triste e ainda com mau-hálito. É um alívio. Relativo.
Arranco vagaroso e coradíssimo, deixando lá para trás o simpático homem com o ar infeliz das grandes ocasiões e a camisola com duas espécies de cotoveleiras que não são senão o sujo que lhe ficou agarrado por se apoiar à janela do meu carro; vejo, pelo espelho retrovisor, nos bancos de trás, o meu filho, ainda furibundo, a minha filha, chorando muito e um cravinho arruinado...
Estou com os meus dois rebentos no carro. O vizinho surge do nada, debruça-se sobre a janela do veículo, num gesto generoso de que depois se salvará limpando-se e sacudindo vigorosamente o cotovelo (porque, confesso, o meu bólide tem sempre um ar muito sujo; e é que talvez não seja só o ar, talvez, aqui, o ar corresponda mesmo aos factos...) .
Ele tem, coitado, sob a halitose que empesta o cubículo da viatura em que enfiou a cabeça e parte do tronco, um cravo que estende à minha Daisy.
Daisy recebe o cravinho. Não agradece. Amua. Emburra. Embirra.
Enquanto, ao volante, no fundo aguardando uma sucessão de vergonhas, vou, porém, retoricamente teimando, «Então, Daisy? Não agradeces ao vizinho? Diz obrigado, filha...», ao lado dela, o mano Dudu, furioso com a reacção da menina, lhe arranca das mãos a flor e bate uma, outra e outra vez com ela no joelho nu da petiza. Está a discipliná-la. Diz obrigado, diz obrigado, diz obrigado, insiste. O vizinho afastou-se da janela, já nervoso, já triste e ainda com mau-hálito. É um alívio. Relativo.
Arranco vagaroso e coradíssimo, deixando lá para trás o simpático homem com o ar infeliz das grandes ocasiões e a camisola com duas espécies de cotoveleiras que não são senão o sujo que lhe ficou agarrado por se apoiar à janela do meu carro; vejo, pelo espelho retrovisor, nos bancos de trás, o meu filho, ainda furibundo, a minha filha, chorando muito e um cravinho arruinado...
terça-feira, junho 09, 2009
TCHAK!
Julião conseguira que os pais o deixassem levar a sua mana, Perlimpimpim, às festas da Rã, nessa auspiciosa noite em que actuava Quim Barreiros.
A irmã pequenina, quatro minúsculos aninhos, dependurava-se-lhe da mão.
Julião nem por um momento largou a mão de Perlimpimpim. Atravessavam a multidão compacta de velhos e de jovens que dançavam euforicamente, enquanto, de um palco profusamente iluminado, Quim Barreiros, com o chapéu preto, o bigode e o acordeão, assentando-lhe como tiques pessoais, cantava as costumeiras cançonetas de duplo sentido.
Sentia a mão de Perlimpim enfiada na sua mão suada, no meio de rapazes que nadavam por entre a multidão, para salvar copos plásticos cheios de cerveja; sentia a mão presa ao corpinho da menina, o qual, mesmo pequenino, se lhe tornava pesado por causa da resistência que opunha: a menina que esbarrava com pessoas, ou que fazia força para ficar para trás, ou que tentava seguir noutra direcção.
Julião não a largava, porque temia mulheres ansiosas por ser mães, prontas a raptar, temia pedófilos, ladrões e traficantes de órgãos. Gostava de sentir o peso da resistência de Perlimpimpim, entre bêbedos e coros. Aliás, a menina habituava-se, ajustava-se-lhe ao movimento, seguia-lhe o ritmo: já lhe sentia a mãozinha mais leve, sem opor resistência, sem procurar outras direcções, sem se atrasar contra os corpos da multidão.
E Barreiros cantava, cantava, cantava...
Olhou, comovido, para a sua mana que o seguia agora tão sem luta, tão adestrada.
Olhou. Não havia mana. Havia a mão da mana. Só uma mão, decepada pelo pulso!
A irmã pequenina, quatro minúsculos aninhos, dependurava-se-lhe da mão.
Julião nem por um momento largou a mão de Perlimpimpim. Atravessavam a multidão compacta de velhos e de jovens que dançavam euforicamente, enquanto, de um palco profusamente iluminado, Quim Barreiros, com o chapéu preto, o bigode e o acordeão, assentando-lhe como tiques pessoais, cantava as costumeiras cançonetas de duplo sentido.
Sentia a mão de Perlimpim enfiada na sua mão suada, no meio de rapazes que nadavam por entre a multidão, para salvar copos plásticos cheios de cerveja; sentia a mão presa ao corpinho da menina, o qual, mesmo pequenino, se lhe tornava pesado por causa da resistência que opunha: a menina que esbarrava com pessoas, ou que fazia força para ficar para trás, ou que tentava seguir noutra direcção.
Julião não a largava, porque temia mulheres ansiosas por ser mães, prontas a raptar, temia pedófilos, ladrões e traficantes de órgãos. Gostava de sentir o peso da resistência de Perlimpimpim, entre bêbedos e coros. Aliás, a menina habituava-se, ajustava-se-lhe ao movimento, seguia-lhe o ritmo: já lhe sentia a mãozinha mais leve, sem opor resistência, sem procurar outras direcções, sem se atrasar contra os corpos da multidão.
E Barreiros cantava, cantava, cantava...
Olhou, comovido, para a sua mana que o seguia agora tão sem luta, tão adestrada.
Olhou. Não havia mana. Havia a mão da mana. Só uma mão, decepada pelo pulso!
domingo, junho 07, 2009
A FINTA
Guardo no meu espírito o momento mais glorioso de toda a minha vida.
Eu era um razoável jogador de basquete: aprendera a enganar os adversários, fingindo que ia passar a bola para o companheiro daqui e passando-a, afinal, para o dali. O meu problema, se bem me lembro, é que, frequentemente, acabava enganando também os colegas de equipa. Como entortava os olhos e fazia «bluff», aquele a quem acabava por passar nunca estava à espera da bola e perdia-a, irremediavelmente.
Mas se, pelo menos, no basquete tinha uma certa graça, ainda que pudesse não ser eficaz, no futebol fui sempre um desastre. Um sismo. O terror, mas o terror do meu grupo!
Essa é a razão por que não posso deixar de recordar, maravilhado, o dia em que, em pleno jogo, fugia eu com a bola ao Rui Lagartixo - reverenciado por todos como uma espécie de Cristiano Ronaldo -, aquele se aproximou de mim, eu passei a bola do meu pé direito para o meu esquerdo, mas, logo após, quando o Rui a procurava no pé esquerdo, a tornei a passar para o direito, tudo num movimento tão despropositado em mim, tão inadvertido, tão, aliás, sem eu o querer nem saber bem como o estava a fazer, que o Rui Lagartixo se atrapalhou e caiu redondo no chão.
Lembro-me, como se estivesse a ver num filme, da multidão que enchia o ginásio (ou será a minha memória que acrescenta essa multidão...?) a pôr-se de pé, ovacionando-me, incrédula, ansiosa por me levar em ombros. Havia lágrimas. De espanto, só podiam ser de espanto.
Nunca mais fui capaz de repetir uma tal finta. Nem com os garotos de três anos, na praia...
Eu era um razoável jogador de basquete: aprendera a enganar os adversários, fingindo que ia passar a bola para o companheiro daqui e passando-a, afinal, para o dali. O meu problema, se bem me lembro, é que, frequentemente, acabava enganando também os colegas de equipa. Como entortava os olhos e fazia «bluff», aquele a quem acabava por passar nunca estava à espera da bola e perdia-a, irremediavelmente.
Mas se, pelo menos, no basquete tinha uma certa graça, ainda que pudesse não ser eficaz, no futebol fui sempre um desastre. Um sismo. O terror, mas o terror do meu grupo!
Essa é a razão por que não posso deixar de recordar, maravilhado, o dia em que, em pleno jogo, fugia eu com a bola ao Rui Lagartixo - reverenciado por todos como uma espécie de Cristiano Ronaldo -, aquele se aproximou de mim, eu passei a bola do meu pé direito para o meu esquerdo, mas, logo após, quando o Rui a procurava no pé esquerdo, a tornei a passar para o direito, tudo num movimento tão despropositado em mim, tão inadvertido, tão, aliás, sem eu o querer nem saber bem como o estava a fazer, que o Rui Lagartixo se atrapalhou e caiu redondo no chão.
Lembro-me, como se estivesse a ver num filme, da multidão que enchia o ginásio (ou será a minha memória que acrescenta essa multidão...?) a pôr-se de pé, ovacionando-me, incrédula, ansiosa por me levar em ombros. Havia lágrimas. De espanto, só podiam ser de espanto.
Nunca mais fui capaz de repetir uma tal finta. Nem com os garotos de três anos, na praia...
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glórias verdadeiras ou imaginadas
ORIENTAÇÃO
Devemos ter na vida, diz-me o senhor Azevedo, pelo menos uma certeza: nem que seja uma ideia suficientemente segura para nos nortear os passos.
Penso que tenho uma certeza:
O uísque, para mim, deve ser sempre com cinco pedras de gelo.
Penso que tenho uma certeza:
O uísque, para mim, deve ser sempre com cinco pedras de gelo.
HÁ QUEM DIGA QUE PODE ATÉ PERDOAR, MAS NÃO ESQUECE...
... Eu, pelo contrário, posso esquecer.
Na minha idade, é mesmo perfeitamente natural que esqueça.
Mas não perdoo.
Deve ser precisamente por essa razão que chego a este ponto do meu percurso com uma longa lista de questões que me recuso a perdoar, embora, para ser sincero, não me lembre muito bem em que consistiu cada uma dessas questões.
Na minha idade, é mesmo perfeitamente natural que esqueça.
Mas não perdoo.
Deve ser precisamente por essa razão que chego a este ponto do meu percurso com uma longa lista de questões que me recuso a perdoar, embora, para ser sincero, não me lembre muito bem em que consistiu cada uma dessas questões.
quarta-feira, junho 03, 2009
um caso
O macambúzio senhor Portugal não consegue tirar do espírito a vizinha Espanha...
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e como raio querem que classifique isto?
NOVIDADES
É só para dizer, queridos amigos, que o meu silêncio neste blogue nada tem de preocupante. Acontece tão somente que me tenho distribuído por alguns outros blogues, nomeadamente um sobre cinema (em conjunto com o grupo de cinema da eslav, o Gostos Discutem-se), outro de poesia, mais um de textos do Caradanjo...
Entretanto, no blogue do Clube de Cinema, aventurei-me a aprender a usar os recursos tecnológicos que tenho à minha disposição. Reparem. Por exemplo, cliquem realmente no nome em causa.Viram? É um exemplo. Outro? Cá vai.
Vamo-nos vendo por aí...
Entretanto, no blogue do Clube de Cinema, aventurei-me a aprender a usar os recursos tecnológicos que tenho à minha disposição. Reparem. Por exemplo, cliquem realmente no nome em causa.Viram? É um exemplo. Outro? Cá vai.
Vamo-nos vendo por aí...
quinta-feira, maio 28, 2009
AFORISMO SENTIDO
Os gostos comuns e partilhados, quase sempre nos dividem e separam profundamente.
Tanto como os gostos diferentes podem aproximar as pessoas...
Tanto como os gostos diferentes podem aproximar as pessoas...
sexta-feira, maio 22, 2009
terça-feira, maio 19, 2009
UMA HISTÓRIA CADA VEZ MENOS RECOMENDÁVEL
O senhor T. soube imediatamente da maledicência. No bairro social tudo se sabia, se não pelo sapateiro coxo, pela viúva dos galões com torradinha, se não por ela, pelo drogado que não largava os transeuntes enquanto lhe não aviassem uns trocos.
O senhor T. ficou furibundo.
E um dia, telefonou a Dona B. que, quando lhe reconheceu a voz esqueceu tudo, o ressentimento e o rancor, a tristeza.
Contudo, o senhor T. vinha seco como... como... não sei, por ora só me ocorrem comparações sem lustro: vinha com uma voz seca, enfim.
- Dona B . - regougou ele -, se eu sei que a senhora diz mais uma palavra, uma que seja, acerca de mim, da minha mãe, dos meus sobrinhos, garanto-lhe que eu conto o seu segredo à polícia!
Dona B. não tinha qualquer segredo. Se tinha, não se lembrava. Que seria? Mas o certo é que aquelas palavras a atingiram como se o tivesse. A verdade é que acreditou que tinha um segredo grave e profundo que, por qualquer razão, a polícia gostaria de saber. Ou não gostaria de saber. Estava confusa. E culpada, sentia-se terrivelmente culpada por carregar um segredo tão terrível e tão oculto que até ela o ignorava.
Eis a origem de tudo: foi a partir daqui que decidiu - e principiou a planear meticulosamente - o assassínio do senhor T.
Havia que preservar o seu segredo.
O senhor T. ficou furibundo.
E um dia, telefonou a Dona B. que, quando lhe reconheceu a voz esqueceu tudo, o ressentimento e o rancor, a tristeza.
Contudo, o senhor T. vinha seco como... como... não sei, por ora só me ocorrem comparações sem lustro: vinha com uma voz seca, enfim.
- Dona B . - regougou ele -, se eu sei que a senhora diz mais uma palavra, uma que seja, acerca de mim, da minha mãe, dos meus sobrinhos, garanto-lhe que eu conto o seu segredo à polícia!
Dona B. não tinha qualquer segredo. Se tinha, não se lembrava. Que seria? Mas o certo é que aquelas palavras a atingiram como se o tivesse. A verdade é que acreditou que tinha um segredo grave e profundo que, por qualquer razão, a polícia gostaria de saber. Ou não gostaria de saber. Estava confusa. E culpada, sentia-se terrivelmente culpada por carregar um segredo tão terrível e tão oculto que até ela o ignorava.
Eis a origem de tudo: foi a partir daqui que decidiu - e principiou a planear meticulosamente - o assassínio do senhor T.
Havia que preservar o seu segredo.
segunda-feira, maio 18, 2009
UMA HISTÓRIA POUCO RECOMENDÁVEL
Dona B. devia ao padeiro e devia na mercearia.
Não devia à sorte, não devia à natureza, que lhe fora madrasta, não devia à saúde (embora devesse na farmácia) e nada devia à bondade. É até aceitável que uma pessoa como Dona B. nada devesse à bondade: uma criatura minada por uma doença maligna, com uma corcunda que se desenvolvera tragicamente nos últimos anos, feia como os palavrões mais obscenos, que diabo!, teria alguma razão para ser bondosa?
Houve um período curto e brilhante de equívoco na vida, quando julgou que uma família de vizinhos seus (uma idosa e o filho mais os netos dela e sobrinhos dele) se interessava pela sua pessoa. Os meninos, por exemplo, procuravam-na para lhe oferecerem desenhos - que ela aceitava, comovida, dizendo «Ah, que lindo! Vou já pendurar na parede» e que retribuía com uma notita de cinco euros, sem perceber que os garotos não lhos ofertavam senão por causa dos cinco euros...
Mas, mais que os meninos, havia o senhor T., barbudo e bondoso, que a levava a passear, a pé, por tardes soalheiras, conversando muito com ela, perguntando-lhe pela saúde, conduzindo-a, depois de um cafezito, de regresso à porta.
Um dia, o idílico equívoco explodiu em fragmentos duros.
Dona B. já nem se lembrava bem do que sucedera. Seria porque uma vez não tinha à mão cinco euros para os garotos? Ou porque estes não lhe haviam feito um recado? Ou a avó dos miúdos, Madame Márcia, afiançara, ofensivamente, que era mais doente do que a própria Dona B? Alguém da família lhe recusara uma das prendas com que, no fundo, Dona B. lhes comprava o interesse e o carinho...? Já nem sabia. O pior foi que, como numa corrente de peças do dominó a fazer tombar sucessivamente a seguinte, também o senhor T., filho adulto de Madame Márcia e tio dos garotos, que vivia com esta e com estes, começou a não ter tempo, ou a não ter paciência para as conversas e para os passeios com Dona B.
O que Dona B. não lhe perdoou: e, portanto, começou a dizer mal da família vizinha em geral mas, principalmente, do senhor T.
Não devia à sorte, não devia à natureza, que lhe fora madrasta, não devia à saúde (embora devesse na farmácia) e nada devia à bondade. É até aceitável que uma pessoa como Dona B. nada devesse à bondade: uma criatura minada por uma doença maligna, com uma corcunda que se desenvolvera tragicamente nos últimos anos, feia como os palavrões mais obscenos, que diabo!, teria alguma razão para ser bondosa?
Houve um período curto e brilhante de equívoco na vida, quando julgou que uma família de vizinhos seus (uma idosa e o filho mais os netos dela e sobrinhos dele) se interessava pela sua pessoa. Os meninos, por exemplo, procuravam-na para lhe oferecerem desenhos - que ela aceitava, comovida, dizendo «Ah, que lindo! Vou já pendurar na parede» e que retribuía com uma notita de cinco euros, sem perceber que os garotos não lhos ofertavam senão por causa dos cinco euros...
Mas, mais que os meninos, havia o senhor T., barbudo e bondoso, que a levava a passear, a pé, por tardes soalheiras, conversando muito com ela, perguntando-lhe pela saúde, conduzindo-a, depois de um cafezito, de regresso à porta.
Um dia, o idílico equívoco explodiu em fragmentos duros.
Dona B. já nem se lembrava bem do que sucedera. Seria porque uma vez não tinha à mão cinco euros para os garotos? Ou porque estes não lhe haviam feito um recado? Ou a avó dos miúdos, Madame Márcia, afiançara, ofensivamente, que era mais doente do que a própria Dona B? Alguém da família lhe recusara uma das prendas com que, no fundo, Dona B. lhes comprava o interesse e o carinho...? Já nem sabia. O pior foi que, como numa corrente de peças do dominó a fazer tombar sucessivamente a seguinte, também o senhor T., filho adulto de Madame Márcia e tio dos garotos, que vivia com esta e com estes, começou a não ter tempo, ou a não ter paciência para as conversas e para os passeios com Dona B.
O que Dona B. não lhe perdoou: e, portanto, começou a dizer mal da família vizinha em geral mas, principalmente, do senhor T.
sexta-feira, maio 08, 2009
CONVERSA ACABADINHA DE SUCEDER
No Bar da escola:
EU - Já cá está? Cedíssimo, caramba. E mora longe, não é? Então a que horas é que acorda?!
DONA - Ai, às cinco horas da manhã, professor...
EU - Cinco? Mas com certeza que se deita com as galinhas...
DONA - Nem por isso, é conforme. Olhe, quando joga o Benfica é até às tantas..! [A chorar no pós-jogo, penso eu, mas não digo, mas não digo...]
EU - Ah, estou a ver. Mas sabe, precisar de poucas horas de sono é próprio dos génios. Por exemplo, o Professor Marcelo...
DONA - Ah, não é o meu caso. Eu sou Sagitário!
EU - Já cá está? Cedíssimo, caramba. E mora longe, não é? Então a que horas é que acorda?!
DONA - Ai, às cinco horas da manhã, professor...
EU - Cinco? Mas com certeza que se deita com as galinhas...
DONA - Nem por isso, é conforme. Olhe, quando joga o Benfica é até às tantas..! [A chorar no pós-jogo, penso eu, mas não digo, mas não digo...]
EU - Ah, estou a ver. Mas sabe, precisar de poucas horas de sono é próprio dos génios. Por exemplo, o Professor Marcelo...
DONA - Ah, não é o meu caso. Eu sou Sagitário!
domingo, abril 26, 2009
AS PESSOAS BRILHANTES PODEM ATRASAR-SE À VONTADE
Tinha jurado à minha pessoa que traçaria uma clara fronteira entre o conteúdo deste meu blogue e o exercício da profissão que exerço. Política cabe aqui bem, vida familiar - que é, aliás, uma forma de política, com revoluções e rápidas mudanças de breves democracias para longas ditaduras... entre irrupções de anarquia a torto e a direito - também cabe, ou comentário sobre cinema e literatura: profissão é que não, vá-se lá saber porquê.
No entanto, tenho de reconhecer que a maioria das histórias mais pitorescas que sofro se passam comigo na minha qualidade de professor. E portanto, como todas as regras, também esta não faz sentido se eu a não quebrar sempre que haja um motivo mais forte do que ela...
Para inclusão num conjunto de actividades ligadas ao Humor que, ao longo de uma semana, constituiriam a Semana do Humor (O Humor Vem à Escola), decidi convidar o brilhantíssimo A. T., actor, realizador e contador de engraçadíssimas histórias populares...
Combinei com ele que o iria buscar ao comboio, a Algés, às duas e meia, de forma a chegarmos à escola às três, hora aprazada - e anunciadíssima - para o início da sua sessão.
Por volta da uma hora, recebo um telefonema. «Vou chegar um pouco atrasado. Não te plantes em Algés às duas e meia: eu telefono-te quando estiver a chegar...»
Devo confessar que tenho, precisamente, um problema psicológico em relação às horas. Sou o tal que uma vez combinou ir a casa de um professor ao meio-dia e, chegando ao local às onze horas, ficou a dar voltas ao bairro de modo a poder, exactamente ao meio-dia, estar a com o dedo sobre a campaínha da porta. Aberta seguidamente pelo senhor, que me sorria, um pouco perplexo: «Gil Duarte! Mas isto é pontualidade britânica...»
Portanto, o telefonema de A. não me acalmou. E, ansioso como sou, precisamente às duas e meia, contra as indicações, lá me «plantei em Algés» esperando por novidades.
Eram duas e trinta e cinco e nada, duas e quarenta e nada. Passavam alguns pretos, mas nada do meu preto!
Eram dez para as três e nada.
O tempo apertava-se. Sentia um nó no estômago: devia ser o tempo a esmagar-me.
Às três horas, comecei a imaginar, na escola, os professores e os alunos que se preparavam para assistir à sessão, sentando-se, tossicando, conversando animadamente com o colega do lado.
Às três e cinco, nada de telefonema.
Às três e dez, já só imaginava as primeiras impaciências, o desgosto de professores a quem eu pedira que não dessem a sua aula para poderem estar antes presentes com a turma: que fossem antes ver e ouvir o magnífico A.T.
Às três e quinze, telefonei-lhe: tinha o telemóvel desligado.
Às três e vinte já só me povoavam a cabeça imagens de revolta, alunos gritando, pessoas pateando, livros sendo arremessados, todos insultando-me mentalmente, todos cortando mentalmente relações comigo...
Às três e trinta e cinco, recebo um telefonema de A.: que sabia que estava atrasado; que se encontrava ainda em Lisboa; que já não ia a Algés; que se metia num táxi e seguia directamente para a escola. Que, aliás, já estava no táxi. Que eu lhe desse a morada.
E, no meio da atrapalhação, dos nervos, gaguejando muito, pedi-lhe que informasse o senhor taxista que fosse então, por favor, ter à Escola Secundária de Linda-a-velha, vagamente não muito longe do Pingo-doce.
E, acrescento, subitamente lúcido: «Rua Luísa Todi. É na rua Luísa Todi».
Desligamos. Falo para alguém que, na escola, me possa dizer qualquer coisa sobre a situação: os alunos estão a aguentar, respondem-me, os professores tomam café, mas, perguntam-me, que se passa, está tudo bem?
Explico que o senhor se meteu num táxi e segue já. Assalta-me uma dúvida:
«A escola é na rua Luísa Todi não é?»
Não era. Não é. A Escola Secundária de Linda-a-velha está, desde há muitos anos, na mesma Rua Carolina Michaëlis de sempre...
Quero tornar a entrar em contacto com o A. Já não lhe encontro o número. Peço, por favor, a alguém da escola que lhe telefone e faça a correcção.
De toda esta história, interessa a conclusão:
A. T. chegou. Atrasado é dizer pouco. Principiou a falar. Espirravam os primeiros risos. Depois, gargalhadas. Falou ininterruptamente durante mais de uma hora, criando permanentemente, em torno, aquele delicioso ruído do riso colectivo.
A. T., como sempre, foi brilhante. Brilhante!
No entanto, tenho de reconhecer que a maioria das histórias mais pitorescas que sofro se passam comigo na minha qualidade de professor. E portanto, como todas as regras, também esta não faz sentido se eu a não quebrar sempre que haja um motivo mais forte do que ela...
Para inclusão num conjunto de actividades ligadas ao Humor que, ao longo de uma semana, constituiriam a Semana do Humor (O Humor Vem à Escola), decidi convidar o brilhantíssimo A. T., actor, realizador e contador de engraçadíssimas histórias populares...
Combinei com ele que o iria buscar ao comboio, a Algés, às duas e meia, de forma a chegarmos à escola às três, hora aprazada - e anunciadíssima - para o início da sua sessão.
Por volta da uma hora, recebo um telefonema. «Vou chegar um pouco atrasado. Não te plantes em Algés às duas e meia: eu telefono-te quando estiver a chegar...»
Devo confessar que tenho, precisamente, um problema psicológico em relação às horas. Sou o tal que uma vez combinou ir a casa de um professor ao meio-dia e, chegando ao local às onze horas, ficou a dar voltas ao bairro de modo a poder, exactamente ao meio-dia, estar a com o dedo sobre a campaínha da porta. Aberta seguidamente pelo senhor, que me sorria, um pouco perplexo: «Gil Duarte! Mas isto é pontualidade britânica...»
Portanto, o telefonema de A. não me acalmou. E, ansioso como sou, precisamente às duas e meia, contra as indicações, lá me «plantei em Algés» esperando por novidades.
Eram duas e trinta e cinco e nada, duas e quarenta e nada. Passavam alguns pretos, mas nada do meu preto!
Eram dez para as três e nada.
O tempo apertava-se. Sentia um nó no estômago: devia ser o tempo a esmagar-me.
Às três horas, comecei a imaginar, na escola, os professores e os alunos que se preparavam para assistir à sessão, sentando-se, tossicando, conversando animadamente com o colega do lado.
Às três e cinco, nada de telefonema.
Às três e dez, já só imaginava as primeiras impaciências, o desgosto de professores a quem eu pedira que não dessem a sua aula para poderem estar antes presentes com a turma: que fossem antes ver e ouvir o magnífico A.T.
Às três e quinze, telefonei-lhe: tinha o telemóvel desligado.
Às três e vinte já só me povoavam a cabeça imagens de revolta, alunos gritando, pessoas pateando, livros sendo arremessados, todos insultando-me mentalmente, todos cortando mentalmente relações comigo...
Às três e trinta e cinco, recebo um telefonema de A.: que sabia que estava atrasado; que se encontrava ainda em Lisboa; que já não ia a Algés; que se metia num táxi e seguia directamente para a escola. Que, aliás, já estava no táxi. Que eu lhe desse a morada.
E, no meio da atrapalhação, dos nervos, gaguejando muito, pedi-lhe que informasse o senhor taxista que fosse então, por favor, ter à Escola Secundária de Linda-a-velha, vagamente não muito longe do Pingo-doce.
E, acrescento, subitamente lúcido: «Rua Luísa Todi. É na rua Luísa Todi».
Desligamos. Falo para alguém que, na escola, me possa dizer qualquer coisa sobre a situação: os alunos estão a aguentar, respondem-me, os professores tomam café, mas, perguntam-me, que se passa, está tudo bem?
Explico que o senhor se meteu num táxi e segue já. Assalta-me uma dúvida:
«A escola é na rua Luísa Todi não é?»
Não era. Não é. A Escola Secundária de Linda-a-velha está, desde há muitos anos, na mesma Rua Carolina Michaëlis de sempre...
Quero tornar a entrar em contacto com o A. Já não lhe encontro o número. Peço, por favor, a alguém da escola que lhe telefone e faça a correcção.
De toda esta história, interessa a conclusão:
A. T. chegou. Atrasado é dizer pouco. Principiou a falar. Espirravam os primeiros risos. Depois, gargalhadas. Falou ininterruptamente durante mais de uma hora, criando permanentemente, em torno, aquele delicioso ruído do riso colectivo.
A. T., como sempre, foi brilhante. Brilhante!
quinta-feira, abril 23, 2009
quinta-feira, abril 16, 2009
segunda-feira, abril 13, 2009
GRAN TORINO
Uma grande obra - seja um romance ou um poema, uma pintura ou, como é aqui o caso, um filme - não é necessariamente uma obra isenta de erros, mas uma que, na visão de conjunto que instaura, no todo que é, consegue que a própria grandeza torne perfeitamente irrelevantes todos os seus erros. Diria que uma obra-prima precisa de falhas para se medir com elas: é grande na medida em que lhes sobrevive, as torna esquecíveis, as converte em pormenores que nada do essencial diminuem.
Gran Torino tem erros: desde o início, o óbvio tende a impor-se demasiado. Considero quase uma desconsideração, por exemplo, que o protagonista, Kowalski, um velho e intratável norte-americano de origem polaca, que nunca conseguiu compreender ou ser compreendido pelos filhos e pelas famílias que estes constituíram, agarrado a uma solitária autonomia desabridamente reforçada pelo que ele percepciona como a invasão do seu bairro por grupos de vizinhos das mais diversas etnias, precise de manter aquela espécie de solilóquio permanente, que pode ir do rosnar até uma série de frases que permitem, ao espectador, ir-se inteirando dos seus preconceitos, dos seus estados de alma, das suas raivas; do mesmo modo, todos os pequenos diálogos entre outras personagens - como o dos dois filhos, na igreja, ou entre um dos filhos e a esposa, no seu jipe «japonês» - enfermam do mesmo vício: percebe-se que se trata de ir, de forma pouco subtil, informando o espectador, apresentando-lhe os dados com que interpretará os caracteres em jogo.
As improbabilidades abundam. Por muito que Clint Eastwood queira assumir o papel de um homem idoso mas extremamente duro, duvidamos sempre do fundamento da sua capacidade para impor respeito a um gang - mesmo de pistola em punho - ou, pior ainda, para tirar da casa para fora, a murro, um jovem e possante elemento de um outro gang. Afinal, já não se trata de Dirty Harry, mas de um homem no fim da linha.
Também a ironia poética daquela sala de espera carregada de pacientes, todos eles indianos, chineses ou negros, antecâmara do anúncio proferido pela trágica profetiza do destino, precisamente uma médica chinesa, padece do mesmo tipo de excessiva linearidade. (E não é verdade que, paradoxalmente, se trata, nessa sua mesma simplicidade, de uma cena muito, muito bela e muito, muito eficaz? Importará então, realmente, que não satisfaça de imediato o nosso desejo de complexidade...?)
Poderíamos prosseguir, quase indefinidamente, a enumeração de pormenores menos convincentes, mas para quê? A partir de certo momento, nenhuma dessas falhas, essas superficialidades, essas formas fáceis e óbvias de simbolizar ou exibir tem a menor importância: porque o filme voou sobre todos os pormenores, bons ou maus, que o vão construindo como uma história perfeita: uma tragédia acerca de como, numa América rasgada entre culturas que colidem, o que importa - e faz toda a diferença - é o espaço que sobra ou se conquista para a liberdade.
Liberdade como derradeira resistência ao que o meio determina que sejamos; liberdade como ponto de fuga a todas as programações que a tradição-e-a-vida-e-os-obstáculos-e-a-aparente-ausência-de-saídas se unem para nos impor. Pode alguém como Thao não se tornar um futuro gangster, quando tudo o condiciona e empurra? Não parece provável. É, contudo, possível. Pode alguém como Kowalski, mais do que aprender a conviver com os seus vizinhos estrangeiros (questão menor), escolher, numa situação limite, inesperadamente? Optar de outro modo: como em princípio ninguém se lembraria...? Procurar ainda uma alternativa que não seja a imediata, a oferecida, a ou uma das pré-determinadas? Nem a vingança nem a indiferença? Não parece provável. Mas que é possível, que é sempre possível uma diferente maneira, um imprevisível caminho resgatador e regenerador , será, porventura, o grande trunfo e o grande segredo desta pastoral americana (para retomar a ironia de um título conhecido). É, portanto, em tudo, o contrário da escolha fascizante de um Dirty Harry. (Mas será ainda justo, depois de uma sucessão de realizações maiores, que um filme de Clint Eastwood traga, ainda que invertendo-o, o peso - ou o contrapeso - desse polícia arruaceiro que lhe marcou o início da carreira?)
Gran Torino, nome também aparentemente mal escolhido, que só ao vermos o filme percebemos que nunca poderia ser outro - é o nome matematicamente exacto - simboliza ainda, por fim (uma vez mais, demasiado linearmente? Sei lá...) esse mesmo ponto de fuga e de liberdade a que uma leitora minha chamava, há muito tempo, a «possibilidade improvável»...
Gran Torino tem erros: desde o início, o óbvio tende a impor-se demasiado. Considero quase uma desconsideração, por exemplo, que o protagonista, Kowalski, um velho e intratável norte-americano de origem polaca, que nunca conseguiu compreender ou ser compreendido pelos filhos e pelas famílias que estes constituíram, agarrado a uma solitária autonomia desabridamente reforçada pelo que ele percepciona como a invasão do seu bairro por grupos de vizinhos das mais diversas etnias, precise de manter aquela espécie de solilóquio permanente, que pode ir do rosnar até uma série de frases que permitem, ao espectador, ir-se inteirando dos seus preconceitos, dos seus estados de alma, das suas raivas; do mesmo modo, todos os pequenos diálogos entre outras personagens - como o dos dois filhos, na igreja, ou entre um dos filhos e a esposa, no seu jipe «japonês» - enfermam do mesmo vício: percebe-se que se trata de ir, de forma pouco subtil, informando o espectador, apresentando-lhe os dados com que interpretará os caracteres em jogo.
As improbabilidades abundam. Por muito que Clint Eastwood queira assumir o papel de um homem idoso mas extremamente duro, duvidamos sempre do fundamento da sua capacidade para impor respeito a um gang - mesmo de pistola em punho - ou, pior ainda, para tirar da casa para fora, a murro, um jovem e possante elemento de um outro gang. Afinal, já não se trata de Dirty Harry, mas de um homem no fim da linha.
Também a ironia poética daquela sala de espera carregada de pacientes, todos eles indianos, chineses ou negros, antecâmara do anúncio proferido pela trágica profetiza do destino, precisamente uma médica chinesa, padece do mesmo tipo de excessiva linearidade. (E não é verdade que, paradoxalmente, se trata, nessa sua mesma simplicidade, de uma cena muito, muito bela e muito, muito eficaz? Importará então, realmente, que não satisfaça de imediato o nosso desejo de complexidade...?)
Poderíamos prosseguir, quase indefinidamente, a enumeração de pormenores menos convincentes, mas para quê? A partir de certo momento, nenhuma dessas falhas, essas superficialidades, essas formas fáceis e óbvias de simbolizar ou exibir tem a menor importância: porque o filme voou sobre todos os pormenores, bons ou maus, que o vão construindo como uma história perfeita: uma tragédia acerca de como, numa América rasgada entre culturas que colidem, o que importa - e faz toda a diferença - é o espaço que sobra ou se conquista para a liberdade.
Liberdade como derradeira resistência ao que o meio determina que sejamos; liberdade como ponto de fuga a todas as programações que a tradição-e-a-vida-e-os-obstáculos-e-a-aparente-ausência-de-saídas se unem para nos impor. Pode alguém como Thao não se tornar um futuro gangster, quando tudo o condiciona e empurra? Não parece provável. É, contudo, possível. Pode alguém como Kowalski, mais do que aprender a conviver com os seus vizinhos estrangeiros (questão menor), escolher, numa situação limite, inesperadamente? Optar de outro modo: como em princípio ninguém se lembraria...? Procurar ainda uma alternativa que não seja a imediata, a oferecida, a ou uma das pré-determinadas? Nem a vingança nem a indiferença? Não parece provável. Mas que é possível, que é sempre possível uma diferente maneira, um imprevisível caminho resgatador e regenerador , será, porventura, o grande trunfo e o grande segredo desta pastoral americana (para retomar a ironia de um título conhecido). É, portanto, em tudo, o contrário da escolha fascizante de um Dirty Harry. (Mas será ainda justo, depois de uma sucessão de realizações maiores, que um filme de Clint Eastwood traga, ainda que invertendo-o, o peso - ou o contrapeso - desse polícia arruaceiro que lhe marcou o início da carreira?)
Gran Torino, nome também aparentemente mal escolhido, que só ao vermos o filme percebemos que nunca poderia ser outro - é o nome matematicamente exacto - simboliza ainda, por fim (uma vez mais, demasiado linearmente? Sei lá...) esse mesmo ponto de fuga e de liberdade a que uma leitora minha chamava, há muito tempo, a «possibilidade improvável»...
quinta-feira, abril 09, 2009
DESVENTURAS DE UM HUMORISTA COBARDOLA
O meu humor é um animal perverso e neurótico. Como eu próprio. E se, no humor bem conseguido, se trata sempre de um equilíbrio entre o racional e o irracional, então, no caso destes dois animais (eu e o meu humor), o mínimo que se deve dizer é que o equilíbrio tende a revelar-se bastante desequilibrado.
Às vezes, saem-me frases catastróficas. Depois, arrependo-me. Na altura, só consigo perceber a graça da matéria: que fira, ou que choque, ou que estrague, tudo são, infelizmente, consequências que não prevejo, situadas para além do que sou capaz de visualizar no momento em que me faço de engraçadinho...
Por exemplo, no blogue de uma amiga (clique aqui) fazia-se alusão ao alter-ego de diversos caixas-de-óculos. O que se dizia (para quem não tenha clicado ali) era, basicamente, e numa discreta alusão a um post meu, que alguns caixas-de-óculos conhecidos (como o Clark Kent, o Peter Parker etc.) são nada mais nada menos do que... autênticos super-heróis.
Alguém, num comentário, sugeria à autora que fizesse o favor de retirar da lista o «palonço do Homem-Aranha!»
E, num gesto de uma agressividade triste e gratuita, insinuei que o autor daquela comentário tinha de ser um caixa-de-óculos totó cujo alter-ego seria um caixa-de-óculos ainda mais totó. (Bem, foi levemente mais do que uma «insinuação»: foi isto mesmo que acabaram de ler o que literalmente eu escrevi!). A ideia, em si, temos de concordar, tem alguma graça. Pelo menos, pareceu-me... parecia-me...!
Muito mais tarde, caí em mim. Muito mais tarde. À noite, mais precisamente, tive um pesadelo que ainda agora me causa arrepios. No horroroso sonho, Angel, super-heroína e autora do post sobre os caixas-de-óculos, insistia, num telefonema seco, em que eu me fosse encontrar com ela a um café, onde me esperava uma surpresa. A surpresa era, tchan-tchan, o seu irmão (e a sua mãe), sendo que o irmão, que no meu sonho envergava um kispo azul e vinha de canadianas por causa de uma perna engessada, era precisamente o autor do dito comentário. (Talvez Freud nos ensinasse que a perna fracturada funcionava como subtil referência aos danos que o meu comentário ao seu comentário teriam provocado).
Do que eu enevoadamente consigo recordar, o senhor estava empenhado em bater-me com uma das canadianas, perante o veemente aplauso da mãe e da irmã.
Escusado será acrescentar que acordei perlado em suor, com o telemóvel na mão, teclando uma nervosa mensagem à minha amiga Angel no sentido de que, se ela achasse que o autor do comentário fosse pessoa «ofendidiça», capaz de reagir mal ao «meu comentário sobre o seu comentário», pois que o eliminasse.
E, para que não restassem quaisquer equívocos, esclarecia: «Eliminar o meu comentário, não eliminar o teu irmão!»
Às vezes, saem-me frases catastróficas. Depois, arrependo-me. Na altura, só consigo perceber a graça da matéria: que fira, ou que choque, ou que estrague, tudo são, infelizmente, consequências que não prevejo, situadas para além do que sou capaz de visualizar no momento em que me faço de engraçadinho...
Por exemplo, no blogue de uma amiga (clique aqui) fazia-se alusão ao alter-ego de diversos caixas-de-óculos. O que se dizia (para quem não tenha clicado ali) era, basicamente, e numa discreta alusão a um post meu, que alguns caixas-de-óculos conhecidos (como o Clark Kent, o Peter Parker etc.) são nada mais nada menos do que... autênticos super-heróis.
Alguém, num comentário, sugeria à autora que fizesse o favor de retirar da lista o «palonço do Homem-Aranha!»
E, num gesto de uma agressividade triste e gratuita, insinuei que o autor daquela comentário tinha de ser um caixa-de-óculos totó cujo alter-ego seria um caixa-de-óculos ainda mais totó. (Bem, foi levemente mais do que uma «insinuação»: foi isto mesmo que acabaram de ler o que literalmente eu escrevi!). A ideia, em si, temos de concordar, tem alguma graça. Pelo menos, pareceu-me... parecia-me...!
Muito mais tarde, caí em mim. Muito mais tarde. À noite, mais precisamente, tive um pesadelo que ainda agora me causa arrepios. No horroroso sonho, Angel, super-heroína e autora do post sobre os caixas-de-óculos, insistia, num telefonema seco, em que eu me fosse encontrar com ela a um café, onde me esperava uma surpresa. A surpresa era, tchan-tchan, o seu irmão (e a sua mãe), sendo que o irmão, que no meu sonho envergava um kispo azul e vinha de canadianas por causa de uma perna engessada, era precisamente o autor do dito comentário. (Talvez Freud nos ensinasse que a perna fracturada funcionava como subtil referência aos danos que o meu comentário ao seu comentário teriam provocado).
Do que eu enevoadamente consigo recordar, o senhor estava empenhado em bater-me com uma das canadianas, perante o veemente aplauso da mãe e da irmã.
Escusado será acrescentar que acordei perlado em suor, com o telemóvel na mão, teclando uma nervosa mensagem à minha amiga Angel no sentido de que, se ela achasse que o autor do comentário fosse pessoa «ofendidiça», capaz de reagir mal ao «meu comentário sobre o seu comentário», pois que o eliminasse.
E, para que não restassem quaisquer equívocos, esclarecia: «Eliminar o meu comentário, não eliminar o teu irmão!»
QUE SIGNIFICA «PAIZAR»?
A resposta à pergunta enunciada no título dá-se numa única linha: «paizar» significa ser pai da Daisy e do Dudu.
Às vezes, perguntam-me que faço quando não «paizo», ou seja, durante as folgas que me caibam na tarefa de tomar conta dos meus filhos.
Gosto de dar a resposta politicamente correcta: Ah, e tal, quando não estou com eles, e tal, dedico-me a desejar estar novamente com eles.
Claro que não é sincero. A resposta certa seria: «Quando não estou com eles, dedico-me a planear malfeitorias para tortura de quem me faça uma pergunta tão difícil». Mas a resposta ainda mais certa, a definitiva, seria: «Quando não estou com eles, caio imediatamente a dormir!»
O problema nunca é quando não estou com eles. Parece óbvio. O problema é: quando estou com eles.
E o que eu faço nessas ocasiões é, em geral, gritar.
Claro que não acho bem fazê-lo amiúde. E, mesmo não sendo crente, peço muitas vezes a Deus que me dê forças para ter paciência e não desatar aos gritos com os petizes. A oração completa, aliás, é assim: «Dá-me forças, Deus meu, para não gritar com estas crianças! Mas não precisas de te apressar. Deixa-me só dar, primeiro, uns gritos...»
Em certas ocasiões, é maravilhoso estar com os meus filhos. Ocorre sempre que estão a dormir. Contemplar aqueles rostos calmos, na penumbra, vê-los tapadinhos até ao queixo, aspirar o silêncio da casa, revitaliza-me, rejuvenesce-me.
Perguntam-me: estás a ser irónico, não estás? É um texto exagerado, não é? Uma caricatura, pois sim?
Claro que exagero. Há muitos outros momentos em que adoro estar com eles. Por exemplo, mesmo quando estão a dormir sem estarem tapados até ao queixo...
Às vezes, perguntam-me que faço quando não «paizo», ou seja, durante as folgas que me caibam na tarefa de tomar conta dos meus filhos.
Gosto de dar a resposta politicamente correcta: Ah, e tal, quando não estou com eles, e tal, dedico-me a desejar estar novamente com eles.
Claro que não é sincero. A resposta certa seria: «Quando não estou com eles, dedico-me a planear malfeitorias para tortura de quem me faça uma pergunta tão difícil». Mas a resposta ainda mais certa, a definitiva, seria: «Quando não estou com eles, caio imediatamente a dormir!»
O problema nunca é quando não estou com eles. Parece óbvio. O problema é: quando estou com eles.
E o que eu faço nessas ocasiões é, em geral, gritar.
Claro que não acho bem fazê-lo amiúde. E, mesmo não sendo crente, peço muitas vezes a Deus que me dê forças para ter paciência e não desatar aos gritos com os petizes. A oração completa, aliás, é assim: «Dá-me forças, Deus meu, para não gritar com estas crianças! Mas não precisas de te apressar. Deixa-me só dar, primeiro, uns gritos...»
Em certas ocasiões, é maravilhoso estar com os meus filhos. Ocorre sempre que estão a dormir. Contemplar aqueles rostos calmos, na penumbra, vê-los tapadinhos até ao queixo, aspirar o silêncio da casa, revitaliza-me, rejuvenesce-me.
Perguntam-me: estás a ser irónico, não estás? É um texto exagerado, não é? Uma caricatura, pois sim?
Claro que exagero. Há muitos outros momentos em que adoro estar com eles. Por exemplo, mesmo quando estão a dormir sem estarem tapados até ao queixo...
segunda-feira, abril 06, 2009
VELHICE
Claro, caramba!, que também não é caso para se ver o envelhecimento propriamente como um drama. É uma tragédia.
Mas caso, amigo leitor, estas palavras lhe parecem cruéis, pessimistas e, portanto, politicamente incorrectas, sempre posso esclarecê-las melhor: não é a velhice em si que me preocupa. É a velhice em mim.
Dou incontornavelmente de caras com ela, com a velhice em mim, quando a oftalmologista me aconselha uns óculos com janelinhas para ver ao perto. Ou seja, uns óculos para ver ao longe com janelinhas por onde devo olhar quando estiver, por exemplo, a ler. O que é sempre complicado. Imaginem a situação em que eu tenha de olhar bem de frente, olhos nos olhos, uma pessoa próxima - seja um inimigo que se prepara para investir, seja a mulher amada que se prepara para investir...
Bem! Aparentemente, terei então de baixar os olhos (e não alinhá-los numa linha recta com o olhar de quem me olha), de forma a que os nossos olhares se enfrentem, sim, mas enquadrados nas minhas janelinhas...
Mas não, nem foi tanto essa proposta o que mais me incomodou: mas a maneira como a rapariga, muito novinha, me tratava.
«Bem, senhor Duarte, então vamos lá espreitar para esse olhinho, sim? Hmm, estou a ver. Tem de descansar a vistinha, senhor Duarte. Sabe o que lhe está a contecer? Eu já lhe digo, tenho ali uns bonecos muito bonitos que explicam tudo!»
E, de repente, já não tenho mãos, tenho mãozinhas, não tenho queixo, tenho queixinho, ou testinha: «Encoste o queixinho e a testinha neste aparelho, sim, senhor Duarte, vá lá!»
E enquanto eu recusava, num assomo serôdio de dignidade, numa réstea atrasada de juventude, os óculos de lentes progressivas, a menina insistia cada vez nas suas inúmeras vantagens.
Estive quase para lhe perguntar: «Mas para diabo que insiste? Há alguma promoção com a idade, é?»
Mas caso, amigo leitor, estas palavras lhe parecem cruéis, pessimistas e, portanto, politicamente incorrectas, sempre posso esclarecê-las melhor: não é a velhice em si que me preocupa. É a velhice em mim.
Dou incontornavelmente de caras com ela, com a velhice em mim, quando a oftalmologista me aconselha uns óculos com janelinhas para ver ao perto. Ou seja, uns óculos para ver ao longe com janelinhas por onde devo olhar quando estiver, por exemplo, a ler. O que é sempre complicado. Imaginem a situação em que eu tenha de olhar bem de frente, olhos nos olhos, uma pessoa próxima - seja um inimigo que se prepara para investir, seja a mulher amada que se prepara para investir...
Bem! Aparentemente, terei então de baixar os olhos (e não alinhá-los numa linha recta com o olhar de quem me olha), de forma a que os nossos olhares se enfrentem, sim, mas enquadrados nas minhas janelinhas...
Mas não, nem foi tanto essa proposta o que mais me incomodou: mas a maneira como a rapariga, muito novinha, me tratava.
«Bem, senhor Duarte, então vamos lá espreitar para esse olhinho, sim? Hmm, estou a ver. Tem de descansar a vistinha, senhor Duarte. Sabe o que lhe está a contecer? Eu já lhe digo, tenho ali uns bonecos muito bonitos que explicam tudo!»
E, de repente, já não tenho mãos, tenho mãozinhas, não tenho queixo, tenho queixinho, ou testinha: «Encoste o queixinho e a testinha neste aparelho, sim, senhor Duarte, vá lá!»
E enquanto eu recusava, num assomo serôdio de dignidade, numa réstea atrasada de juventude, os óculos de lentes progressivas, a menina insistia cada vez nas suas inúmeras vantagens.
Estive quase para lhe perguntar: «Mas para diabo que insiste? Há alguma promoção com a idade, é?»
domingo, abril 05, 2009
ENSAIO SOBRE A NEUROSE
Sempre achara curioso e entusiasmante o facto de ter uma tia mais nova do que ele.
Hoje, iria conhecê-la.
Tinha pena de que o tempo fosse tão curto, atendendo a que:
a) havia que deixar o pai, muito idoso e tremente, mais as três dezenas de comprimidos de cores variadas, na casa da senhora marquesa, que não prescindia da sua visita - na verdade, era a senhora quem visitava o velhinho doente: só que, tratando-se de uma marquesa, insistia em que fosse o idoso a deslocar-se à sua residência...
b) seguidamente, encontrar-se-ia com a tia para a conhecer mas que, depois, cerca de três quartos de hora mais tarde, teria de:
c) conduzir ao aeroporto - mas tendo, entretanto, passado de novo pela casa da senhora marquesa, aonde iria buscar o pai.
Uma vez no aeroporto, a tia mais nova do que ele, seu sobrinho, dir-lhe-ia adeus e rumaria para as antípodas. Que diacho: ser sobrinho mais velho do que uma tia que vivia nas antípodas de si.
No plano confuso, mal enjorcado, só a custo conseguindo prever as demoras do pai, primeiro a sair do carro, muito tremente, e a seguir, três quartos de hora mais tarde, reentrando no carro, sempre muito tremente, nesse plano fazia-lhe particular impressão ter de contar com este pormenor: existia um traço contínuo que o impedia de fazer a manobra que mais lhe convinha para chegar à casa da marquesa: em vez disso, tinha de seguir mais quase uns cinco ou seis minutos até ao fim da rua para, contornando a rotunda, voltar para trás e, em sentido contrário poder, finalmente, virar para a ruazinha da senhora marquesa. Cinco ou seis minutos desperdiçados!
Chegaram. O pai saiu. «Leva os remédios, pai?». Não lhe respondeu. Também não esperara resposta, tinha perguntado porque sim. O mordomo ajudava o senhor. Margarida, de carrapito e avental branco sobre o vestido negro, ajudava-o, do outro lado. E, sem se preocupar mais, disparou.
A sua tia era uma repariga de dezanove anos. Tímida. De cabeça baixa. Olhava-o de soslaio. Falava pouco, com a pronúncia típica das antípodas. Ofereceu-lhe chá. Ele não se sentia bem pelo facto de estar constantemente a olhar para o relógio de pulso, como certos médicos já esgotados com a persistência de alguns pacientes demasiado faladores. Mas não tinha alternativa. Mais do que o pai, havia o pormenor da traço contínuo,do desvio pela rotunda. Cinco minutos. Se fosse atrás de uma lesma, como sucede frequentemente, poderia ser atraso de dez minutos.
Quando achou que era chegada a hora, advertiu-a. A tia levava poucas malas. Carregou-as, com a ajuda do porteiro, um senhor com dedos amarelos de nicotina e hálito de urso.
Entraram no carro. Voou.
Levou quase um quarto de hora até à malfadada rotunda, porque houvera um acidente e se formara uma pequena fila. Refreava-se, diante da tia, para não buzinar, para não olhar para as horas, para não gritar impropérios. Suava abundantemente, martelava, nervoso, com o pé sobre o pedal, tamborilava na mudança.
Feita a rotunda, já à vista da casa da marquesa, reparou na criada Margarida, que corria em direcção ao carro, acenando muito.
«O seu pai, senhor Donato. O seu pai. O seu pai morreu!»
Deu um suspiro de alívio: poupava uns minutos com a entrada do pai no carro.
Seguiu em direcção ao aeroporto.
Hoje, iria conhecê-la.
Tinha pena de que o tempo fosse tão curto, atendendo a que:
a) havia que deixar o pai, muito idoso e tremente, mais as três dezenas de comprimidos de cores variadas, na casa da senhora marquesa, que não prescindia da sua visita - na verdade, era a senhora quem visitava o velhinho doente: só que, tratando-se de uma marquesa, insistia em que fosse o idoso a deslocar-se à sua residência...
b) seguidamente, encontrar-se-ia com a tia para a conhecer mas que, depois, cerca de três quartos de hora mais tarde, teria de:
c) conduzir ao aeroporto - mas tendo, entretanto, passado de novo pela casa da senhora marquesa, aonde iria buscar o pai.
Uma vez no aeroporto, a tia mais nova do que ele, seu sobrinho, dir-lhe-ia adeus e rumaria para as antípodas. Que diacho: ser sobrinho mais velho do que uma tia que vivia nas antípodas de si.
No plano confuso, mal enjorcado, só a custo conseguindo prever as demoras do pai, primeiro a sair do carro, muito tremente, e a seguir, três quartos de hora mais tarde, reentrando no carro, sempre muito tremente, nesse plano fazia-lhe particular impressão ter de contar com este pormenor: existia um traço contínuo que o impedia de fazer a manobra que mais lhe convinha para chegar à casa da marquesa: em vez disso, tinha de seguir mais quase uns cinco ou seis minutos até ao fim da rua para, contornando a rotunda, voltar para trás e, em sentido contrário poder, finalmente, virar para a ruazinha da senhora marquesa. Cinco ou seis minutos desperdiçados!
Chegaram. O pai saiu. «Leva os remédios, pai?». Não lhe respondeu. Também não esperara resposta, tinha perguntado porque sim. O mordomo ajudava o senhor. Margarida, de carrapito e avental branco sobre o vestido negro, ajudava-o, do outro lado. E, sem se preocupar mais, disparou.
A sua tia era uma repariga de dezanove anos. Tímida. De cabeça baixa. Olhava-o de soslaio. Falava pouco, com a pronúncia típica das antípodas. Ofereceu-lhe chá. Ele não se sentia bem pelo facto de estar constantemente a olhar para o relógio de pulso, como certos médicos já esgotados com a persistência de alguns pacientes demasiado faladores. Mas não tinha alternativa. Mais do que o pai, havia o pormenor da traço contínuo,do desvio pela rotunda. Cinco minutos. Se fosse atrás de uma lesma, como sucede frequentemente, poderia ser atraso de dez minutos.
Quando achou que era chegada a hora, advertiu-a. A tia levava poucas malas. Carregou-as, com a ajuda do porteiro, um senhor com dedos amarelos de nicotina e hálito de urso.
Entraram no carro. Voou.
Levou quase um quarto de hora até à malfadada rotunda, porque houvera um acidente e se formara uma pequena fila. Refreava-se, diante da tia, para não buzinar, para não olhar para as horas, para não gritar impropérios. Suava abundantemente, martelava, nervoso, com o pé sobre o pedal, tamborilava na mudança.
Feita a rotunda, já à vista da casa da marquesa, reparou na criada Margarida, que corria em direcção ao carro, acenando muito.
«O seu pai, senhor Donato. O seu pai. O seu pai morreu!»
Deu um suspiro de alívio: poupava uns minutos com a entrada do pai no carro.
Seguiu em direcção ao aeroporto.
HOJE AINDA VENHO COM MENOS PACIÊNCIA, DO QUE O COSTUME, PARA ERROS ROMÂNTICOS
Aos idiotas que, num assomo de pieguice democrática, continuam a repetir que «o Génio consiste em 99% de transpiração e 1% de inspiração», há que lembrar: Sim! Mas a diminuta percentagem de inspiração é que conta: é aquilo que realmente faz a diferença!
Do mesmo modo, aos que, romanticamente, se não cansam de lembrar que, na escola, Einstein fora um péssimo aluno, há que explicar: Sim! Mas nem todos os maus alunos na escola virão, forçosamente, a ser futuros Einsteins!
Do mesmo modo, aos que, romanticamente, se não cansam de lembrar que, na escola, Einstein fora um péssimo aluno, há que explicar: Sim! Mas nem todos os maus alunos na escola virão, forçosamente, a ser futuros Einsteins!
DIÁRIO DO OBSERVADOR
3 de Abril de 2057
A minha missão é peculiar. E, como os Dupondt, diria mesmo mais: trata-se de uma missão peculiar, a minha.
A frase que devo ter sempre em mente é esta: «Todas as coisas carecem de um novo passado».
Quando ouvi pronunciá-la pela primeira vez, pensei que o Mestre estivesse a dizer poesia. Pareceu-me um verso particularmente belo. O mestre tinha um copo, suponho que de Whisky, na mão muito peluda e, fazendo-o reflectir à luz do candeeiro, prosseguiu: «Este copo carece de um novo passado». Olhou em redor; apontou uma rosa numa jarra: «Esta flor precisa de um novo passado». Imbuía-me da ideia. A frase, chamemos-lhe assim, agarrou-me, primeiramente, pela sua beleza. Só mais tarde me agarrou pela minha inteligência. Ou talvez não: talvez ainda me não tenha agarrado completamente pela inteligência. Talvez ainda a não compreenda perfeitamente.
Mas estou estritamente subordinado ao protocolo que se encontra em todas as estórias de ficção científica: viajando no tempo, não tenho o poder de interferir. Recuando ao passado, não posso salvar as vítimas, ajudar os indefesos, seduzir ou deixar-me seduzir. Todos sabem que os actos de um ser futuro no passado provocariam rearranjos inesperados e, naturalmente, catastróficos.
Sou, portanto, um observador. Um mero observador. Vejo, por exemplo, o grupo de patos que pratica bullying sobre um patinho menor, sem poder espantá-los, nem levar comigo o pato que sofre as investidas dos que dele abusam.
O segredo está em que toda a observação é já, de algum modo, uma interferência. (Se têm dúvidas, perguntem ao gato). E, portanto, observando diferentemente, não actuando sobre coisa alguma, mantendo em relação a tudo a distância rigorosamente exigida, mas, repito, observando diferentemente, espero poder descobrir no emaranhado de linhas que constitui o passado, sem lhes tocar, desenhos possíveis, combinações melhores.
Do mesmo modo que posso olhar para uma pintura de Kandinsky e ver outra coisa, surpreendentemente diversa daquilo que o título sugeria, e com que se pretenderia influenciar-me o olhar.
O Mestre parece crer que é quanto basta para se conseguir, para cada uma das coisas do presente, um passado novo em folha, que as redima. Sem haver tocado em coisa alguma, sem manipular física e materialmente seja o que for.
O Mestre pode ou não estar enganado. A mim, custa muito ver os patos enormes, de bicos ferozes, praticando bullying sobre o patinho feio, e não poder intervir!
A minha missão é peculiar. E, como os Dupondt, diria mesmo mais: trata-se de uma missão peculiar, a minha.
A frase que devo ter sempre em mente é esta: «Todas as coisas carecem de um novo passado».
Quando ouvi pronunciá-la pela primeira vez, pensei que o Mestre estivesse a dizer poesia. Pareceu-me um verso particularmente belo. O mestre tinha um copo, suponho que de Whisky, na mão muito peluda e, fazendo-o reflectir à luz do candeeiro, prosseguiu: «Este copo carece de um novo passado». Olhou em redor; apontou uma rosa numa jarra: «Esta flor precisa de um novo passado». Imbuía-me da ideia. A frase, chamemos-lhe assim, agarrou-me, primeiramente, pela sua beleza. Só mais tarde me agarrou pela minha inteligência. Ou talvez não: talvez ainda me não tenha agarrado completamente pela inteligência. Talvez ainda a não compreenda perfeitamente.
Mas estou estritamente subordinado ao protocolo que se encontra em todas as estórias de ficção científica: viajando no tempo, não tenho o poder de interferir. Recuando ao passado, não posso salvar as vítimas, ajudar os indefesos, seduzir ou deixar-me seduzir. Todos sabem que os actos de um ser futuro no passado provocariam rearranjos inesperados e, naturalmente, catastróficos.
Sou, portanto, um observador. Um mero observador. Vejo, por exemplo, o grupo de patos que pratica bullying sobre um patinho menor, sem poder espantá-los, nem levar comigo o pato que sofre as investidas dos que dele abusam.
O segredo está em que toda a observação é já, de algum modo, uma interferência. (Se têm dúvidas, perguntem ao gato). E, portanto, observando diferentemente, não actuando sobre coisa alguma, mantendo em relação a tudo a distância rigorosamente exigida, mas, repito, observando diferentemente, espero poder descobrir no emaranhado de linhas que constitui o passado, sem lhes tocar, desenhos possíveis, combinações melhores.
Do mesmo modo que posso olhar para uma pintura de Kandinsky e ver outra coisa, surpreendentemente diversa daquilo que o título sugeria, e com que se pretenderia influenciar-me o olhar.
O Mestre parece crer que é quanto basta para se conseguir, para cada uma das coisas do presente, um passado novo em folha, que as redima. Sem haver tocado em coisa alguma, sem manipular física e materialmente seja o que for.
O Mestre pode ou não estar enganado. A mim, custa muito ver os patos enormes, de bicos ferozes, praticando bullying sobre o patinho feio, e não poder intervir!
quarta-feira, abril 01, 2009
sábado, março 28, 2009
CORAGEM
Não sou católico. Rasguei o cartão e desvinculei-me do catolicismo ainda jovem, assim que desatei a perceber que a sua essência obrigava a que eu acreditasse: a) na existência de Deus; b) na do Pai Natal; c) na de um homem - Cristo - que não era obcecado por sexo. Ora esta última hipótese parecia-me altamente improvável...
Isto dito, devo confessar que, do seio da igreja católica apostólica romana portuguesa tenho visto sair, nos últimos tempos, posições de uma coragem que merece referência e vénia. Faço a referência. A vénia não posso senão muito levemente, e só com a cabeça, porque estou sentado ao computador.
Por um lado, ao Bispo de Viseu, que teve a ousadia de vir dizer, contra as palavras de Sua Santidade, que o preservativo é importante: que, mais, há situações em que se torna até um imperativo moral.
Por outro lado, a um senhor pároco, o qual (num assomo de indignação contra o jogo em que um árbitro resolveu roubar o Sporting, perante a passividade da polícia - e a do Benfica, de resto, que pouco se mexeu durante os noventa minutos...), gritou, em plena homilia, que não baptizaria, doravante, nenhuma criança com o nome do mesmo árbitro: que se os pais insistissem nesse impronunciável nome, mil vezes maldito, fossem baptizar o filho à Luz!
Não quero que me tomem por algum irresponsável, que coloca tão diferentes atitudes no mesmo saco e ao mesmo nível. Não sou nenhum idiota, não sou nenhum inconsciente. Sei ver que a segunda posição é muito mais corajosa do que a primeira: ambas poderão sofrer represálias, é certo, mas as represálias dirigidas contra o Bispo de Viseu hão-de vir, afinal, simplesmente do Papa: e o Papa é um velhinho de saias.
Quanto ao pároco, talvez tenha de se haver com os Diabos Vermelhos. E parece-me que, para um padre, isso não é bom!!!
Isto dito, devo confessar que, do seio da igreja católica apostólica romana portuguesa tenho visto sair, nos últimos tempos, posições de uma coragem que merece referência e vénia. Faço a referência. A vénia não posso senão muito levemente, e só com a cabeça, porque estou sentado ao computador.
Por um lado, ao Bispo de Viseu, que teve a ousadia de vir dizer, contra as palavras de Sua Santidade, que o preservativo é importante: que, mais, há situações em que se torna até um imperativo moral.
Por outro lado, a um senhor pároco, o qual (num assomo de indignação contra o jogo em que um árbitro resolveu roubar o Sporting, perante a passividade da polícia - e a do Benfica, de resto, que pouco se mexeu durante os noventa minutos...), gritou, em plena homilia, que não baptizaria, doravante, nenhuma criança com o nome do mesmo árbitro: que se os pais insistissem nesse impronunciável nome, mil vezes maldito, fossem baptizar o filho à Luz!
Não quero que me tomem por algum irresponsável, que coloca tão diferentes atitudes no mesmo saco e ao mesmo nível. Não sou nenhum idiota, não sou nenhum inconsciente. Sei ver que a segunda posição é muito mais corajosa do que a primeira: ambas poderão sofrer represálias, é certo, mas as represálias dirigidas contra o Bispo de Viseu hão-de vir, afinal, simplesmente do Papa: e o Papa é um velhinho de saias.
Quanto ao pároco, talvez tenha de se haver com os Diabos Vermelhos. E parece-me que, para um padre, isso não é bom!!!
sexta-feira, março 27, 2009
UM INSTANTE NO ENTARDECER
toda a viuvez do universo se materializou,
de súbito,
no vazio da janela e, por um momento, toda a viuvez era
a velha que aí assomava, de lenço preto preto
e uma bondade bruta
na alma
oculta sob a carta astrológica de rugas
prevendo-lhe o passado inteiro.
dentro do entardecer: um passeio de pedra, escadinhas tortuosas,
uma parede branca e a ferida
da janela
atirando, pequeninamente, para a grandeza trágica
da viuvez toda,
resumida toda num rosto e num lenço,
tais eram as partes do instante em que flutuava um tum tum tum,
se ouvia flutuar o tum tum tum
de sucessivos toques de um pé numa bola.
Sob a atenção agrestemente carinhosa do rosto de preto preto
na ferida da janela
(e tudo isto envolto pelo ferimento do entardecer),
uma neta miúda de cabelos em desequilíbrio
mantinha a bola no ar, sobre a ponta da sandalinha,
em vez de saltar à corda, pensei eu, estupidamente,
tum tum tum,
ou de brincar com bonecas:
tum tum tum.
E era triste que a tarde acabasse por matar tudo aquilo.
de súbito,
no vazio da janela e, por um momento, toda a viuvez era
a velha que aí assomava, de lenço preto preto
e uma bondade bruta
na alma
oculta sob a carta astrológica de rugas
prevendo-lhe o passado inteiro.
dentro do entardecer: um passeio de pedra, escadinhas tortuosas,
uma parede branca e a ferida
da janela
atirando, pequeninamente, para a grandeza trágica
da viuvez toda,
resumida toda num rosto e num lenço,
tais eram as partes do instante em que flutuava um tum tum tum,
se ouvia flutuar o tum tum tum
de sucessivos toques de um pé numa bola.
Sob a atenção agrestemente carinhosa do rosto de preto preto
na ferida da janela
(e tudo isto envolto pelo ferimento do entardecer),
uma neta miúda de cabelos em desequilíbrio
mantinha a bola no ar, sobre a ponta da sandalinha,
em vez de saltar à corda, pensei eu, estupidamente,
tum tum tum,
ou de brincar com bonecas:
tum tum tum.
E era triste que a tarde acabasse por matar tudo aquilo.
terça-feira, março 24, 2009
QUASE ALGUÉM MAIS
Ardekura Saikaro estava sentado, com a cabeça tombando, sonolenta, sobre uma pilha de testes por corrigir.
Era, portanto, um professor.
Mas, nos insterstícios da sua estranha, pesada e anormal sonolência vinha-lhe, por vezes, uma espécie de intuição; talvez nem fosse bem uma intuição: uma vaga vaga de sensações - não me enganei: era uma vaga, sim, só que não se tratava de uma nítida vaga e sim de uma vaga um tanto vaga -, um rápido, difuso e minúsculo advir de impressões, «impressões» que não tinham a força de «memórias», não chegava a ser um conjunto de memórias, mas que o remetiam para uma outra identidade, um heterónimo, um outro eu que as tivesse experimentado. Não percebia se era já um deslizar para o sono. Sonhava que era outro? Mas não lhe parecia. Sentia-se quase acordado. Sensações de um sonho incompleto que lhe povoavam a quase vigília, a meia vigília?
Ardekura Saikaro sentiu, portanto, que era outro. Que havia, nele, um outro. E estava quase a apropriar-se do seu heterónimo, quando, como se acordasse, o perdeu de vez.
«O cérebro prega-nos partidas», pensou.
O certo, é que nunca mais tornou a ser tão definitiva e completamente Adekura Saikaro.
Como se houvesse a possibilidade de o não ser.
E dizia a si mesmo:
«Sou Ardekura Saikaro ferido da suspeição de que poderei não ser Ardekura Saikaro...»
Era, portanto, um professor.
Mas, nos insterstícios da sua estranha, pesada e anormal sonolência vinha-lhe, por vezes, uma espécie de intuição; talvez nem fosse bem uma intuição: uma vaga vaga de sensações - não me enganei: era uma vaga, sim, só que não se tratava de uma nítida vaga e sim de uma vaga um tanto vaga -, um rápido, difuso e minúsculo advir de impressões, «impressões» que não tinham a força de «memórias», não chegava a ser um conjunto de memórias, mas que o remetiam para uma outra identidade, um heterónimo, um outro eu que as tivesse experimentado. Não percebia se era já um deslizar para o sono. Sonhava que era outro? Mas não lhe parecia. Sentia-se quase acordado. Sensações de um sonho incompleto que lhe povoavam a quase vigília, a meia vigília?
Ardekura Saikaro sentiu, portanto, que era outro. Que havia, nele, um outro. E estava quase a apropriar-se do seu heterónimo, quando, como se acordasse, o perdeu de vez.
«O cérebro prega-nos partidas», pensou.
O certo, é que nunca mais tornou a ser tão definitiva e completamente Adekura Saikaro.
Como se houvesse a possibilidade de o não ser.
E dizia a si mesmo:
«Sou Ardekura Saikaro ferido da suspeição de que poderei não ser Ardekura Saikaro...»
sexta-feira, março 20, 2009
COISAS, IDEIAS, DEFINIÇÕES, INVENÇÕES
Contra a praga de rapazes que andam aí furtando veículos, tenho andado a pensar num engenho que, simultanemente, colocaria os carros alheios, diante dos seus olhos, como fruta tentadora, obrigando-os a escolher entre o caminho do Bem e o do Mal, e trataria de punir no mesmo momento os que preferissem o caminho do Mal. Em que consiste? Numa chave que deixaríamos propositadamente na ranhura da porta do automóvel, com todo o ar de que o condutor aí a tivesse deixado por esquecimento (como às vezes me sucede): o ladrãozeco que pensasse «Olha, este facilita-me a vida» e tocasse na chave sofreria, de imediato, uma descarga eléctrica de que se não esqueceria.
Esta boa ideia pode ter uma previsível má consequência: esquecido como sou, pensaria muitas vezes «Olha, lá me esqueci outra vez da chave na porta do carro», e zzzzzzzzzzzzzzzt!!!
A Daisy dizia-me, no outro dia «Pai, caí!»; perguntei-lhe: «Caíste, filha? Onde?»; resposta: «Na rua!»; estranhando que pudesse ter ido à rua nesse dia, quis saber: «Ah sim? E que estavas tu a fazer na rua?»; retorquiu-me: «A cair!»
O que me faz recordar uma outra vez em que, em Espanha, tentando perceber se Daisy identificava o país onde se encontrava, o meu amigo M. lhe perguntou: «Olha, olha, diz lá! Onde tás tu?!»; ao que ela respondeu, com toda a simplicidade: «Aqui!»
O gosto é a coisa mais bem partilhada do mundo. Não conheço ninguém que não tenha gosto: trata-se, na maior parte dos casos, de mau gosto.
Redacção: O Dia do Pai.
Ontem, Dia do Pai, haviam-me pedido que fosse buscar mais cedo a Daisy ao infantário para «brincar com ela».
Fui.
Pelo caminho, cruzei-me com um pai de orelhas de cavalo em cartão e o filho cavalgando-lhe às costas. Vinham, justamente, do infantário. Havia outros pais em semelhantes figuras. Andavam numa espécie de Rally-pepper. Principiei a ver a minha vida a andar para trás.
Entrando corajosamente no antro, deparei com uma mesa carregada de comida. Aproximei-me, esfregando as mãos.
Uma Educadora barrou-me, mal-educadamente, o caminho:
«Isto é para os pais da sala M».
Retirei-me, envergonhado, em busca de Daisy.
Daisy fugiu de mim, assim que me viu.
Uma Educadora enfiou-me um garruço de lã e um cachecol. Fomos fazer um boneco de neve num tecido branco. Para a fotografia.
Depois, noutro local, colocaram-me uma boina, um colete e uma faixa e pediram-me que fosse dançarinhar com a minha filha. Para a fotografia.
Fui. Tirando que a minha filha não queria dançar. E fugia-me, enquanto a senhora esperava, pacientemente, de máquina em riste, e eu a caçava, de boina, colete e faixa.
Cheguei a casa um bocado arrasado.
Esta boa ideia pode ter uma previsível má consequência: esquecido como sou, pensaria muitas vezes «Olha, lá me esqueci outra vez da chave na porta do carro», e zzzzzzzzzzzzzzzt!!!
A Daisy dizia-me, no outro dia «Pai, caí!»; perguntei-lhe: «Caíste, filha? Onde?»; resposta: «Na rua!»; estranhando que pudesse ter ido à rua nesse dia, quis saber: «Ah sim? E que estavas tu a fazer na rua?»; retorquiu-me: «A cair!»
O que me faz recordar uma outra vez em que, em Espanha, tentando perceber se Daisy identificava o país onde se encontrava, o meu amigo M. lhe perguntou: «Olha, olha, diz lá! Onde tás tu?!»; ao que ela respondeu, com toda a simplicidade: «Aqui!»
O gosto é a coisa mais bem partilhada do mundo. Não conheço ninguém que não tenha gosto: trata-se, na maior parte dos casos, de mau gosto.
Redacção: O Dia do Pai.
Ontem, Dia do Pai, haviam-me pedido que fosse buscar mais cedo a Daisy ao infantário para «brincar com ela».
Fui.
Pelo caminho, cruzei-me com um pai de orelhas de cavalo em cartão e o filho cavalgando-lhe às costas. Vinham, justamente, do infantário. Havia outros pais em semelhantes figuras. Andavam numa espécie de Rally-pepper. Principiei a ver a minha vida a andar para trás.
Entrando corajosamente no antro, deparei com uma mesa carregada de comida. Aproximei-me, esfregando as mãos.
Uma Educadora barrou-me, mal-educadamente, o caminho:
«Isto é para os pais da sala M».
Retirei-me, envergonhado, em busca de Daisy.
Daisy fugiu de mim, assim que me viu.
Uma Educadora enfiou-me um garruço de lã e um cachecol. Fomos fazer um boneco de neve num tecido branco. Para a fotografia.
Depois, noutro local, colocaram-me uma boina, um colete e uma faixa e pediram-me que fosse dançarinhar com a minha filha. Para a fotografia.
Fui. Tirando que a minha filha não queria dançar. E fugia-me, enquanto a senhora esperava, pacientemente, de máquina em riste, e eu a caçava, de boina, colete e faixa.
Cheguei a casa um bocado arrasado.
terça-feira, março 10, 2009
WATCHMEN
Antes que a Angel e o Angelito, seu sobrinho cinéfilo, desatem a falar acerca de: Watchmen, The Movie (que não acredito que não tenham já ido ver), aproveito para tentar ser, no conjunto destes blogues amigos, o primeiro a fazê-lo.
Em primeiro lugar, porque fui.
Em segundo lugar, porque não gostei tanto como isso - e suponho que, nesta posição de espectador insatisfeito, irei estar, com toda a certeza, mais solitário do que Dr. Manhattan retirado em Marte para meditação.
Devo dizer, para já, que me havia tornado rapidamente em um fanático de: Watchmen: The Comic - referenciado há algum tempo pela Janota, seguido de muito perto pela Angel, que ia postando muito material que me arrepiava de prazer, comentado por Nuno Markl, descoberto, enfim, por mim na Biblioteca de Oeiras, comprado mais tarde na Fnac, este extraordinário romance gráfico tomou conta do leitor entusiasmado que posso ser: na linha de Neil Gaimon, recuperando porventura o melhor do espírito da DC e da Marvel - com o selo da DC Comics , precisamente -, inventando super-heróis credíveis num mundo que já perdeu a inocência de crer em super-heróis, explorando referências clássicas (está lá, por exemplo, algo como o acidente científico que originou The Incredible Hulk, ou o universo sombrio e neo-gótico onde a justiça depende do trabalho e do sofistacadíssimo material de um jovem milionário e sedento de vingança, que é Batman, ou, claro, o Surfista Prateado e a sua dificuldade em compreender a natureza humana, a qual, no entanto, tanto o perturba e comove), The Watchmen é uma Banda Desenhada completa, riquíssima, violenta q.b., com desenhos «clássicos» mas belíssimos, rigorosos e muito intensos.
Talvez em virtude desta incondicional paixão, a expectativa era elevada. Não dormia, mal comia, deixava crescer a barba enquanto o filme não chegava. Prevenia os meus alunos que não perdessem esta oportunidade única de compreenderem a Crítica da Razão Pura, de Kant, através da percepção do espaço e do tempo reveladas por uma personagem central, Dr. Manhattan, um ser de pura energia atómica que, nessa medida, não estaria sujeito às formas espacio-temporais que, segundo Kant, nos condicionam a priori.
E o filme veio. E eu fui com o meu filho. E, por uma vez, não resmunguei ante nada do que ele me propunha: aceitei comprar pipocas, coca-cola, aceitei jantar post-cine no MacDonald, fazer uma visita às lojas da moda, etc.
Não gostei.
Não gostei.
Claro que tem interesse observar até que ponto o realizador se procura aproximar do original: Rorschach é quase exactamente o Rorschach da BD, pequenino, ruivo, sardento, Nite Owl é idêntico, já para não falar do Comedian. O veículo de Nite Owl reproduz sem falhas o das imagens no álbum. Os diálogos são sedentamente bebidos da fonte: reparem, por exemplo, no impressionante monólogo de Rorschach que tanto me fascinou, na sua voz rouca e cínica. «Hão-de erguer a cabeça, e suplicar-me: Salva-nos! E eu olharei para baixo, e sussurrarei: Não!» Tudo é, aparentemente, a expressão, em cinema, da essência de Watchmen.
Contudo, aquela violência levada ao extremo visual, no filme, incomoda e, simultaneamente, banaliza: estamos perante uma espécie de Kill Bill.
Por outro lado, o que na BD se mantém credível tende a descair, em cinema, para o ridículo: um homem correndo, mascarado, pelas ruas, não salta, sem perder alguma coisa, das páginas das histórias em quadrinhos para a tela. Dou um único exemplo: podemos ver, em filme, sem esconder um frouxo de riso, a heroína que quebra pernas e arranca braços aos malfeitores, vestida num fato-de-banho amarelo, em latex, com meias de ligas e sapatos de salto alto? Ou: como nos sentimos em face de um ser azul, todo ele pura energia atómica, o extraordinário Dr. Manhattan que, no filme, parece ter olheiras, pés-de-galinha e papada?
Finalmente - e isto é decisivo -, aquele romance complexo, em que o tempo se adensa e multiplica num desafio constante às leis da Física, saltando para diante, recuando ao passado, numa espécie de cubismo temporal onde a regra é mais a simultaneidade do que a sucessão, funciona no álbum de Banda Desenhada: o leitor apropria-se vagarosamente, impõe o seu próprio ritmo, avança e, se não percebe, recua, torna ao princípio ou pára quando está já demasiado fatigado. Mas não se adapta à lógica de um filme onde tudo se torna, então, confuso, e o que se perdeu se torna, de algum modo, definitivamente irrecuperável, instalando o caos.
Força, Angel. Contra-ataca. Não deixes que eu mine o universo da consonância cinéfila através desta minha opinião. Destrói-me de uma vez. Como diria Rorschach, «Por que esperas? Mata-me!»
Em primeiro lugar, porque fui.
Em segundo lugar, porque não gostei tanto como isso - e suponho que, nesta posição de espectador insatisfeito, irei estar, com toda a certeza, mais solitário do que Dr. Manhattan retirado em Marte para meditação.
Devo dizer, para já, que me havia tornado rapidamente em um fanático de: Watchmen: The Comic - referenciado há algum tempo pela Janota, seguido de muito perto pela Angel, que ia postando muito material que me arrepiava de prazer, comentado por Nuno Markl, descoberto, enfim, por mim na Biblioteca de Oeiras, comprado mais tarde na Fnac, este extraordinário romance gráfico tomou conta do leitor entusiasmado que posso ser: na linha de Neil Gaimon, recuperando porventura o melhor do espírito da DC e da Marvel - com o selo da DC Comics , precisamente -, inventando super-heróis credíveis num mundo que já perdeu a inocência de crer em super-heróis, explorando referências clássicas (está lá, por exemplo, algo como o acidente científico que originou The Incredible Hulk, ou o universo sombrio e neo-gótico onde a justiça depende do trabalho e do sofistacadíssimo material de um jovem milionário e sedento de vingança, que é Batman, ou, claro, o Surfista Prateado e a sua dificuldade em compreender a natureza humana, a qual, no entanto, tanto o perturba e comove), The Watchmen é uma Banda Desenhada completa, riquíssima, violenta q.b., com desenhos «clássicos» mas belíssimos, rigorosos e muito intensos.
Talvez em virtude desta incondicional paixão, a expectativa era elevada. Não dormia, mal comia, deixava crescer a barba enquanto o filme não chegava. Prevenia os meus alunos que não perdessem esta oportunidade única de compreenderem a Crítica da Razão Pura, de Kant, através da percepção do espaço e do tempo reveladas por uma personagem central, Dr. Manhattan, um ser de pura energia atómica que, nessa medida, não estaria sujeito às formas espacio-temporais que, segundo Kant, nos condicionam a priori.
E o filme veio. E eu fui com o meu filho. E, por uma vez, não resmunguei ante nada do que ele me propunha: aceitei comprar pipocas, coca-cola, aceitei jantar post-cine no MacDonald, fazer uma visita às lojas da moda, etc.
Não gostei.
Não gostei.
Claro que tem interesse observar até que ponto o realizador se procura aproximar do original: Rorschach é quase exactamente o Rorschach da BD, pequenino, ruivo, sardento, Nite Owl é idêntico, já para não falar do Comedian. O veículo de Nite Owl reproduz sem falhas o das imagens no álbum. Os diálogos são sedentamente bebidos da fonte: reparem, por exemplo, no impressionante monólogo de Rorschach que tanto me fascinou, na sua voz rouca e cínica. «Hão-de erguer a cabeça, e suplicar-me: Salva-nos! E eu olharei para baixo, e sussurrarei: Não!» Tudo é, aparentemente, a expressão, em cinema, da essência de Watchmen.
Contudo, aquela violência levada ao extremo visual, no filme, incomoda e, simultaneamente, banaliza: estamos perante uma espécie de Kill Bill.
Por outro lado, o que na BD se mantém credível tende a descair, em cinema, para o ridículo: um homem correndo, mascarado, pelas ruas, não salta, sem perder alguma coisa, das páginas das histórias em quadrinhos para a tela. Dou um único exemplo: podemos ver, em filme, sem esconder um frouxo de riso, a heroína que quebra pernas e arranca braços aos malfeitores, vestida num fato-de-banho amarelo, em latex, com meias de ligas e sapatos de salto alto? Ou: como nos sentimos em face de um ser azul, todo ele pura energia atómica, o extraordinário Dr. Manhattan que, no filme, parece ter olheiras, pés-de-galinha e papada?
Finalmente - e isto é decisivo -, aquele romance complexo, em que o tempo se adensa e multiplica num desafio constante às leis da Física, saltando para diante, recuando ao passado, numa espécie de cubismo temporal onde a regra é mais a simultaneidade do que a sucessão, funciona no álbum de Banda Desenhada: o leitor apropria-se vagarosamente, impõe o seu próprio ritmo, avança e, se não percebe, recua, torna ao princípio ou pára quando está já demasiado fatigado. Mas não se adapta à lógica de um filme onde tudo se torna, então, confuso, e o que se perdeu se torna, de algum modo, definitivamente irrecuperável, instalando o caos.
Força, Angel. Contra-ataca. Não deixes que eu mine o universo da consonância cinéfila através desta minha opinião. Destrói-me de uma vez. Como diria Rorschach, «Por que esperas? Mata-me!»
segunda-feira, março 09, 2009
OS PONTOS NOS II
1. É fácil, cómodo e apetecível criticar o governo como se este não estivesse equipado com o mínimo tipo de virtude. A verdade, porém, é que as últimas sondagens, como as anteriores e as de antes, continuam a prever uma nova maioria-PS: e isso obriga-nos a reconhecer, da parte do governo e do partido que o sustenta, um esforço denodado, rigoroso e vigoroso em duas áreas a que os portugueses se mostram sensíveis: a manipulação e a censura.
2. Por outro lado, o governo trata-nos da saúde. Em sentido figurado, mas também literal: impede-nos de progredir nas carreiras, não vamos nós ganhar o que gastaríamos em gorduras; torna as salas de espera dos hospitais locais infectos, com o sábio propósito de evitar que as pessoas se multipliquem nas Urgências de cada vez que são pisados por uma vizinha gorda. (Se assim fosse, iriam certamente ser aí contaminadas com novas doenças...). E, last but not the least, legisla sobre a quantidade de sal que deve ser usado no pão.
3. O pão português é pior do que o tabaco. Só conheço uma coisa pior do que o pão português. É... é... não consigo, aliás, lembrar-me do que seja, em virtude de andar a comer tanto pão. A minha tia Glorinha acha muito bem que o senhor Genheiro Sócrates (um Genheiro é alguém que não chegou a Engenheiro) garanta a qualidade do pão português. Este é tão mau como quase todos os portugueses, e tão pouco saudável que, da última vez que comi uma carcaça, ia-me afogando: talvez por não saber nadar; mas é também admissível que a carcaça pudesse ter alguma relação com o assunto...
4. Por fim, há que não esquecer que, o governo, dotou Todos os meninos (sendo que «todos» significa, na linguagem do governo: «Muito poucos») de computadores Magalhães.
Queixam-se, agora, alguns insatisfeitos - porque há sempre gente difícil de contentar -, de que existem, no Magalhães, aplicações, ou funções, ou programas, ou lá como é que se chama isso, que estão escritos em mau português, com erros ortográficos, de sintaxe, etc.
Ora, isso já é mesmo vontade de denegrir. Queixinhas! Penso que há má vontade ( se não má-fé) em que se simule tanto espanto. Ou, então, falta de informação.
Por mim, estou informado e não me espanto nada:
Quem já leu Despachos assinados pela sra. D. Margarida Moreira, como eu li, não iria certamente espantar-se com erros de português associados ao Ministério da Educação!
2. Por outro lado, o governo trata-nos da saúde. Em sentido figurado, mas também literal: impede-nos de progredir nas carreiras, não vamos nós ganhar o que gastaríamos em gorduras; torna as salas de espera dos hospitais locais infectos, com o sábio propósito de evitar que as pessoas se multipliquem nas Urgências de cada vez que são pisados por uma vizinha gorda. (Se assim fosse, iriam certamente ser aí contaminadas com novas doenças...). E, last but not the least, legisla sobre a quantidade de sal que deve ser usado no pão.
3. O pão português é pior do que o tabaco. Só conheço uma coisa pior do que o pão português. É... é... não consigo, aliás, lembrar-me do que seja, em virtude de andar a comer tanto pão. A minha tia Glorinha acha muito bem que o senhor Genheiro Sócrates (um Genheiro é alguém que não chegou a Engenheiro) garanta a qualidade do pão português. Este é tão mau como quase todos os portugueses, e tão pouco saudável que, da última vez que comi uma carcaça, ia-me afogando: talvez por não saber nadar; mas é também admissível que a carcaça pudesse ter alguma relação com o assunto...
4. Por fim, há que não esquecer que, o governo, dotou Todos os meninos (sendo que «todos» significa, na linguagem do governo: «Muito poucos») de computadores Magalhães.
Queixam-se, agora, alguns insatisfeitos - porque há sempre gente difícil de contentar -, de que existem, no Magalhães, aplicações, ou funções, ou programas, ou lá como é que se chama isso, que estão escritos em mau português, com erros ortográficos, de sintaxe, etc.
Ora, isso já é mesmo vontade de denegrir. Queixinhas! Penso que há má vontade ( se não má-fé) em que se simule tanto espanto. Ou, então, falta de informação.
Por mim, estou informado e não me espanto nada:
Quem já leu Despachos assinados pela sra. D. Margarida Moreira, como eu li, não iria certamente espantar-se com erros de português associados ao Ministério da Educação!
domingo, março 08, 2009
FERA NOCTÍVAGA
De manhã, ao acordar, vejo no tecto do meu quarto as pegadas sanguinolentas da fera que durante toda a noite por ali se passeou, desafiando as leis da gravidade.
Não tenho medo. Por enquanto. Sei que, à noite, durmo e sei - já percebi - que a fera não detecta seres que dormem. O seu faro busca vida, busca vigília, busca o pavor daqueles que não sejam capazes de pregar olho. (Imagino que me não baste «fingir» que durmo; imagino que ela se não deixaria enganar, como os leões não são enganados pela falsa coragem de um domador intimamente medroso...)
Às vezes, ao puxar o cobertor para cima, antes de apagar o candeeiro, penso: «Se acordar durante a noite, estou perdido!» ou «Se tiver insónias, acabarei caçado...»
Faltam-me dados: como é este ser de cabeça para baixo, deslocando-se no tecto, devoraria uma pessoa como eu, numa cama sobre o chão? Sugar-me-ia até si? Saltaria lestamente para me abocanhar e voltar ao tecto, com o meu corpo entre as suas presas? Como uma águia que pica, apanha o atemorizado coelho e sobe, de novo, com ele aprisionado nas garras?
Nada sei.
Sei que esta manhã, quando acordei, uma vez mais, lá estavam as pegadas: a forma das garras bem estampada, a sangue, no tecto.
Não tenho medo. Por enquanto. Sei que, à noite, durmo e sei - já percebi - que a fera não detecta seres que dormem. O seu faro busca vida, busca vigília, busca o pavor daqueles que não sejam capazes de pregar olho. (Imagino que me não baste «fingir» que durmo; imagino que ela se não deixaria enganar, como os leões não são enganados pela falsa coragem de um domador intimamente medroso...)
Às vezes, ao puxar o cobertor para cima, antes de apagar o candeeiro, penso: «Se acordar durante a noite, estou perdido!» ou «Se tiver insónias, acabarei caçado...»
Faltam-me dados: como é este ser de cabeça para baixo, deslocando-se no tecto, devoraria uma pessoa como eu, numa cama sobre o chão? Sugar-me-ia até si? Saltaria lestamente para me abocanhar e voltar ao tecto, com o meu corpo entre as suas presas? Como uma águia que pica, apanha o atemorizado coelho e sobe, de novo, com ele aprisionado nas garras?
Nada sei.
Sei que esta manhã, quando acordei, uma vez mais, lá estavam as pegadas: a forma das garras bem estampada, a sangue, no tecto.
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